06 fev 2013

O professor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Christian Ingo Lenz Dunker recebeu o 1º lugar do Prêmio Jabuti de 2012, na categoria Psicologia e Psicanálise, com o livro “Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento” (Annablume Editora). Em entrevista feita por e-mail, o professor falou sobre aspectos de sua obra, como a visão da psicanálise como “uma forma de clínica, um tipo de psicoterapia e um modo de cura”, as diferentes modalides do sofrimento, e o significado de vencer o prêmio: “Trata-se de um reconhecimento para a psicanálise em um momento que se critica a sua cientificidade, sua eficácia e sua capacidade de transmitir conceitos e experiências. O livro não só discute isso, como o prêmio mostra que nossa prática é reconhecida pela cultura”.

O que significou ganhar o Prêmio Jabuti 2012?

Christian: Inesperado e improvável. É uma grande honra, para todos que estiveram comigo nesta longa jornada de produção, lançamento e revisão do livro. Mas é também uma realização surpreendente como escritor, lendo muito Lacan e publicando para lacanianos você começa a adquirir certos vícios de expressão, de barroquismo, o recurso a alusões e demais coisas que funcionam muito bem no texto de Lacan, e que inevitavelmente passam para a tradição que ele inaugurou. Mas há pelo menos 20 anos tento fazer alguma coisa própria com este estilo que recebi. Um esforço deliberado para tornar meu texto mais claro, para falar com um destinatário mais amplo, para sem perder as coisas que só se consegue fazer com recursos de ambiguação sem menosprezar a desambiguação, como se isso fosse em si mesmo um erro. Outro sentido que não se pode deixar de notar é que se trata de um reconhecimento para a psicanálise em um momento que se critica a sua cientificidade, sua eficácia e sua capacidade de transmitir conceitos e experiências. O livro não só discute isso, como o prêmio mostra que nossa prática é reconhecida pela cultura. Que a cultura do livro não desapareceu e que o debate de ideias não é necessariamente restrito aos territórios e disciplinas universitárias. Esta ideia de produzir para consumo próprio, tendo seus cinco ou seis pares imediatos como semblante e efígie do que existe no mundo, ou produzir para fazer pontos no rally universitário é simplesmente equivocada. A universidade e a pesquisa científica devem reatar sua conversa com a sociedade civil e discutir, com ela, nossos problemas e soluções comuns.

Como sua tese de livre-docência deu origem à obra?

Christian: Espera-se que uma tese de Livre Docência seja uma espécie de compilação ou síntese do percurso do pesquisador até aquele momento. O que mais caracterizava minha produção era o fato de que sempre trabalhava conexões com as ciências da linguagem, a filosofia e as ciências humanas. Veio daí a ideia de reunir e separar os trabalhos mais horizontais (estrutura) dos que admitiam um ordenamento histórico (constituição). Diante da exigência de dar unidade ao meu percurso me veio uma aposta que tinha feito com meus amigos na Inglaterra: seria possível recontar a história da formação da psicanálise, do ponto de vista das práticas sociais e discursivas que condicionam seu aparecimento histórico em fins do século XIX? A tese foi uma espécie de experimento preliminar para essa ideia.

Você descreveu sua obra como uma espécie de “arqueologia e de genealogia de práticas sociais que subsidiaram historicamente o tratamento psicanalítico”. Como esta construção se deu? Quero falar sobre os termos arqueologia e genealogia.

Christian: O arqueólogo reconstrói formas de vida com grande precisão, mas também com muita humildade. Ele sabe que sua tarefa tem um objetivo perdido a priori. Jamais ele terá todos os fatos e detalhes dos quais precisa, nem todos os dados que fechariam o quebra-cabeça. Por isso ele é também um aventureiro do passado imprevisível, para usar a expressão de Nélson da Silva Jr. (professor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia e membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise), ou seja, alguém interessado em reunir a mais estrita precisão com mais ampla capacidade de imaginar conjecturas, muitas das quais ele nunca poderá confirmar senão por regras de coerência e ilações eficazes. Mas há outra arqueologia, e esta é naturalmente o método desenvolvido por Michel Foucault em As Palavras e as Coisas, livro com o qual fiz quatro ou cinco trabalhos de graduação. A arqueologia preocupa-se justamente com estruturas de saber, com os cortes que datam uma época não pela sua cronologia, mas pela forma como o encontro entre superfícies discursivas criam objetos por meio de estratégias e articulações transversais entre temas. A genealogia é uma espécie de suplemento desta perspectiva, por meio da qual se reconstroem as formações de poder que constituem, a cada momento, o sujeito para uma determinada prática discursiva.

