
FOTO: NEXO JORNAL
A onda de casos de violência nas escolas brasileiras entre 2022 e 2023, além de denúncias recentes de episódios de racismo e bullying repercutem para além dos muros da escola: são fenômenos que indicam a propagação de um ambiente mais agressivo na educação brasileira.
Mais vigilância para conter a violência e expulsão em situações de racismo são algumas medidas que foram adotadas pelo poder público e por escolas nesses episódios. Porém, esse tipo de ação, sem uma atitude transformativa e de enfrentamento do conflito, gera ainda mais violência, e não soluciona os problemas, disse ao Nexo o psicanalista Christian Dunker, professor de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP (Universidade de São Paulo).
Na entrevista abaixo, parte de uma série sobre saúde mental e escolas, Dunker fala ao Nexo sobre aspectos que facilitam a propagação de um ambiente de conflito nas escolas, como isso impacta a saúde mental de crianças e adolescentes e quais os caminhos para zelar pelo bem-estar psíquico da comunidade escolar.
Entre 2022 e 2023, o Brasil viveu uma onda de ataques às escolas, um fenômeno esporádico até então. Na sua avaliação, esses episódios violentos traumatizaram as instituições de ensino brasileiras?
CHRISTIAN DUNKER Eu diria que, nas escolas que passaram por um evento desse tipo, é muito possível que tenha formações traumáticas. Mas isso não é nem obrigatório para todos os alunos nem detectável imediatamente. Há formações traumáticas que ficam incubadas, e só mais tarde vamos perceber que isso deixou um resíduo, uma fobia, um foco de angústia para uma criança, professor ou trabalhador da escola.
Há um outro efeito para a esfera geral, de uma percepção de que as escolas estão se tornando mais violentas, e de que há um conflito social que, eventualmente, está se enraizando nas escolas.
Imediatamente após alguns dos ataques, autoridades anunciaram medidas como reforço no policiamento e nas rondas escolares. Por que essas ações são as primeiras a serem apresentadas?
CHRISTIAN DUNKER Existe um certo roteiro mental de resposta rápida e emergencial ao acontecimento, que passa pela localização dos culpados e mobilização de respostas de aumento de segurança. E aí começa a se falar em colocar câmeras, detectores de metais, policiamento, que é a resposta óbvia e equivocada.
Conhecendo experiências de outros países, você sabe que isso não previne e, eventualmente, aumenta o estado e o sentimento de insegurança na escola. Porque você se confronta diariamente com o policial e sua arma, com o discurso das armas, com a ideia de que há um perigo rondando. Isso tem um custo psíquico. Você não faz isso sem pagar uma conta que nem percebe que está pagando. Às vezes, tem essa ilusão de que, quanto mais aparato de segurança, mais a gente se sente seguro. O que é uma equação problemática. Ter uma porta com chave é importante para se sentir seguro. Mas ter uma porta com cinco chaves, quatro chaves-tetra e um ferrolho, talvez faça a pessoa se sentir mais insegura do que segura.
O bullying é uma outra violência recorrente nas escolas brasileiras. Como e por que ela se estabelece nas instituições de educação?
CHRISTIAN DUNKER Vamos lembrar que escolas são instituições disciplinares. Elas nasceram junto com hospitais, prisões e conventos. Em geral, o bullying nas escolas é apoiado por uma certa sanção institucional. Não é explícito, ou um reforço. Mas escolas de excelência ainda guardam o resquício de que o bom aluno é o combatente, e que a mentalidade militar e bélica não é tão ruim.
Nas escolas onde há mais coerção institucional, tratamento impessoal, funcionamento de estrutura de empresa, onde o aluno é um número e um conjunto de tarefas, quanto mais puramente institucional e menos comunitária é uma escola, quanto mais violência nos níveis entre coordenação e professor, família e escola, donos e coordenadores, mais bullying no resultado final. É como se a galinha mais forte bicasse as outras e as outras fossem reproduzindo a bicada. Entra na maneira de funcionar da escola, o que gera um processo de exclusão, segregação, bullying, em geral tudo misturado, porque você está numa cultura de violência, que às vezes nem é percebida.
A soma desses episódios, mais as mudanças da pandemia de covid-19, geraram quais danos para a saúde mental de professores e alunos?
