O 6° Fórum de Políticas Públicas para Saúde Mental na Infância, promovido pela Fundação José Luiz Egydio Setúbal, discutiu nesta quarta-feira (2) o tema “Saúde Mental e as Comunidades Escolares”. O evento reuniu mais de 20 pesquisadores e gestores públicos em mesas de discussão sobre o tema.
Os debates organizados pela fundação, que atua na promoção da saúde infantil, abordaram o papel da comunidade escolar na saúde mental infantil, violências escolares e iniciativas privadas e públicas consideradas referência no combate e prevenção do problema. O Fórum pode ser assistido na íntegra aqui.
1 a cada 6
meninos e meninas entre 10 e 19 anos
vivem com algum tipo de transtorno mental
no Brasil, segundo estimativa da
Unicef, órgão da ONU para a infância
Neste texto, que encerra uma cobertura especial sobre saúde mental e escolas, o Nexo mostra quais são as principais discussões do tema na visão de pesquisadores que participaram do evento.
O que dizem os dados
Tratar de saúde mental de crianças e adolescentes é um desafio global, afirmou a neuropsiquiatra Chiara Servilli, técnica da OMS (Organização Mundial da Saúde) no departamento de saúde mental e uso de substâncias. Servilli participou remotamente de Genebra da primeira mesa do Festival, “A Promoção da Saúde Mental na Infância”.
De acordo com Servilli, números da organização dão conta de que 75% dos transtornos mentais começam antes dos 24 anos, o que torna central a atenção às crianças e adolescentes. A neuropsiquiatra afirmou que a OMS está para lançar um novo guia para saúde mental de jovens e crianças, que vai orientar respostas de acordo com a severidade dos sintomas.
Segundo o médico psiquiatra Rodrigo Bressan, 50% dos transtornos mentais começam antes dos 14 anos. “Psiquiatra de adulto acha que a depressão, a ansiedade, começou agora. Mas não. É uma coisa que já está lá faz tempo”, afirmou Bressan, que é professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e do King’s College, de Londres, e presidente do Instituto Ame Sua Mente. O atraso na leitura e na entrada da universidade, por exemplo, são algumas das consequências da ausência de tratamento.
80%
é o percentual de pessoas
no mundo com casos severos de
saúde mental que estão sem
tratamento, segundo a OMS
Tanto Bressan como Servilli afirmaram que o fator que mais dificulta o acesso a serviços de saúde mental por parte de crianças e adolescentes não é a falta de equipamentos públicos ou de atenção por parte da escola, mas o estigma e o preconceito em relação aos transtornos mentais.
“Quanto mais tarde a criança ou o adolescente recebem o tratamento, maiores as consequências”, disse Bressan. Ambos chamaram a atenção para o uso excessivo de celulares e telas. Para Servilli, “não tem cabimento” que dispositivos eletrônicos sejam permitidos em escolas.
Bressan disse que há vários estudos que mostram como a capacidade cognitiva cai conforme o aparelho está próximo. “Tem muitas coisas, como o TikTok e agora as bets, que vão além dos diagnósticos”, afirmou o médico.
Como os jovens lidam
Os desafios e perspectivas da saúde mental entre os jovens também foram debatidos no Fórum, em uma mesa formada por quem está no centro da questão, intitulada “A Saúde Mental das Juventudes: Desafios e Perspectivas”. Convidados como a poetisa Tawane Theodoro, que participa das batalhas de poesia desde 2016 e é organizadora de iniciativas como o Sarau do Capão, compartilharam iniciativas e suas experiências pessoais.
Atleta de basquete na infância e parte da adolescência, Theodoro contou que foi diagnosticada com ansiedade ao deixar o esporte profissional, mas relutou em procurar um psicólogo, mesmo com os encaminhamentos médicos.
“Eu jurava que tinha algo no coração. Depois entendi que a ansiedade veio com toda a mudança da minha vida, que era centrada no esporte e de repente deixou de ser. Meu corpo não entendeu. E isso me fez perceber o papel da atividade física, do sono e da alimentação na nossa saúde mental”, disse.
“Uma das grandes potências quando somos crianças é que a gente se encanta com as coisas. Saúde mental pode ser esse processo de se reencantar com a vida, mas com consciência da realidade e de modo crítico. Uma boa saúde mental não se desconecta da realidade”
Tayná Gomes
psicóloga e integrante do Movimento Saber Lidar, durante mesa no 6° Fórum de Políticas Públicas para Saúde Mental na Infância
Para Esther Guerra, que integra o projeto Passa a Visão, iniciativa da Unicef de prevenção à violência, jovens se sentem envergonhados ao sentir tristeza e cobrança por alcançar um sucesso escancarado o tempo todo nas redes sociais, o que piora a saúde mental. Residente da Cidade Tiradentes, na Zona Leste de São Paulo, Guerra disse que a juventude sente que não há “espaço para erro” no sistema atual. “Os adolescentes se preocupam porque eles não têm um milhão na conta ou a mansão do YouTuber”, disse.