Você comentou que as formas de tratar o sofrimento tiveram que ser ”suprimidas” para estabelecer a psicanálise como um tratamento novo e um método autônomo. Assim, “não podemos distinguir a psicanálise da psicoterapia e de outras técnicas sugestivas, já que ela passou a depender mais de estratégias conceituais, disciplinares e discursivas”?

Christian: O sofrimento é uma substância curiosa que se transforma conforme falamos dele. Articular a perda da alma a um pacto com o demônio ou a um déficit de serotonina no seu cérebro não muda em nada a existência de demônios ou de almas, muito menos a natureza funcional de nosso teleencéfalo, mas muda tudo em nossa experiência de sofrimento. [Elizabeth] Roudinesco (historiadora e psicanalista francesa, professora da Universidade de Paris VII) disse que a psicanálise só é possível em uma cultura se houver livre associação e também se nessa cultura o saber sobre o sofrimento mental for laico, vale dizer psiquiatria e ciência. Isso é verdade, e nos levaria a encontrar sempre a psiquiatria e a medicina, como condição de possibilidade da prática psicanalítica. Era assim que se fazia história da prática psicanalítica: Freud era um médico, neurologista, muitas coisas erradas ficaram deste passado ingênuo, heroico e naturalista, precisamos nos purificar disso, etc. etc. Ora, isso ignora francamente que muitas das formas de sofrimento que a psicanálise aborda não eram e nem foram objeto da medicina. Elas eram tratadas pela moral, pela educação, pelas religiões, pelas mais diversas formas e narrativas míticas, mágicas, semi-mágicas e filosóficas. Nossa oposição simples entre ciência e não ciência, laico ou religioso, mítico ou histórico, é apenas um excesso de crença no poder catalizador da ciência do sofrimento psíquico. Esta ciência que se existiu, se chamaria psicopatologia, não psiquiatria, jamais chegou a ser uma ciência, mesmo que muitos cientistas tenham se dedicado a ela.

O nascimento da psicanálise deve muito à noção de sintoma, e esta noção é bem anterior à psicanálise, normalmente o recuo é para a medicina, mas não nos damos conta de quão jovem é esta medicina moderna que se fundou em torno do método clínico e seu correlato que é o conceito de sintoma. Basta recuar a antes do século XVIII, ou seja, nem 200 anos antes do nascimento da psicanálise, e o que chamamos de medicina era uma confusão de cirurgiões barbeiros, práticos errantes sem formação formal alguma; médicos filosóficos como os que vemos no Doente Imaginário de Moliére, professores de anatomia, guerras entre escolas, alianças morais, e assim por diante. Exatamente como a confusão que hoje reina na psicanálise entre escolas, estratégias de fundamentação, crises de modelos de transmissão e de justificação social da prática. O psicanalista, assim como o médico do século XVII, é um personagem social suspeito, capaz de falas bonitas e de sustentar alguma autoridade social, mas obscuro quanto aos fundamentos de seu fazer. Isso não devia ser nunca um argumento que justificasse sua exclusão como tratamento clínico válido ou que pusesse em suspeição sua legitimidade como saber. Essa ideia de eterna unidade prático-teórica da medicina, desde Hipócrates, é uma redução que nasce na cabeça normativa de quem não pensa a ciência como história e quer transformar a prática em regulação de protocolos técnicos. Ou seja, a psicanálise se funda no sintoma, mas sem desconhecer a verdade que se diz por meio de seu sofrimento, nem o mal estar que sobredetermina ambos.

Você comentou que essas práticas sociais demonstram como a psicanálise é “uma forma de clínica, um tipo de psicoterapia e um modo de cura”. Como isso se dá? Quais são as diferenças entre as três formas?

