Tradução

A engenharia do consentimento

Daniel C. Avila2

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo

Nota Introdutória

Em 2002, a BBC transmitiu uma série de documentários a respeito da recepção e da aplicação das teorias de Sigmund Freud nos Estados Unidos e Grã-Bretanha. The Century of the Self pretendia expor de que maneira as ideias do fundador da psicanálise haviam sido exploradas não apenas por médicos e psicólogos, mas também por organizadores de campanhas e políticos, afetando a  representação de democracia com noções como inconsciente, desejo e neurose. Segundo seu produtor, Adam Curtis (2002), seria uma “série sobre como aqueles no poder na América pós-guerra usaram as teorias de Freud sobre a mente inconsciente para sujeitar e controlar as massas”.

Com capítulos dedicados aos herdeiros da psicanálise no mundo anglosaxão como Wilhelm Reich e Anna Freud, além de contar com a participação periférica de outros psicanalistas importantes como Ernest Jones e Ernst Federn, a série também apresentou um personagem geralmente desconhecido pelo público não especializado: Edward Louis Bernays, sobrinho em segundo grau de Freud. 35 anos mais jovem que seu ilustre tio, Bernays nasceu em Viena, de onde imediatamente partira com a família para Nova York. Trabalhando como agente de imprensa para diversas personalidades, entre elas o tenor italiano Enrico Caruso, Bernays sempre admirou o trabalho de seu parente mais famoso, visitando-o freqüentemente em feriados e celebrações, apesar da resistência de Freud em deixar o continente europeu.

Em 1917, quando os Estados Unidos declararam guerra à Áustria e aos outros países da Tríplice Aliança, Bernays foi convidado a participar do Comitê de Informação Pública, órgão criado pelo governo norte-americano com o objetivo de divulgar à população o esforço de guerra em promover a democracia em todo o mundo. Com apenas 27 anos, ele integrou a comitiva que acompanhou o presidente Woodrow Wilson na conferência de paz em Paris, atestando seu desempenho excepcional no contato com o público.

No retorno aos Estados Unidos, Bernays se perguntou se a propaganda, tão efetiva nos tempos de guerra, poderia ser usada também durante a paz. Assim, chegando a Nova York passou a oferecer às empresas norte-americana seus serviços de Relações Públicas, profissão que ele recém inventara. Para tal função havia sido decisiva a leitura de A general introduction to psycho-analysis3, com que Freud presenteou seu sobrinho em troca de uma caixa de charutos que este lhe havia mandado de Paris. Bernays propunha que as Relações Públicas poderiam empregar as ideias da psicanálise na solução de problemas de consumo que surgiam na florescente sociedade industrial que brotava no pósguerra. É exemplar, portanto, o caso de uma empresa de preparados para bolos que recorreu aos seus serviços devido ao consumo insatisfatório de seus produtos. Lendo as instruções da caixa, ele simplesmente teria dito: “acrescente um ovo à receita”. As vendas cresceram de forma surpreendente, mas segredo foi revelado somente muitos anos depois. Bernays havia intuído que as mulheres donas-de-casa – potencial público alvo do produto – seriam inconscientemente tomadas de culpa por oferecer a seus maridos um bolo do qual elas haviam participado tão pouco, por mais prático que fosse o produto. Acrescentando um ovo, representação da fertilidade, tal problema seria eliminado, e o preparado passou a ser consumido em larga escala.

A partir de sua experiência profissional, Bernays passou a publicar seus próprios escritos, entre os quais os fundamentais Crystallizing Public Opinion, de 1923 e Propaganda, de 1928. O artigo aqui traduzido foi publicado em 1947 nos Anals of the American Academy of Political and Social Science, organização fundada na Filadélfia em 1889 por docentes da University of Pennsylvania com o objetivo de difundir as ciências sociais. Tais escritos ajudaram a difundir amplamente as Relações Públicas e, em 1923, a University of New York abriu o primeiro curso, organizado pelo próprio Bernays, a respeito do tema.

Do outro lado do Atlântico, em contraste com o sucesso do sobrinho, Freud enfrentava uma situação financeiramente precária em uma Viena que ainda arcava com as conseqüências da perda da guerra. A crise econômica e uma inflação exorbitante levaram Freud a gastar todas suas economias e, próximo da falência, ele pediu auxílio a Bernays. A resposta veio na forma de um contrato para que as obras completas de Freud fossem publicadas pela primeira vez na América. Como Pat Jackson, conselheiro de Relações Públicas e colega de Bernays, admite no documentário, ele não apenas fez os livros serem publicados como também se tornou um “agente” de Freud, promovendo e divulgando-os, “fazendo-os polêmicos”, e tornando a psicanálise conhecida e aceita junto à sociedade norte-americana. Bernays também acreditava que Freud deveria se esforçar em autopromover-se nos Estados Unidos, e propôs que o tio escrevesse um artigo à revista feminina Cosmopolitan – que ele representava – com o título O lugar mental da mulher no lar. Segundo Curtis, a proposta teria enfurecido Freud, que a considerou impensável e vulgar. Não houve resposta, e eles nunca mais se falaram.