Tel Guajajara, da terra indígena Guajajara do Maranhão e coordenador geral do Circuito Universitário de Cultura e Arte da UNE (União Nacional dos Estudantes), afirmou que a saúde mental está entre os três principais fatores para evasão escolar entre os jovens.
“Nos debates que promovemos, os jovens conseguem nos falar sobre o racismo e outros problemas que sofrem na escola, mas não conseguem falar de perspectivas. Por isso, é preciso uma política de acolhimento e do bem viver, com foco no acesso à cultura. Negar aos jovens o direito à cultura é negar a eles a afirmação de suas identidades”, disse.
O papel da comunidade escolar
Christy Pato, coordenador-geral de Estratégia da Educação Básica do MEC, e Keyla Kikushi, servidora da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, trataram de marcos legais e programas realizados no âmbito do governo federal para promoção de saúde mental nas escolas brasileiras, na mesa “O Papel da Comunidade Escolar na Promoção da Saúde Mental”.
Os gestores explicaram como está o trabalho para a regulamentação da Lei 14.819/2024, que institui a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares. Sancionada em janeiro de 2024 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a estratégia articula ações da educação, saúde e assistência social para atenção psicossocial nas comunidades escolares, e determina a oferta de serviço nessas áreas. No Brasil, a rede de educação básica é formada por 178 mil escolas, 47 milhões de alunos e 2,3 milhões de professores.
De acordo com Pato, grupos de trabalho intersetoriais estão discutindo e formatando ações locais, e há preocupação em não sobrecarregar professores, que já lidam, por exemplo, com problemas de recomposição de aprendizagem, agravada na pandemia.
“Há uma pressão sobre a escola para o letramento e, ao mesmo tempo, um conjunto a ser resolvido, como a saúde mental. A regulamentação da lei vem para não sobrecarregar demais o profissional. Se eu jogo essa responsabilidade só ao professor, terei falhas”, afirmou Pato.
O pesquisador Giovani Salum, do Child Mind Institute, apresentou estudos que mostram que algumas ações de promoção de saúde mental na escola nem sempre dão certo, e que é importante considerar isso na formulação de políticas públicas e correção de rotas.
Segundo Salum, um estudo no Reino Unido mostrou que a inclusão de práticas de mindfulness piorou a ansiedade de crianças diagnosticadas com o problema. Outros levantamentos realizados em países de baixa renda concluíram que escolas que incluíram mais aulas de educação física para prevenção à depressão não conseguiram os resultados esperados.
O quadro das violências na escola
Na quarta mesa do Fórum, “As Violências nas Comunidades Escolares e o Impacto na Saúde Mental de Criaças e Adolescentes”, a psicóloga Talita Lahr, pesquisadora do Gepem (Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral) da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), apresentou dados de pesquisas recentes do grupo sobre o fenômeno dos ataques às escolas, cujo ápice ocorreu entre o segundo semestre de 2022 e 2023. De acordo com Lahr, foram 40 ataques no país de 2001 até aqui.
O Gepem também mapeou em estudo recente o perfil dos autores dos atentados: 100% dos autores são meninos/homens, a maioria brancos, que manifestaram discurso de ódio, racismo ou misoginia. A maioria teve a escola como palco de sofrimento e indícios de transtorno mental, mas muitos deles não eram acompanhados por profissionais.
8%
dos estudantes dizem que sempre
sentem medo de ir à escola,
segundo pesquisa do Gepem
Segundo Lahr, o combate da violência e de situações perturbadoras na escola passa sobretudo por questões de convivência. “Não adianta um professor ter uma boa ação de convívio, precisa de uma ação institucional. Assim como falamos de matemática, precisamos tratar da convivência no currículo, ter um espaço para discutir isso com os nossos alunos”, afirmou.
Diretor de Diversidade e Inclusão na Secretaria de Educação do Pará, Mário Augusto Almeida tratou de iniciativas relacionadas à boa convivência no programa Escola Segura, que completou um ano de funcionamento em abril de 2024, e cuja base é a educação antirracista.
