07 set 2018

Não basta estar saudável (como uma pedra), mas é parte de ter saúde sentir-se e interpretar-se como saudável

Por Christian Dunker, Gauchazh, 7/9/2018

Muitos já observaram certa relação entre clima e saúde mental. Não creio que temperamento e temperatura tenham entre si outra relação a não ser o fato de que ambos criam em nós uma posição diante da mudança e da repetição, como que a dizer o que temos que aceitar, como um fato da vida, se está chovendo ou faz sol. Por exemplo, a maneira como eu descrevo uma pedra, se eu a chamo de stone ou de steine, se eu digo que ela contém vanádio ou chumbo, isso não altera em nada a pedra, ela mesma, em sua substância de “pedridade”. Ocorre que, em nossas experiências de sofrimento, a “substância” de nossa saúde mental parece desobedecer a essa regra simples. Se eu digo que meu vizinho é um “louco de pedra”, se eu leio um poema que me descreve como uma “pedra largada ao sol”, a versão que faço de mim e dos outros em relação a mim altera quem eu sou e como eu sofro. Deveríamos poder substituir descrições em terceira pessoa como: “Faltam 21 gramas de serotonina em seu cérebro” por descrições em primeira pessoa como “sinto-me triste e sem iniciativa, com dores nas costas e problemas para dormir”. Mas, na saúde mental, a descrição que o paciente faz dos sintomas altera ou constitui os sintomas eles mesmos.

Quando a Organização Mundial de Saúde redefiniu a saúde como “o mais completo estado de bem-estar bio-psico-social”, em vez de “ausência de doença”, isso parte da invenção de uma nova experiência de saúde. Não basta estar saudável (como uma pedra), mas é parte de ter saúde sentir-se e interpretar-se como saudável. Vemos, assim, como sofrer depende tanto da narrativa de sofrimento quanto de uma gramática de reconhecimento e ainda de uma espécie de pragmática pela qual compartilhamos, derrogamos ou legitimamos “quem” pode sofrer “como”. Se a experiência real de sofrimento depende de como falamos dela e de como ele é reconhecido, existe uma espécie de luta ou conflito entre diferentes narrativas nos ajudando a entender por que existe um corte de classe, raça e gênero que dá mais visibilidade a certas maneiras de sofrer do que a outras.

Entendemos também por que o “clima político” afeta nossas disposições de sofrimento. Isso não ocorre por causa de alguma substância tóxica no ar, que nos contamina com radiações de otimismo ou pessimismo, mas porque discursos políticos contêm necessariamente teorias de transformação. Eles não querem nos convencer apenas de que a tese A é melhor do que a B, mas de que as mudanças ocorrem segundo a causalidade C ou D — por exemplo, pela graça divina ou pelo trabalho dos homens. A teoria de que o problema do país são as “maçãs podres” e que, na hora que limparmos a casa, tudo melhora, não envolve apenas uma concepção sobre a institucionalidade do país. Ela produz uma certa relação com nós mesmos, com o cuidado e o destino que damos ao nosso sofrimento. Notemos como a teoria da maçãs podres é similar a pensar que o problema da sua vida são aqueles “quilinhos a mais”, ou que o que precisa mudar no seu marido é aquela “cervejinha de fim de semana” (que quase sempre vira uma “cervejona”).

Uma dificuldade no tratamento do sofrimento psíquico é que ele tende a se autoconfirmar, buscando a realidade que ele precisa para se fazer reconhecer

A teoria da purificação pensa a transformação como eliminação do agente tóxico. O mal vem de fora, ele não depende de nós nem foi criado por nós. Uma dificuldade no tratamento do sofrimento psíquico é que ele tende a se autoconfirmar, buscando a realidade que ele precisa para se fazer reconhecer. Disso decorre que as pessoas que sofrem carregam também suas próprias teorias de transformação. Teorias que são ao mesmo tempo políticas, estéticas, morais e religiosas. Se agarram a elas, como fonte segura dos problemas que têm pela frente e das soluções possíveis. A psicanálise se distingue, neste caso, não apenas por transformar o sofrimento segundo a narrativa e as expectativas de reconhecimento que cada um criou para si, mas alterar a própria “teoria” da transformação a qual estamos apegados.

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