23 abr 2020

 

Se as mortes por coronavírus podem ser contabilizadas, mapeadas, colocadas em gráficos e publicadas diariamente, o mesmo não acontece com um outro aspecto sanitário ligado à pandemia, mas muito menos visível: a saúde mental de toda a população mundial, que está submetida há meses a uma realidade com a qual ninguém está preparado para lidar.

A crise – inédita para toda uma geração, por uma combinação de variáveis que conjuga alcance, duração e letalidade – traz consigo medo e ansiedade em doses difíceis de serem administradas, ainda mais por pessoas que passaram a viver confinadas, sozinhas ou em família. À insegurança com a própria saúde e de pessoas próximas, soma-se ainda insegurança financeira.

Para muitos, a experiência é luto. A experiência da perda não se restringe apenas ao desaparecimento físico de uma pessoa próxima. O luto também é vivido na perda de um emprego, de um lugar, de uma vida tal como era conhecida.

Muitos desses processos de perda sequer podem ser acompanhados dos rituais propícios. A interdição ao contato social impede funerais e cerimônias religiosas, estendendo o dado da morte também aos que não podem chorar seus mortos e fechar um ciclo.

Nesta entrevista dada ao Nexo, por escrito, na quinta-feira (9), a psicóloga Maria Julia Kovacs trata desse e de outros aspectos psíquicos da crise em curso. Ela, que é professora livre docente sênior do Instituto de Psicologia da USP, também enumera dicas que podem ser seguidas por todos os que tentam lidar com as consequências psicológicas da pandemia.

 

Qual a importância do luto e dos rituais fúnebres do ponto de vista psicológico?

O luto é o processo de elaboração de perdas significativas na vida – a morte de pessoas com as quais se mantêm vínculos. Mas ele ocorre também quando não ocorrem mortes. Por exemplo, em casos de separações, perdas de atividades significativas como as que ocorrem em relação ao trabalho, perda de saúde em casos de adoecimento, perdas ligadas à imigração quando se deixa a pátria fugindo em razão de guerras, ou em qualquer outra situação que traga uma mudança grande na vida.

A pandemia do covid-19 pode ser incluída nesse contexto porque traz consigo uma alteração significativa na vida das pessoas. Seja na vida dos que não estão doentes, seja na vida dos infectados e internados, dada a gravidade dos sintomas.

O luto é um processo natural do ser humano. Ele é uma forma de lidar com situações que ameaçam a vida e que trazem perdas significativas. Mas, mesmo sendo natural da existência humana, é ainda assim uma crise que promove forte desequilíbrio na vida cotidiana. É uma crise que desorganiza a vida e, portanto, requer cuidados de várias ordens. Não é uma doença, embora possa levar a sintomas físicos e psíquicos que precisam ser cuidados.

Os rituais são ações e atividades que ajudam a organizar esse processo de desequilíbrio presente em situações de adoecimento, de finalização da vida, da morte e pós-morte. Esses rituais têm valor simbólico para a pessoa, para uma família, para uma comunidade. Podem ser ações individuais ou coletivas, e sua importância está na construção de significado, na quebra do isolamento. É algo que pode trazer segurança. Os rituais são muito importantes porque permitem despedidas e formas de homenagear as pessoas perdidas, além de oferecerem conforto aos enlutados.

 

Qual o impacto de não poder despedir-se do corpo de um familiar quando o confinamento proíbe até mesmo os velórios?

O impacto está sendo muito forte porque as despedidas são muito importantes quando se referem à perda de pessoas significativas. Ver e tocar o corpo, falar as últimas palavras, receber os familiares mais distantes, ter orações ou outros rituais de forma coletiva são coisas muito importantes. Há relatos das pessoas que não puderam estar presentes nos velórios, em razão do confinamento, e também de pessoas que tiveram de estar em velórios muito curtos, com caixão fechado, sem nenhum cerimonial. Isso é algo muito emocionante, que traz grande sofrimento.

O impacto dessas medidas é muito grande num momento em que as pessoas estão com medo, ansiosas e por vezes sem saber como foi a morte da pessoa querida, sem poder se despedir. Todas essas situações nos indicam que há grande risco de lutos complicados, com vários sintomas associados e com dificuldades também no oferecimento dos cuidados a essas pessoas que ficam. O luto complicado é algo que pode levar o enlutado ao adoecimento físico e psíquico, e também a suicídios.