De acordo com Almeida, psicólogos e assistentes sociais estão nas escolas do estado realizando o trabalho, mesmo com as dificuldades logísticas regionais que demandam muito tempo e investimento em locomoção, por exemplo. “A gente reproduz violências cotidianamente, e a escola não pode mais ser esse espaço”.
“Violência é romper um pacto social. Em cada uma de nossas comunidades e instituições, existe uma convenção sobre o que é violência ou não. Escolas violentas são violentas antes do bullying. São violentas com professores, com fornecedores, na arquitetura, cheia de muros e catracas. Porque a violência acaba sendo pactuada, em um discurso explícito ou implícito”
Christian Dunker
psicanalista e professor de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP, durante mesa no 6° Fórum de Políticas Públicas para Saúde Mental na Infância
Transtornos de saúde mental de crianças e adolescentes, no limite, podem levar ao suicídio, que cresce entre crianças e adolescentes. A psicóloga Karen Scavacini, CEO do Vita Alere, instituto referência na prevenção ao suicídio, afirmou que o crescimento das taxas de crianças e adolescentes que tiram a própria vida no Brasil se relaciona com um problema multifatorial, que não se restringe apenas aos trantornos mentais.
“Houve um aumento absurdo na taxa de ansiedade, que não é explicado apenas pela pandemia. Isso já estava acontecendo, a pandemia foi a tempestade perfeita para que isso explodisse. É uma grade de multifatores, que engloba questões sociais, pobreza, alta vulnerabilidade das populações indígenas, normas culturais, falta de recursos econômicos. Não é só depressão. A saída não pode ser só psiquiátrica”, disse.
Soluções possíveis
Na abertura do Fórum, o médico pediatra e filantropo José Luiz Egydio Setúbal, fundador da fundação que leva o seu nome, trouxe aos participantes três dicas simples, mas de implementação complexa, do livro “Geração Ansiosa”, do psicólogo Jonathan Haidt, que podem ser implementados nas comunidades escolares, nas famílias e espaços públicos, visando a promoção da saúde mental de crianças e adolescentes:
- Proibir celulares no ambiente escolar. As crianças em escolas deixam os celulares em escolas e gavetas;
- Aumentar os horários de recreio, melhorar parquinhos e espaços de brincar;
- Estimular o brincar livre, sem supervisão, incentivando a independência e autonomia.
Já a última mesa do evento, “Painel de casos: a promoção da saúde mental nas comunidades escolares”, apresentou iniciativas para promoção da saúde mental em comunidades escolares do país realizadas por organizações e pelo poder público.
Um desses projetos é desenvolvido pela Asec (Associação Pela Saúde Emocional). Chamado Amigos do Zippy, é um programa universal de educação emocional voltado para crianças na primeira infância que ensina a lidar com as dificuldades do dia a dia, falar sobre os seus sentimentos e lidar com eles. De 2004 a 2022, 109 cidades, mais de 300 mil crianças e 8.500 professores foram impactados.
No Instituto Ayrton Senna, o foco é o desenvolvimento de estudos, mapeamento e materiais sobre o desenvolvimento de competências socioemocionais dos estudantes que influenciam diretamente no desempenho escolar, no pertencimento escolar e, por consequência, na prevenção à violência e ao bullying.
Entre as realizações feitas no chão da escola, um dos exemplos apresentados foi o Programa Vida, da Secretaria de Educação de Londrina (PR), que atende crianças dos 4 aos 11 anos.
A pergunta central da ação é voltada às crianças: como você está se sentindo hoje? Com base nas respostas, os professores trabalham com um tema durante 15 dias, por meio de vídeos, música e outros materiais de apoio, e sentam-se em círculo para diálogo. Uma tarefa de casa também é enviada para a criança trabalhar com os pais ou cuidadores.
“Muitas vezes, é só nesse momento que a família vai ouvir essa criança, e vice-versa. Precisamos ensinar nossos alunos a ouvirem”, afirmou Andreia Militão, da Secretaria de Educação de Londrina.
Em Fortaleza, uma parceria entre as secretarias de Saúde e Educação deu início ao Projeto Gente Adolescente, implementado em 2021. Cada escola trabalha em parceria com uma unidade de saúde dentro dos assuntos do PSE (Programa Saúde na Escola), do governo federal, que vão de alimentação saudável, promoção de cultura da paz e cobertura vacinal, e realizam um videocast sobre temas como bullying e autocuidado. Segundo uma das gestoras do projeto, Patrícia Lima Bezerra, a meta é chegar a 48 escolas até o final do ano.
Por: Isadora Rupp, NEXO, 02/10/2024
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - sala 26
Cidade Universitária - São Paulo, SP