Muitas atuações posteriores de Bernays foram alvo de severas críticas, como uma campanha para estimular as mulheres a fumar ou seu papel no golpe de Estado da Guatemala em 1953, que culminou com a derrubada do presidente Jacobo Arbenz, eleito com a promessa de promover a reforma agrária em terras da United Fruit Company. Por meio dos jornais, Bernays foi capaz de aumentar o apoio da população ao golpe e à invasão do exército norte-americano , porém não pôde evitar a guerra civil que durou 36 anos e resultou em mais de um milhão de guatemaltecos mortos. Suas obras, ademais, foram empregadas em diversos fins que o próprio Bernays não esperava. Ele teria ficado chocado, por exemplo, ao descobrir que Goebbels lera Crystallizing Public Opinion para planejar o extermínio dos judeus da Alemanha nazista e aumentar o apoio da população alemã a tal atrocidade.

Os livros de Bernays, bem como os textos ditos sociológicos de Freud, passaram a ser lidos não apenas pelos grandes empresários e publicitários norte-americanos. Eles prontamente influenciaram jornalistas e intelectuais, e fomentaram discussões a respeito da capacidade das massas em participar dos processos políticos sem se comportar como uma turba incontrolável, capaz de instituir o caos e destruir governos, como se pensava que havia ocorrido na Rússia. Se os seres humanos eram verdadeiramente conduzidos por forças irracionais, agressivas e inconscientes, como esperar que as massas pudessem ser “conscientizadas” e decidir o futuro de uma nação? Isso ia de encontro com uma série de dúvidas que Bernays compartilhava a respeito das possibilidades da democracia em produzir efeitos socialmente positivos, e sua proposta de uma “engenharia do consentimento” se apresentava como a solução necessária ao problema. A perda da comunicação com os líderes, que proliferavam na disputa ideológica contemporânea pelo bem público, bem como a impossibilidade de uma educação capaz de incutir na multidão um verdadeiro juízo político esclarecido, haviam alterado a concepção democrática clássica. Tal mutação justificava o uso da engenharia do consentimento por políticos que, por meio de técnicas psicológicas e de comunicação para a manipulação da opinião pública, deveriam produzir entre as massas um genuíno sentimento de sociedade. Assim como havia feito com questões relativas ao consumo de produtos, Bernays acreditava poder convencer as massas a abandonarem sua agressividade primária e perseguirem um fim socialmente desejável, em um governo sintonizado com suas necessidades de consumo e de felicidade. Livrando as pessoas das frustrações diárias e controlando desejo irracional por meio da engenharia do consentimento, os políticos e empresários eliminariam ao máximo as perturbações sociais, soterrando-as sob um constante bem-estar e prazer. Ele definiu esse modelo da sociedade como Democracity, a cidade verdadeiramente democrática, uma utopia da liberdade e do capitalismo.

A Democracity foi apresentada ao público na Feira Mundial de Nova York em 1939 – evento do qual Bernays fazia parte da organização -, na forma de um imenso edifício de forma esférica, na qual era exibida uma maquete futurista da sociedade norte-americana, elaborada pela General Motors. Ao contrário das edições anteriores da Feira Mundial, e contrariando as opiniões de cientistas como Albert Einstein, essa era dedicada especialmente à apresentação e lançamento dos produtos que fariam parte dos lares do futuro, em lugar das tradicionais exibições dos últimos avanços científicos. O evento foi um sucesso de público, atraindo mais de 44 milhões de pessoas. Além de representar o ápice da carreira de Bernays, ele também retratou um futuro brilhante para uma sociedade que vislumbrava a iminência de uma segunda guerra mundial. Ele morreu em Cambridge, no dia 9 de março de 1995, oito meses antes de completar 104 anos.