Christian: Clínica é método e experiência do método. Observação continuada e acompanhamento reflexivo de inúmeras trajetórias de adoecimento, com suas regularidades, semi-regularidades, tendências e contingências. Daí que Freud tenha dito que a psicanálise é um método de tratamento das neuroses e um método de investigação de fenômenos psíquicos. Ocorre que nem tudo que fazemos quando fazemos psicanálise é clínica. Se a clínica se funda em uma relação com o Real dos sintomas, há uma dimensão de experiência da verdade, cuja origem não é o método clínico, mas as experiências de cura ou cuidado de si, tal como se proliferam no período helenístico com estóicos, cínicos, céticos e epicuristas. Sua pergunta não é como curar sintomas, mas como fazer a vida valer a pena, como viver a vida em conformidade com a verdade singular que é a de cada experiência única, no quadro das contingências e impossibilidades que lhes são próprias.
Portanto, há um real do sintoma e uma verdade envolvida neste mal-estar que requer o cuidado de si. Ou seja, isso define nossas vidas sem apelar para uma espécie de “lugar natural” ao qual pertencemos e ao qual devemos fidelidade incondicional, ou ao qual deveríamos rumar para. Note que o que traz alguém à psicanálise não é o sintoma. O que traz as pessoas à análise é quando e como o sintoma faz sofrer. E o sofrimento é um problema cuja gramática passa por atos de reconhecimento e por estruturas de ação e de relação como a indiferença, a identificação, a demanda, a segregação e o amor. O sofrimento requer uma narrativa, assim como a verdade está ligada à fala e o sintoma ao discurso (o discurso da clínica, se você quiser). É próprio de nossa ideologia olhar para o sofrimento e reduzí-lo ao sintoma que é tratável ou ao mal-estar que é incurável. Ou seja, a dignidade do sofrimento como experiência social-compartilhada tornou-se banalizada, territorizalizada e administrada. Um dos objetivos deste livro é tentar mostrar por quais motivos a psicanálise é uma clínica, mas não só uma clínica, que a psicanálise é uma psicoterapia, mas não só uma terapia, e que ela é uma forma de cura, mas não só uma forma de cura.

“O que distingue essas três linhagens de tratamento da alma não são as suas técnicas nem suas concepções de mundo ou de homem, mas a sua maneira de articular o problema do poder que se expressa na ideia de influência, sugestão ou carisma (na prática psicoterapêutica); ou no poder que é conferido ao médico dentro do dispositivo clínico; ou ainda, no poder que é conferido à palavra na experiência da cura”.

Christian: Note que todo sintoma pode ser lido como uma privação de liberdade: tenho que fazer isso ou aquilo, tenho que pensar isso ou aquilo, tenho que sentir isso ou aquilo. Ou, ainda, não posso fazer isso ou aquilo, não posso ver isso ou aquilo, não posso pensar isso ou aquilo. Ter e poder, duas formas de experiência que definem nosso escopo de trabalho. Ou seja, não é o comportamento que pode ser normal, adaptado e conforme, mas esta curiosa enunciação que constrange o sujeito ou que impede o sujeito de exercer sua autonomia, independência ou emancipação que determina clinicamente um sintoma. Temos aí uma dimensão de poder, que está além das formas instituídas, das opressões e dos regimes de força nos quais pensamos sempre a ideia de poder. Ou seja, há o grande poder, este que vemos por toda a parte, que se exerce sem parar entre as pessoas e há este pequeno poder, este nano-poder, que acontece na dupla superfície da relação a si e da relação aos outros. O absurdo das técnicas de abordagem farmacológica dos sintomas consiste em tentar tratar efeitos gerados por relações, fora do contexto de relações. E note que aí temos uma nova forma-poder. Cura, tratamento e psicoterapia são no fundo e neste contexto, três políticas, três maneiras irredutíveis de entender e praticar o poder, o poder de curar, se você quiser.

[Vladimir] Safatle (professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP e membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise) ressalta que você estabelece duas tendências do adoecer psíquico, provindas de raízes judaica-cristã e grega. Quais são e como influem no quadro histórico das formas de cuidado?

Christian: Nós temos uma narrativa hegemônica que diz que nosso sofrimento deriva da perda de determinação. Ou seja, sofrer é perder o controle sobre os sistemas de relação e de interesse que nos determinam. A partir da modernidade isso se tornou tão consensual que passamos a sofrer também com o excesso de suplementos regulatórios, contratos, leis, regras, dispositivos de controle e docilização. Ou seja, passamos a interpretar que nosso sofrimento decorre do excesso destas experiências improdutivas de determinação. Como se o remédio tivesse se tornado pior que a própria doença. Isso, no entanto, reflete a vitória de uma das narrativas sobre o sofrimento, de origem judaico-cristã, sobre a segunda que acabou sendo suprimida, ou seja, a greco-romana. Nela havia o sentimento de que certos sofrimentos não são apenas falta de determinação, mas expressão de uma indeterminação ontológica e incontornável. Há, portanto, experiências de indeterminação, experiências de fracasso de sentido, de não-senso, de ab-senso, que devem ser incorporadas em nossas estratégias clínicas, de cura e de psicoterapia. A questão é justamente saber quais destas experiências de indeterminação são realmente produtivas e quais são improdutivas, e ainda quais são realmente experiências de indeterminação e quais são apenas déficit de sistemas regulatórios de determinação da vida.