CHRISTIAN DUNKER A pandemia teve efeitos locais de produzir um deficit relacional, especialmente em determinadas faixas etárias. Mas eu acrescentaria nessa soma dois eventos muito brasileiros. O primeiro: a emergência nacional de um discurso sobre as armas. De facilitação do acesso, de que violência se combate com violência, de que os mais fortes vão impor sua lei e força aos mais fracos. Foram pelo menos cinco anos de ascensão do discurso sobre as armas. Lá atrás, a gente estava dizendo que isso iria aumentar feminicídio, violência nas escolas e violência doméstica. E agora, sem nenhuma surpresa, temos dados que estão referendando isso.
O segundo fator é uma espécie de confrontação inédita entre pais e escolas. Ou seja, a transposição de conflitos de natureza política, que depois se desdobrou para outras racionalidades. Isso se infiltrou na relação escolar, criando conflitos de pais na atitude de consumidores, exigindo que filhos mudem de classe, ou que o filho do outro seja punido. Esse é o estopim para essa atitude discursiva de inflar conflitos. A tensão entre famílias e escolas aumentou.
Como zelar pela saúde mental de crianças, adolescentes e docentes?
CHRISTIAN DUNKER Quando se fala em prevenção de saúde mental, a gente sabe que são necessárias iniciativas de caráter coletivo e social. Quatro fatores que se manifestam em um lugar tornam esse lugar vulnerável para riscos de vulnerabilidades de todo o tipo: assédio moral, assédio sexual, bullying e racismo. Enquanto a gente pensar que essas são questões apenas macropolíticas e de desigualdade, que de fato são, mas não só, não vai ficar claro que precisamos também de mediadores, de escuta, de professores e coordenadores que se disponham para escuta, encaminhamento e tratamento dessas questões no ambiente escolar.
O tratamento de escolas para casos de racismo, por exemplo, é de expulsão. É tratamento e escuta zero. É o tipo de solução que reforça a violência que você quer combater, porque não está tendo uma atitude pedagógica, transformativa, de enfrentamento do conflito, mas uma atitude punitiva.
Violência e conflitos favorecem a aparição de sintomas que podem indicar prejuízos na saúde mental. Mas, por outro lado, a gente tem notado uma industrialização da saúde mental, com excesso de diagnósticos, principalmente de autismo e TDAH (Transtorno de Deficit de Atenção e Hiperatividade), ligado a interesses que não são exclusivamente clínicos. Que corresponde a essa ideia de que a escola, pressionada, fica altamente tentada a chamar um psicólogo, psiquiatra e neurologista e aplicar planos terapêuticos na figura do empresário do TDAH, que são pessoas que empresariam patologias mentais e se apresentam como solução às escolas.
Não podemos desqualificar esses quadros, que causam sim sofrimento. Eles precisam de atenção e cuidado, mas, obviamente, está havendo um excesso.
É possível prevenir a violência dentro das escolas? Quais são as ações mais indicadas para isso?
CHRISTIAN DUNKER O consenso na área aponta, sim, para segurança, mas segurança comunitária. Que seja alguém que esteja integrado na paisagem escolar, que conviva com as pessoas, que saiba o nome das pessoas. Isso é melhor do que o policial anônimo armado na porta da escola.
Em segundo plano, uma coisa que ajuda muito a mitigar e eventualmente reduzir casos é a disponibilidade de escuta local. Para detectar casos que vão se anunciando, situações problemáticas, bullying mal-encaminhado. E nessa matéria, realmente, as iniciativas públicas estão deixando muito a desejar. O que a gente escuta é contratação precária de psicólogos, psicólogos trabalhando em sete escolas. Não adianta ter segurança sem uma certa estabilidade comunitária.
Presença de psicólogos nas escolas é algo básico, o Brasil está muito atrasado nisso. A situação das escolas públicas, e muitas particulares, é de que elas não têm esses profissionais. E, às vezes, quando elas têm, são psicólogos com uma atitude excessivamente clinicalista. Muito patologizante, muito orientada para detectar transtornos e suporte externo às escolas. Há de se pensar em mais psicólogos nas escolas, mas mais qualificação para esses psicólogos.
Por: Isadora Rupp, NEXO, 28/09/2024
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