Bernays é um personagem tão sombrio quanto fundamental para compreender o mundo contemporâneo. Como ele mesmo assume, sem falsa modéstia, “é impossível superestimar a importância da engenharia do consentimento; ela afeta quase todo aspecto de nossas vidas diárias”. Suas ideias acompanharam intersticialmente o desenvolvimento da política e da economia do século XX. Elas oferecem uma nova perspectiva ao pensamento político clássico: platéia, audiência e público são adotadas por ele como categorias de sujeito político, em lugar de povo, massa etc; em lugar da discussão filosófica tradicional a respeito de quem seriam as mãos e as pernas do soberano – que fornecem a sua força – Bernays propõe uma nova anatomia do poder, baseada nos olhos e ouvidos, na força da palavra. Sua verdadeira contribuição, contudo, permanece todavia demasiado obscura entre as correntes subterrâneas do pensamento político, o que nos impede de avaliarmos qual foi seu verdadeiro papel naquilo que se convencionou chamar de “o fator subjetivo da história”. O objetivo desta tradução é, portanto, introduzir e apresentar uma parte de seu pensamento, de modo que outras investigações possam ser empreendidas a partir de suas linhas.

A engenharia do consentimento

Edward L. Bernays

A liberdade de expressão e seu corolário democrático, uma imprensa livre, expandiu tacitamente nossa Carta de Direitos4 para incluir o direito à persuasão. Esse desenvolvimento foi um resultado inevitável da expansão da mídia de livre expressão e persuasão, definidas em outros artigos nesse volume. Todas essas mídias oferecem portas abertas à opinião pública. Qualquer um de nós pode, por meio dessas mídias, influenciar as atitudes e ações de nossos companheiros cidadãos.

A tremenda expansão das comunicações nos Estados Unidos deu a essa nação o aparato mais efetivo e penetrante para a transmissão de ideias. Todo residente está constantemente exposto ao impacto de nossa vasta rede de comunicações, que alcança cada canto do país, não importa quão remoto ou isolado esteja. As palavras martelam continuamente os olhos e ouvidos da América. Os Estados Unidos tornou-se uma pequena sala, onde um simples murmúrio é ampliado milhares de vezes.

O conhecimento de como usar esse enorme sistema de amplificação torna-se uma preocupação primária para aqueles interessados em uma ação socialmente construtiva.

Existem duas divisões principais desse sistema de comunicações que mantém a coesão social. No primeiro nível estão as mídias comerciais. Quase 1.800 jornais diários nos Estados Unidos têm uma circulação combinada de mais ou menos 44.000.000 exemplares. Existem aproximadamente 10.000 jornais semanais e quase 6.000 revistas. Aproximadamente 2.000 estações de rádio de diversos tipos transmitem para os 60.000.000 de receptores da nação. Aproximadamente 16.500 cinemas possuem a capacidade de quase 10.500.000 lugares. Uma avalanche de livros e panfletos é publicada anualmente. O país está coberto de publicidades, santinhos, flyers e propaganda por correspondência. Mesas redondas, painéis e fóruns, salas de aula, assembléias legislativas e plataformas públicas – toda e qualquer mídia, dia após dia, espalha a palavra, a palavra de alguém.

No segundo nível estão as mídias especializadas, operadas e de propriedade dos muitos grupos organizados deste país. Quase todos eles (e muitas de suas subdivisões) possuem seus próprios sistemas de comunicações. Eles disseminam ideias não apenas por meio da escrita formal em relatórios, memorandos, boletins especiais e similares, mas também por meio de palestras, encontros, discussões e conversas.


Liderança por meio da comunicação

Essa rede de comunicações, por vezes duplicadora, esquadrinhadora e solapadora, é uma condição de fato, não teoria. Devemos reconhecer a significação das comunicações modernas não somente como uma rede mecânica e altamente organizada, mas como uma potente força para o bem social ou um possível mal. Podemos determinar se essa rede será empregada, em sua maior extensão, para fins sociais benéficos.

Somente aprimorando as técnicas de comunicação, a liderança pode ser frutífera no vasto complexo que é a moderna democracia nos Estados Unidos. Em uma época anterior, em uma sociedade que era pequena geograficamente e com uma população mais homogênea, um líder era geralmente conhecido pessoalmente por seus seguidores; havia uma relação visual entre eles. A comunicação era realizada principalmente pelo anúncio pessoal a uma platéia ou por meio de uma imprensa relativamente primitiva. Livros, panfletos e jornais atingiam um segmento alfabetizado muito pequeno do público.

Estamos cansados de ouvir repetidas vezes o desgastado clichê “O mundo ficou menor”; mas esse assim chamado truísmo não é realmente verdadeiro, de qualquer modo. O mundo ficou igualmente menor e muito maior. Suas fronteiras físicas foram expandidas. Os líderes de hoje se tornaram fisicamente mais remotos do público; porém, ao mesmo tempo o público possui uma familiaridade muito maior com esses líderes por meio do sistema de comunicações modernas. Os líderes de hoje são tão potentes quanto sempre foram.