Porque o tratamento clínico é um risco ao paciente?

Christian: A clínica é um risco ao paciente porque ela é um dispositivo para gerar transformação e mudança. Nunca se sabe o que será uma vida sem aquela forma de sintoma ou aquele tipo de sofrimento. Mas a clínica é também composta de risco do lado do psicanalista. Nunca se tem todo o tempo que se gostaria para tomar as decisões, não se pode ter acesso e examinar imparcialmente todos os elementos que compõe um processo, nem há parâmetros inteiramente objetiváveis de mensuração das implicações dos procedimentos interpretativos ou construtivos. Mas o curioso é que isso também vale para todas as outras formas de clínica e é por isso que esta é uma arte e uma perspectiva que enfrenta dificuldades para se instalar em um mundo no qual a saúde virou um problema de gestão. A clínica ela mesma, com o paciente real, com suas contingências reais vem em último lugar em um mundo que tem crescente horror ao risco. Na psicanálise a clínica é um lugar de risco, pois não se sabe de antemão o que se vai descobrir, onde se vai parar, que consequências serão tiradas do que será dito.

Fale um pouco das relações das “formas de cuidado” com a “esfera política”.

Christian: A relação a si é uma fonte poderosa de resistência política. Não é uma acaso que todas as formas de dominação tenham se apoiado em discursos de renúncia, de penitência, de resignação sobre si. Desde os gregos a prática da política, como cuidado dos assuntos públicos, devia ser precedida por uma experiência preparatória que é examinar e analisar as próprias paixões e a origem do desejo de mandar, dominar ou exercer o poder. Isso simplesmente não foi examinado como um princípio que tornaria o cuidado de si uma propedêutica política. Isso ocorre porque confiamos demais na separação normativa entre vida pública e vida privada, o que torna, por exemplo, os afetos, as intenções e a história pessoal apenas um critério de confiança e autenticidade de interesses. Ora, mas precisamos de muito mais que isso para sair de uma relação contratualista entre público e privado, que afinal é o fundamento de nossa política cínica de nossa época. Precisamos de uma retomada das práticas de cuidado de si. O problema é que isso nos levaria a falar de política sem partidos, sem instituições, sem dispositivos de administração da política, que tornam a política outra coisa.

O livro traz uma perspectiva diferente do “autoconhecimento” ou de “desvendar o inconsciente” normalmente atrelado à psicanálise. Como isso se dá? É uma maneira de quebrar um tabu.

Christian: Sim, tentei mostrar que a psicanálise, mas não só ela, está em uma posição diferente da que se habitualmente se associa com o ”conhece-te a si mesmo” de Sócrates. De fato, cuidar e conhecer não são exatamente antônimos, mas são atividades muito distintas. Pensar na psicanálise como uma prática de cuidado de si, ou seja, de exame sistemático de nossas ações, sonhos e pensamentos, tendo em vista a possibilidade de dizer algo sobre a verdade dos desejos que presidem uma vida, muda muito o sentido do que se deve entender por inconsciente. Uma análise não é um empreendimento para descrever e contemplar a própria alma como se isso fosse a coisa mais importante que há no mundo. Trata-se de usar o inconsciente como hipótese sobre certas coisas que tornam a vida tão cheia de bagagens, roteiros e planejamentos, que ela fica insuportavelmente chata, enfim de suprimir o que se mostra um obstáculo à liberdade, não apenas um exercício de contemplação da vida interior.

Qual o público-alvo?

Christian: O livro foi escrito para meus alunos de quarto ano, que pela primeira vez tem um paciente diante de si. É uma maneira de colocá-los diante da variedade de formas e de perspectivas pelas quais um problema clínico pode ser colocado, um repertório histórico de problemas, de soluções de temas, que se poderá encontrar na clínica. Mas tenho tido uma ótima recepção de não clínicos, não psicoterapeutas, que lêem o trabalho como um romance. Afinal era assim que gostaria que ele fosse recebido desde o início, e que ele fosse no mínimo tão divertido para o leitor quanto foi para mim escrevê-lo.

Entrevista por Érika Yukari Ferreira Kamikava kinha.kamikava@gmail.com

Edição por Victor Augusto Souza victoraugustodesouza91@gmail.com

 

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