Profissionais de saúde mental estão empenhados em pensar em formas de cuidados não presenciais, que possam amenizar esse sofrimento. Porém, como tudo é muito novo, há muito o que pensar. Grupos de psicólogos e psiquiatras têm oferecido cuidados online, individuais e em grupo. Mas esse é um conhecimento que está sendo construído.

 

Há países nos quais aproximadamente mil pessoas estão morrendo por dia. Isso é capaz de impactar a saúde mental da população?

O impacto dessa pandemia é imenso e afeta a todos os seres humanos; alguns de forma muito intensa, principalmente os que são diretamente afetados pela perda de familiares ou amigos, além das pessoas que estão doentes e das pessoas que têm muito medo ou ansiedade em relação ao risco de se infectar.

Algumas pessoas tentam negar o que está acontecendo. Fazem isso como uma forma de proteção contra a ansiedade e o medo. O perigo dessa negação em situações extremas é o de coloca em risco a própria vida e a vida de outros.

 

Existe algum modo de estar melhor preparado para a morte – seja a própria morte ou de pessoas próximas?

Não existe nenhuma forma padronizada de preparo para uma situação que ainda estamos conhecendo. Consideramos que a comunicação é muito importante em situações de crise e de desorganização, uma comunicação que ofereça informações e esclarecimentos, e que também ofereça possibilidades de acolhimento e de cuidados, que auxilie na busca de contato e de apoio em pessoas da família, em amigos e em profissionais da área de saúde mental; agora de forma virtual. É importante ter seu luto validado, reconhecido, e que os sentimentos possam ser expressos e acolhidos sem julgamentos críticas.

Todos esses pontos são importantes numa sociedade que ainda vê a morte como tabu, como um assunto que deve ser oculto.

Em tempos de pandemia, agregam-se agora outros pontos sobre os quais já falamos, como a impossibilidade de manter proximidade e contato, além de todas as dificuldades em relação aos rituais funerários que são tão importantes para a construção do sentido da vida sem a pessoa querida.

As pessoas têm medo de morrer com o tanto de sofrimento que é mostrado nas imagens de UTIs superlotadas. Elas têm medo também de não ter acesso a cuidados médicos ao adoecer.

Daí a importância do confinamento horizontal, que é difícil para todos. Preparar-se é viver essa situação, poder trocar informações e esclarecimentos, cuidar-se e buscar cuidados nas formas atuais, online, buscar, enfim, novas formas de viver essa situação.

 

É possível dar dicas de como sobreviver emocionalmente a essa pandemia?

Há atualmente várias publicações, cartilhas e guias para tentar amenizar o sofrimento mental, publicadas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), pelos Ministérios da Saúde dos países, por conselhos de psicologia, por associações médicas, universidades, ONGs, ente outras.

Entre os principais pontos abordados estão os seguintes:

Primeiro, não ficar vendo vendo notícias, Whatsapp, Facebook e outros recursos o dia inteiro, inundando-se de más notícias. É preciso escolher um noticiário e limitar o tempo de contato com outras formas de comunicação. É preciso não se deixar inundar de notícias que, em vez de informar, levam à ansiedade e ao desamparo. Além disso, evitar as fake news.

Segundo, estabelecer uma rotina diária que tenha atividades de trabalho, atividades físicas, refeições, atividades de lazer dentro de casa, além de participar de atividades artísticas, atividades de autocuidado, como respiração, relaxamento, yoga etc.

Terceiro, estabelecer contatos pessoais diários com familiares e amigos por telefone, por Whatsapp, coisas com imagens, como Facetime e conversas em grupo. É preciso lembrar que só o contato presencial deve ser evitado, mas todas as outras formas de contato devem ser estimuladas.

Quarto, ser solidário, ajudar quem precisa e pedir ajuda quanto precisar. Essa pode ser um dos grandes aprendizados dessa pandemia.

Quinto, buscar ajuda psicológica – lembrando que isso não é fraqueza, não é vergonha. Atualmente, há várias ofertas de atendimento psicológico, muitas delas gratuitas por meio de ajuda telefônica, chats ou outras formas virtuais gratuitas. Sempre vale a pena indicar também o Centro de Valorização da Vida, que, no Brasil, tem o telefone 188. Outros conhecimentos de cuidados em saúde mental estão sendo elaborados.

Para as crianças, estão sendo elaborados livros e cartilhas com explicações e ilustrações que explicam o que é o covid-19, quais são as formas de contágio. São publicações que ajudam a lidar com o confinamento, com os sentimentos. Elas trazem também desenhos e atividades a serem realizadas.

 

Por João Paulo Charleaux, para o Nexo Jornal

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