Por outro lado, pelo uso desse sistema, que se expandiu constantemente como resultado do desenvolvimento tecnológico, os líderes se tornaram capazes de superar os problemas da distância geográfica e da estratificação social para atingir seus públicos. Por debaixo de muito dessa expansão, e sobretudo por causa da sua existência na presente forma, está uma ampla e enormemente rápida difusão da alfabetização.

Líderes podem ser os porta-vozes de muitos pontos de vista diferentes. Eles podem dirigir as atividades de grupos organizados principais tais como indústria, trabalho ou unidades de governo. Eles podem disputar uns com os outros em batalhas pela boa vontade do público; ou eles podem, representando divisões no interior das unidades maiores, competir entre si. Tais líderes, com a ajuda de técnicos no campo, que se especializaram em utilizar os canais da comunicação, têm sido capazes de realizar decidida e cientificamente o que denominamos “a engenharia do consentimento”.


A abordagem engenherística

Essa frase, de uma forma simplificada, resume o uso de uma abordagem de engenharia – isto é, a ação baseada somente no conhecimento aprofundado de uma situação e na aplicação de princípios científicos e práticas comprovadas para lograr que pessoas apóiem ideias e programas. Qualquer pessoa ou organização depende, em última instância, da aprovação pública e encara, portanto, o problema de engendrar o consentimento do público a um programa ou objetivo. Esperamos que nossos representantes eleitos tentem engendrar nosso consentimento – pela rede de comunicações aberta a eles – às medidas que propõem. Rejeitamos o autoritarismo ou a arregimentação do governo, mas estamos ansiosos por praticar a ação sugerida a nós pela palavra escrita ou falada. A engenharia do consentimento é justamente a essência do processo democrático, a liberdade de persuadir e sugestionar. As liberdades de expressão, imprensa, petição e reunião, as liberdades que fazem a engenharia do consentimento possível, estão entre as mais celebradas garantias da Constituição dos Estados Unidos.

A engenharia do consentimento deveria ser baseada teórica e praticamente no entendimento daqueles sobre os quais deseja se impor. Mas às vezes é impossível alcançar decisões em conjunto baseadas na compreensão dos fatos por todas as pessoas. O adulto norte-americano médio possui apenas seis anos de escolaridade atrás de si. Com a pressão de crises e decisões a serem tomadas, um líder freqüentemente não pode esperar que o povo atinja até mesmo um nível geral de entendimento. Em certos casos, líderes democráticos devem fazer a sua parte em guiar o público, por meio da engenharia do consentimento, em direção a objetivos e valores socialmente construtivos. Esse papel naturalmente impõe sobre eles a obrigação de usar os processos educacionais, bem como outras técnicas disponíveis, para produzir um entendimento tão completo quanto possível.

A engenharia do consentimento não deve, sob nenhuma circunstância, suplantar ou substituir as funções do sistema educacional, seja ele formal ou informal, em determinar o entendimento do povo como uma base para sua ação. Muitas vezes, a engenharia do consentimento efetivamente complementa o processo educacional. Se os padrões educacionais mais altos prevalecessem neste país, e o entendimento fosse alcançado, essa abordagem ainda assim conservaria seu valor.

Mesmo em uma sociedade de um padrão educacional perfeccionista, o progresso igualitário não seria obtido em todos os campos. Haveria sempre defasagens, pontos-cegos, e debilidades; e a engenharia do consentimento seria ainda essencial. A engenharia do consentimento será sempre necessária como um adjunto, ou um parceiro, do processo educacional.


A importância da engenharia do consentimento

Hoje é impossível superestimar a importância da engenharia do consentimento; ela afeta quase todo aspecto de nossas vidas diárias. Quando usada para propósitos sociais, ela está entre nossas contribuições mais valorosas para o funcionamento eficiente da sociedade moderna. As técnicas podem ser subvertidas; demagogos podem utilizá-las para propósitos antidemocráticos com tanto sucesso quanto aqueles que as empregam para fins socialmente desejáveis. O líder responsável, de modo a realizar objetivos sociais, deve portanto estar constantemente alerta às possibilidades de subversão. Ele deve aplicar suas energias para dominar o conhecimento operacional da engenharia do consentimento, e sobrepujar seus oponentes no interesse público.

Está claro que um líder em uma democracia não necessita sempre possuir as qualidades de um Daniel Webster ou um Henry Clay5. Ele não precisa estar visível ou mesmo audível às suas platéias. Ele pode conduzi-las indiretamente, simplesmente utilizando efetivamente os meios atuais de estabelecer contato com os olhos e ouvidos daquelas platéias. Mesmo método direto, ou que poderia ser chamado de antiquado, de falar a uma platéia está, na maioria das vezes, removido; em geral o discurso público é transmitido mecanicamente, através da mídia de massa do rádio, filme e televisão.

