10 set 2018

Por Karine Wenzel, Diário Catarinense, 10/9/2018

Maria Julia é autora do livro Educação para a Morte
Foto: Arquivo pessoal / Divulgação

Para muitas pessoas, falar sobre morte, ou até mesmo pensar sobre, pode causar mal-estar. Encarada como tabu, o falecimento se tornou distante, asséptico, silencioso e solitário. É o que defende a psicóloga Maria Julia Kovács, que há mais de 30 anos estuda o assunto. O interesse da especialista apareceu com a doença grave de uma tia, que diante da morte eminente queria conversar sobre o tema. Maria Julia resolveu, então, se embrenhar na temática. Em 1986, criou na Universidade de São Paulo (USP) a disciplina psicologia da morte. Atualmente, é professora do Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte da mesma instituição.

A autora de livros como Educação para a Morte e Morte e Desenvolvimento Humano percebe hoje um movimento de reaproximação das pessoas com o fim da vida, com uma re-humanização do processo, o que seria resultado do avanço da área de cuidados paliativos. Apesar de depender das crenças, valores e histórias de cada um, a psicóloga defende que uma boa morte é aquela sem dor, sofrimento e perto daqueles de quem se ama, e de preferência em casa.

Em entrevista por e-mail ao Diário Catarinense, ela abordou ainda o luto, limites da intervenção médica e como tratar o assunto com as crianças. Confira a entrevista:

Como começou seu interesse por esse tema?
O meu interesse começou por problemas familiares. Uma tia que tinha uma doença pulmonar grave queria conversar sobre a morte dela e o que aconteceria com ela depois disso. Pela insistência dela, comecei a ler sobre o assunto e resolvi torná-lo um assunto acadêmico.

A morte ainda é um assunto tabu na sociedade? 
Ainda é, mas cada vez observo um maior interesse das pessoas em falar sobre o assunto, profissionais, estudantes e pessoas sem formação profissional na área. Não há uma forma universal para encarar o fim da vida, depende de características pessoais, da família, da comunidade, questões culturais, idade e o fato da pessoa ter tido experiências de perda anteriores. De qualquer forma, ver a morte como adversária não colabora para uma visão dela como parte da existência.

Mas houve mudança na forma como a morte é encarada?
Houve mudança no sentido de que durante muitos anos se considerou que a morte faz parte da vida e que quando havia o adoecimento se proporcionavam os cuidados, mas havia possibilidade de preparação para a morte que se apresentava. No século 20 e 21, com o desenvolvimento da tecnologia, a morte passou a ser vista como fracasso médico e deve ser combatida a todo o custo. Essa nova forma de ver a morte tem sido discutida e uma re-humanização do processo de morrer surge com o desenvolvimento dos cuidados paliativos.

A partir de qual idade e de que maneira pode-se abordar o assunto?
A forma de encarar a morte tem, sim, relação com fases do desenvolvimento, principalmente crianças pequenas que ainda não compreendem a irreversibilidade e universalidade da morte. Neste caso, é importante comunicar para a criança quando perde alguém que essa pessoa não estará mais presente no convívio familiar. Também é fundamental abordar a universalidade, dizendo que todos morrerão um dia, inclusive ela e pessoas próximas, mas não neste momento. Em outras fases da vida, estas questões já foram elaboradas, mas os sentimentos poderão aflorar e é preciso que sejam acolhidos. Não há uma idade certa para falar sobre o tema, pode ser interessante quando a criança vive uma perda ou quando ocorrem experiências próximas a ela.

Com o avanço médico, consegue-se prolongar a vida. Qual o limite disso?
Com o avanço médico se consegue processos de cura, ou remissão de sintomas, e esses fatos promovem o prolongamento da vida. Esse é um aspecto positivo. Quando o processo de tratamento provoca sofrimento sem benefícios é hora de parar. Um exemplo são as pessoas que permanecem em UTI por muitos anos sem nenhuma melhora. