11 ago 2020

Os noticiários, diariamente, nos contam histórias contraditórias. Informam crises, mostram violências cotidianas, mas também exibem debates construtivos, diferentes mobilizações de solidariedade.

O período pandêmico tem evidenciado uma nação desalinhada. As condutas individuais destoam do esforço coletivo pela vida e de uma imagem cristalizada no pensamento de um povo “hospitaleiro como um traço definido do caráter brasileiro”, mencionada em 1936, pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil” — embora a “cordialidade” mencionada por Holanda seja relacionada a tudo que vem do coração, capaz de grandes afetos e de violência. O autor passou o resto da vida explicando o que é o “brasileiro cordial”.

Uma pesquisa, divulgada em 2016 pela Universidade Estadual de Michigan (EUA), prova algo de que já se desconfia. Num comparativo entre países, o Brasil está em 51º lugar, em um ranking de empatia. Foram avaliadas 63 nações.

Onde o povo brasileiro começou a apresentar essa dicotomia? Segundo o professor e historiador Deusdedith Rocha, a ideia de que há uma “natureza humana” foi reforçada no Iluminismo, com as ideias dos filósofos Thomas Hobbes e de Jean-Jacques Rousseau. O primeiro pensador dizia que o ser humano é mau por natureza, ao passo que o segundo sugeriu sermos bons genuinamente.

“O problema disso é que acabamos deixando de lado muitas coisas que interferem no comportamento humano”, explica o historiador. “No caso do Brasil, os colonizadores se habituaram a dizer que o país é uma dádiva de Deus. Fizeram um grande esforço para compor uma história que afirma: os brancos colonizadores construíram tudo com a ‘ajuda’ de africanos e indígenas. Mas os conflitos sociais entre nós sempre foram muito cruéis. Houve um apagamento da crueldade da nossa história e dos intensos conflitos que ela sempre teve.”

Essa estrutura atinge diretamente a percepção sobre nós mesmos, a representação que se faz do outro e, consequentemente, dos problemas sociais que o país atravessa. “A questão fundamental é que o Brasil é desigual. Temos uma Bélgica e uma Índia aqui dentro”, diz Débora Messemberg, professora de sociologia na UnB (Universidade de Brasília).

Gentileza como propaganda turística

O “tempero” social brasileiro foi incentivado numa primeira onda migratória, no final do século 19, quando extingue-se a escravidão e o país começa a importar mão de obra barata e branca, vinda da Europa e do Japão. “Era uma dupla intenção: branquear o país e buscar mão de obra barata para a agricultura, já que a população negra que aqui habitava não era considerada gente”, afirma Ana Maria Mauad, professora do Departamento de História da UFF (Universidade Federal Fluminense). A reestruturação da lógica de trabalho, ocupação e domínio das terras dos povos originários ocasionou o fortalecimento desse racismo estrutural, porque criou uma disputa entre o branco europeu pobre e o negro, sobretudo depois da abolição.

Entre 1930 a 1945, durante a ditadura de Getúlio Vargas, o país aplicava a política da boa vizinhança: este é o momento em que se constrói o ideário do nacional popular, da cultura popular, do samba. A publicidade e a fotografia, produzidas pelo governo, destacam a figura de Carmen Miranda e da Bando da Lua, grupo de músicos que tocavam instrumentos brasileiros e que acompanhavam a cantora.

Em 1941, no meio da Segunda Guerra Mundial, o desenhista Walt Disney vem ao Brasil e cria Zé Carioca, consagrando o “país cordial” ao apresentá-lo a Pato Donald. “O Brasil se projeta como um país receptivo, alegre, ordeiro e simpático; conflitos entre capital e trabalho parecem completamente controlados, o país estava se industrializando”, analisa Mauad. “O que fica claro, dentro dessa operação, é mitigar todo tipo de conflito de classe e de raça. Carmen representava um país unido, que adorava o Carnaval e gostava de receber, assumido de norte a sul como se houvesse unidade regional, e não era — não é — assim.”

Um abismo de distância

O Brasil é a sétima nação mais desigual do mundo, de acordo com o último relatório divulgado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), em 2019. As disparidades começam na diferença de rendimento dos brasileiros. Em seu levantamento de 2019, o IBGE divide a população em 10 decis — faixas de renda mensal recebidas. O menor salário pago equivale a R$ 160, e o maior começa a partir de R$ 28.659, ou seja, uma pequena parcela da população (representada por 1%) ganha pelo menos 180 vezes mais que a última faixa (representada por 5% do total, ou as classes D e E).