Durante a I Guerra Mundial, o famoso Comitê de Informação Pública6, comandado por George Creel, dramatizou na consciência do público a efetividade da guerra de palavras. O Comitê ajudou a construir a moral de seu próprio povo, para vencer os indiferentes, e calar o inimigo. Ele ajudou a vencer aquela guerra. Mas em comparação com a enorme extensão da palavra na II Guerra Mundial, o Comitê de Informação Pública empregou ferramentas primitivas para uma importante tarefa. O Escritório de Informação de Guerra7, sozinho, provavelmente transmitiu mais palavras de suas instalações em ondas curtas durante a guerra do que aquelas que foram escritas por toda a equipe de George Creel.

Enquanto esta abordagem se tornava reconhecida como um fator chave em influenciar o pensamento público, milhares de peritos em muitos campos relacionados vieram à frente – especialistas como redatores, editores, propagandistas, lobbystas e partidos políticos, educadores e publicitários. Durante a I Guerra Mundial e os imediatos anos pós-guerra, uma nova profissão se desenvolveu em resposta à demanda de especialistas treinados e habilidosos no aconselhamento sobre a técnica da engenharia do consentimento público, uma profissão que oferecesse conselhos em relações públicas.

O ponto de vista profissional

Em 1923, defini essa profissão em meu livro, Cristallizing Public Opinion, e no mesmo ano, na Universidade de Nova York, dei o primeiro curso sobre o tema. Nos quase um quarto de século que se passaram desde então, a profissão se tornou reconhecida no país e se espalhou por outros países democráticos onde a livre comunicação e a competição de ideias no mercado são permitidas. A profissão possui a sua literatura, seus treinamentos, um número cada vez maior de praticantes, e um crescente reconhecimento de sua responsabilidade social.

Nos Estados Unidos, a profissão lida especificamente com os problemas de relacionamento entre um grupo e seu público. Sua função principal é analisar objetiva e realisticamente a posição de seu cliente vis-a-vis8 com um público e aconselhar as correções necessárias nas atitudes e abordagens do cliente com relação àqueles público. É, assim, um instrumento na busca de ajustes se existe qualquer desajuste nas relações. Deve-se lembrar, claro, que a boa vontade, a base do ajuste duradouro, pode ser preservada a longo prazo somente por aqueles cujas ações a garantem. Mas isso não evita que aqueles que não merecem boa vontade a conquistem e a mantenham o suficiente para produzir uma série de danos.

O conselheiro de relações públicas tem uma responsabilidade profissional para levar adiante somente aqueles cujas ideias ele pode respeitar, e não promover causas ou aceitar tarefas de clientes que ele considere antisociais.

Planejando uma campanha

Assim como um engenheiro civil deve analisar cada elemento de uma situação antes de construir uma ponte, o engenheiro do consentimento, de modo a atingir um objetivo socialmente valoroso, deve operar de uma fundação de ações profundamente planejadas. Vamos assumir que ele está engajado em uma tarefa específica. Seus planos devem ser baseados em quatro pré-requisitos:

1. Cálculo de recursos, tanto humanos quanto físicos; isto é, a força humana, o dinheiro, e o tempo disponível para o propósito;

2. Um conhecimento do tema tão aprofundado quanto possível;

3. A determinação de objetivos, sujeitos a possível mudança após a pesquisa; especificamente, o que deve ser alcançado, com quem e através de quem.

4. Pesquisa sobre o público para determinar porque e como ele reage, tanto individualmente quanto em grupo.

Somente após esse trabalho de base ter sido firmemente consolidado, é possível saber se os objetivos são realisticamente alcançáveis. Só então o engenheiro do consentimento utiliza seus recursos humanos, dinheiro e tempo, além da mídia disponível. Estratégia, organização e atividades serão guiadas pela realidade da situação.

A tarefa deve primeiro ser relacionada com o orçamento disponível para a força humana e mecânica. Em termos de habilidades, o engenheiro do consentimento possui certos talentos – criativos, administrativos, executivos – e deve saber quais são esses. Ele também deveria possuir um conhecimento claro de suas limitações. As qualidades humanas precisam ser implementadas pela área de trabalho e o equipamento de escritório. Todas necessidades materiais devem ser cobertas pelo orçamento.

Acima de tudo, uma vez que o orçamento tenha sido estabelecido, e antes que um primeiro passo seja dado, o campo do conhecimento que lida com o tema deveria ser extensamente explorado. Isso significa primeiramente coletar e codificar um estoque de informação que estará disponível para uso prático, eficiente. Esse trabalho preliminar pode ser tedioso e exigente, mas não pode ser deixado de lado; pois o engenheiro do consentimento deveria ser, em larga medida, equipado com fatos, com verdades, com evidências, antes de começar a se expor a um público.

O engenheiro do consentimento deveria munir-se com os livros de referência em relações públicas, publicidade e opinião pública: N. W. Ayer & Son’s Directory of Newspapers and Periodicals, o Editor and Publisher Year Book, o Radio Daily Annual, o Congressional Directory, o Chicago Daily News Almanac, o World Almanac – e, evidentemente, a lista telefônica. (O World Almanac, por exemplo, contém listas das milhares de associações nos Estados Unidos – uma seção transversal do país.) Estes e outros volumes oferecem uma biblioteca básica necessária para um planejamento efetivo.

Nesse ponto do trabalho preparatório, o engenheiro do consentimento deveria considerar os objetivos da sua atividade. Ele deveria ter, de forma clara na mente, a todo momento, aonde ele precisamente está indo e o que ele deseja realizar. Ele pode intensificar atitudes favoráveis já existentes; ele pode induzir essas atitudes favoráveis a tomar ações construtivas; ele pode converter descrentes; ele pode deter certos pontos de vista antagônicos.

Os objetivos deveriam ser definidos exatamente. Em uma campanha da Cruz Vermelha, por exemplo, um tempo limite e a quantia de dinheiro a ser levantado são definidas de início. Resultados muito melhores são obtidos em uma campanha de fôlego, quando o apelo é feito pela ajuda às pessoas de um país específico ou localidade, em lugar de uma área geral como a Europa ou a Ásia.

Estudando o público

O objetivo deve ser, a todo momento, relacionado com o público cujo consentimento se deseja obter. Esse público são pessoas, mas o que eles sabem? Quais são as suas atitudes presentes com relação à situação que é alvo do engenheiro do consentimento? Quais são os impulsos que governam tais atitudes? Que ideias as pessoas estão prontas para absorver? O que elas estão prontas para fazer, dado um estímulo efetivo? Elas obtém suas ideias de bartenders, carteiros, garçonetes, da Little Orphan Annie 9 , ou do editorial do New York Times? Quais líderes de grupo ou formadores de opinião efetivamente influenciam os processos cognitivos de quais seguidores? Qual é o fluxo de ideias – de quem para quem? Em que extensão autoridade, evidência factual, precisão, razão, tradição e emoção desempenham um papel na aceitação de tais ideias?

As atitudes do público, assunções, ideias ou preconceitos derivam de influencias definidas. Deve-se tentar encontrar quais são elas em qualquer situação na qual se esteja trabalhando.

Para que o engenheiro do consentimento se planeje efetivamente ele deve também saber as formações de grupo com as quais ele vai se deparar, pois uma sociedade democrática é apenas um frouxo agregado de grupos constituintes. Certos indivíduos com interesses sociais e/ou profissionais comuns formam grupos voluntariamente. Esses incluem grandes organizações profissionais de médicos, advogados, enfermeiras e similares; as associações de camponeses e os sindicatos; os clubes femininos; os grupos religiosos; e os milhares de clubes e fraternidades. Grupos formais, como as unidades políticas, podem variar desde minorias organizadas às grandes corporações políticas amorfas que são nossos dois principais partidos. Hoje existe até mesmo outra categoria de público que devem ser mantidos em mente pelo engenheiro do consentimento. Os leitores do New Republic 10 ou os ouvintes dos programas de Raymond Swing 11 são também grupos voluntários, embora desorganizados, assim como os membros de um sindicato ou do Rotary Club.

Para funcionar bem, quase todos os grupos elegem e selecionam líderes que geralmente permanecem em uma posição de controle por intervalos de tempo conhecidos. Esses líderes refletem as ambições de seus seguidores e trabalham para promover seus interesses. Em uma sociedade democrática, eles podem apenas liderá-los tão longe quanto, e na direção na qual eles desejam ir. Para influenciar o público, o engenheiro do consentimento trabalha com e por meio dos líderes de grupo e formadores de opinião em todos os níveis.

Valor e técnicas de pesquisa

Para atingir um conhecimento preciso e operante da receptividade da mente pública para uma ideia ou ideias, é necessário engajar-se em uma pesquisa meticulosa. Tal pesquisa deve se dirigir ao estabelecimento de um denominador comum entre o pesquisador e o público. Ela deve desvelar as realidades das situações objetivas nas quais o engenheiro do consentimento tem que trabalhar. Completada, ela fornece um projeto de ação e esclarece a questão de quem faz o quê, onde, quando e porque. Ela irá indicar a estratégia geral a ser empregada, os temas a serem ressaltados, a organização necessária, o uso da mídia, e a tática dia a dia. Ela deve, ademais, indicar quanto tempo levará para ganhar o público e quais são as suas tendências de pensamento, a curto e longo prazo. Ela desvendará motivações conscientes e subconscientes no pensamento do público, e as ações, palavras e imagens que têm como efeito essas motivações. Ela relevará a atenção pública, a alta ou baixa visibilidade de ideias na mente pública.