Isso se agrava ao avaliar o aspecto cor/raça. Desde 2012, o instituto indica que a população preta e parda recebe quase os mesmos valores mensalmente. Em comparação com o mesmo período, a população branca tem, em média, de 70 a 80% a mais. Ao pensar em uma nação de pouco mais de 209 milhões de pessoas, é evidente que há uma balança estagnada no desequilíbrio.

“Abolimos bem tarde a escravidão, reduzimos os povos indígenas a um número muito pequeno. Mantemos até hoje um comportamento social segregacionista e de superioridade entre raças, gênero, etnias, classes sociais, regiões etc”, argumenta Deusdedith. “Durante muitos séculos vivemos com uma massa humana de ‘não-gente’. Não é uma questão nossa, apenas, tem a ver com a nossa história. Vários países do mundo mostram na lógica iluminista da razão um processo evolutivo contínuo, mas a verdade é que a sociedade se constrói em uma série de avanços e retrocessos. A questão da cidadania não é uma conquista evolutiva e contínua”, esclarece a socióloga. O reflexo disso está nas notícias.

Na visão de Débora, a vontade social de ter uma imagem positiva esconde a perversidade presente na construção das relações brasileiras.

Sentir é diferente de viver

A empatia é um dos elementos integrantes de um pensamento mais coletivo. Nos liga à comunidade ou com o país no qual se estabelece reconhecimento, sem ela no dia a dia não se consegue estar atento à dor do outro.

O psicanalista e professor do instituto de psicologia da USP, Christian Dunker, explica que “a empatia começa quando termina a identificação com o outro, quando se vai além da identificação e não se quer silenciar o outro, vê-lo como subalterno”. Segundo Dunker, o que acontece hoje é uma espécie de “democracia em estrutura de condomínio” ou “democracia customizada”, isto é, “feita para os que são iguais a mim e não para quem é diferente de mim. As pessoas irão se identificar com quem está no mesmo pedaço. Posso me achar muito empático porque estou me identificando com o outro, não necessariamente sendo empático a ele”, elucida.

Portanto, uma sociedade desigual não propicia relações mais humanizadas. “Sem relações horizontais não se criam vínculos, serão sempre relações hierárquicas [ou verticais]. Tanta desigualdade dificulta, ainda mais dentro de uma lógica de problemas raciais e econômicos. Então, temos grupos se identificando cada vez mais com os seus próprios pares, que são cada vez mais minúsculos”, contextualiza Débora Messemberg. “Percebo a desigualdade como o grande nó da nossa história. Se não começar a resolver por aí, será difícil conseguir uma solução.”

Relações sociais

A dinâmica narrada pela socióloga é representada nas tiras criadas por Leandro Assis e Triscila Oliveira. Publicada no Instagram e no Twitter, a série “Os Santos” representa uma família da elite carioca. Seus personagens vivem de maneira conservadora e inclinados ao discurso de direita. Ele retrata os pormenores das relações verticais que evidenciam os privilégios brancos, as desigualdades sociais, o racismo, o desrespeito e a falta de empatia entre as classes.

“Quando comecei a fazer, era uma série escrita de branco para branco. Claro que a ideia era humanizar ao máximo as domésticas, os pobres, contribuir para que esse leitor branco, classe média-alta, tivesse mais empatia por aquelas pessoas”, conta o autor. “Tem aí uma questão de mentalidade escravocrata que faz o brasileiro rico acreditar que existe uma parcela da população que está aí para servir. Ele desumaniza essas pessoas para poder, inclusive, vê-las apenas como serviçais.”

As reações às tiras são diversas. Desde ataques de seguidores, produções tiradas do ar, até pessoas com o perfil desenhado que passaram a refletir, a ver um outro lado, a repensar a maneira de agir. Tem também as obras que chegam às pessoas das classes representadas ali. O retorno delas é o mais positivo. Sentem reconhecimento na representação. A identificação é tamanha que dão ideias para novas histórias.

“Não dá para colocar que temos uma face egoísta e uma face boazinha do brasileiro, porque elas estão misturadas. Todos temos impulso à solidariedade e a nos comportarmos contra o coletivo, por exemplo. Isso é comum a todos os povos. O que muda essa tonicidade são os momentos que a sociedade atravessa”, afirma Dunker.

Por Tainá Andrade

Publicado originalmente em Tab UOL.

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