A pesquisa pode indicar a necessidade de modificar os objetivos originais, para dilatar ou contrair o fim planejado, ou para mudar ações e métodos. Em suma, ela fornece o equivalente à carta de navegação do marinheiro, o projeto do arquiteto ou o mapa de estradas do motorista.

A pesquisa de opinião pública pode ser conduzida por meio de questionários, entrevistas pessoais ou enquetes. Contatos devem ser feitos com líderes comerciais, chefes de sindicatos e líderes educacionais, todos os quais podem querer ajudar o engenheiro do consentimento. Os chefes dos grupos profissionais nas comunidades – a associação médica, os arquitetos, os engenheiros – devem ser todos questionados. Assim também executivos de serviços sociais, oficiais de clubes femininos e líderes religiosos. Redatores, editores e artistas de rádio e cinema podem ser persuadidos a discutir com o engenheiro do consentimento seus objetivos e o apelo e ângulos que afetam esses líderes e suas audiências. Os sindicatos locais ou associações de barbeiros, ferroviários, trabalhadores têxteis e taxistas podem estar ansiosos por cooperar. Líderes de base são importantes.

Tal investigação possui um efeito de cano duplo. O engenheiro do consentimento aprende quais líderes de grupo sabem ou não sabem, o quanto eles irão cooperar com ele, a mídia que os atinge, apelos que podem ser válidos e os preconceitos, as lendas, ou fatos pelos quais eles vivem. Ele é capaz de determinar simultaneamente se eles conduzirão ou não campanhas de informação em direito próprio, e assim complementar suas atividades.

Temas, estratégia e organização

Agora que o trabalho preliminar foi feito, será possível seguir ao planejamento de verdade. Da pesquisa de opinião emergirão os temas principais da estratégia. Esses temas contém as ideias a serem veiculadas; elas guiam as linhas de abordagem do público; e elas devem ser expressas por meio da mídia que será usada. Os temas estão sempre presentes, mas são intangíveis – comparáveis àquilo que na ficção é chamado de “story line“.

Para ser bem sucedido, os temas devem apelar aos motivos do público. Motivos são a ativação das pressões conscientes e subconcientes criadas pela força dos desejos. Psicólogos isolaram um número de poderosos apelos, cuja validade vêm sido repetidamente provada na aplicação prática.

Uma vez que os temas estejam estabelecidos, em que tipo de campanha eles devem ser usados? A situação pode pedir uma guerra-relâmpago12 ou uma batalha contínua, a combinação de ambas ou outra estratégia. Pode ser necessário desenvolver um plano de ação para uma eleição que terminará em poucas semanas ou meses, ou para uma campanha que pode levar anos, como o esforço em diminuir a taxa de mortalidade por tuberculose. O planejamento da persuasão de massa é governado por muitos fatores que exigem todas as aptidões em treinamento, experiência, habilidade e julgamento. O planejamento deve ser flexível e adaptável a diversas condições.

Quando os planos tiverem sido aperfeiçoados, passa-se à organização de recursos, que devem ser obtidos de forma adiantada para prover a força humana, o dinheiro e o equipamento físico necessários. A organização também se refere às atividades de quaisquer especialistas que podem ser convocados de tempos em tempos como pesquisadores de opinião, captadores de recursos, publicitários, peritos em radio e cinema, especialistas em grupos de mulheres, grupos estrangeiros e similares.


As táticas

Não pense em táticas em termos de abordagens segmentadas. O problema não é conseguir artigos em jornais, obter tempo de rádio ou arranjar um cine-jornal em um filme; é preferível colocar em marcha uma ampla atividade, cujo sucesso depende em interligar todas as fases e elementos da estratégia proposta, implementada pelas táticas que são calculadas para o momento de máxima efetividade. Uma ação atrasada em um dia pode cair de cara no chão. Um sentido de tempo habilidoso e imaginativo determinou o sucesso de muitos movimentos de massa e campanhas, o fenômeno familiar tão típico do padrão de comportamento do povo norte-americano.

Neste ponto será possível planejar as táticas do programa, isto é, decidir como os temas serão disseminados sobre os transportadores de ideias, as redes de comunicação.

A ênfase das atividades do engenheiro do consentimento deve ser na palavra escrita e falada, guiadas pela mídia e desenhadas para a platéia à qual ele se dirige. Ele deve estar seguro que seu material é adequado ao seu público. Ele deve preparar cópias escritas em linguagem simples e frases de dezesseis palavras para o público de escolaridade média. Algumas cópias serão destinadas à compreensão de pessoas que tiveram dezessete anos de escolaridade. Ele deve se familiarizar com toda a mídia e saber como supri-la de material adequado em quantidade e qualidade.

Primeiramente, contudo, o engenheiro do consentimento deve criar notícias. Notícias não são algo inanimado. É a evidência que produz notícias e as notícias, por sua vez, modelam as atitudes e as ações das pessoas. Um bom critério para definir se algo é ou não é notícia é se o evento se sobressai dos padrões de rotina. O desenvolvimento de eventos e circunstâncias que não são rotina é uma das funções básicas do engenheiro do consentimento. Eventos assim planejados podem ser projetados sobre os sistemas de comunicação para infinitamente mais pessoas do que aquelas que realmente participam dele, e tais eventos dramatizam vividamente ideias para aqueles que não testemunharam os eventos.

O evento manejado imaginariamente pode competir pela atenção de forma bem sucedida com outros eventos. Eventos dignos de notícia envolvendo pessoas geralmente não acontecem por acidente. Eles são planejados deliberadamente para cumprir um propósito, para influenciar nossas ideias e ações.

Os eventos podem também ser arranjados em uma reação em cadeia. Atando as energias dos líderes de grupo, o engenheiro do consentimento pode estimulá-los a pôr em movimento suas atividades. Eles organizarão eventos adicionais, especializados e auxiliares, todos os quais dramatizarão ainda mais o tema básico.


Conclusão

A comunicação é a chave da engenharia social para a ação social. Mas não é suficiente lançar folhetos e boletins em mimeógrafos, anunciar nos jornais ou encher as ondas de rádio com conversas. Palavras, sons e imagens fazem pouco a não ser que sejam as ferramentas de um plano profundamente pensado e de métodos cuidadosamente organizados. Se os planos forem bem formulados e um uso adequado é feito deles, as ideias veiculadas pelas palavras se tornarão realmente parte e componente das pessoas.

Quando o público está convencido da veracidade de uma ideia, ele seguirá para a ação. As pessoas traduzem uma ideia em ação sugerida pela ideia mesma, seja ela ideológica, política ou social. Eles podem adotar uma filosofia que sublinha tolerância racial e religiosa; elas podem votar em um New Deal; ou elas podem organizar um boicote de consumidores. Mas tais resultados não acontecem simplesmente. Em uma democracia eles podem ser alcançados principalmente pela engenharia do consentimento.

Edward L. Bernays, Nova York, em parceria com Doris E. Fleischman, é conselheiro em relações públicas, uma profissão que foi fundamental em criar. Nessa capacidade ele serviu governos, associações comerciais e organizações com e sem fins lucrativos. É autor de Propaganda, Crystallizing Public Opinion, Speak Up for Democracy e Take Your Place at the Peace Table, e editor da Outline of Careers.

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – daniel.avila@mail.com.

2 Bernays, E. L. (1947). The engineering of consent. The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, 250(1): 113-120. Copyright © (2010) by American Academy of Political & Social Science. Reprinted by permission of SAGE Publications, Inc.

3 N.T.: Publicado em português com o título de “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”.

4 N.T.: Bill of Rights, no original. Refere-se à Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos Estados Unidos, documento escrito por ocasião do primeiro Congresso daquele país, em 1789, e posteriormente anexado como as dez primeiras emendas da sua Constituição.

5 N.T.: Estadistas norte-americanos de princípios do século XIX, conhecidos por suas habilidades como oradores.

6 N.T.: Committee on Public Information, agência independente do governo dos Estados Unidos, criada entre 1917 e 1919 para influenciar a opinião pública no sentido do apoio à participação na I Guerra Mundial, empregando todas as mídias disponíveis para isso.

7 N.T.: Office of War Information, agência criada pelo governo dos Estados Unidos entre 1942 e 1945, responsável por divulgar notícias da II Guerra Mundial e, por meio de pôsteres e transmissões de rádio, promover o patriotismo, alertar contra espiões estrangeiros e incentivar o trabalho feminino no esforço de guerra.

8 N.T.: em francês no original

9 N.T.: Personagem de uma tirinha do Chicago Tribune, publicada desde 1924 e conhecida por apresentar um ponto de vista nacionalista, satirizando sindicatos e comunistas.

10 N.T.: Revista mensal sobre política e artes, representante das ideias de centro-esquerda.

11 N.T.: Jornalista e radialista norte-americano, correspondente durante a I e II Guerras Mundiais.

12 N.T.: Blitzkrieg, técnica militar que consiste no emprego de forças móveis em ataques rápidos e de surpresa, com o intuito de evitar que as forças inimigas tenham tempo de organizar a defesa.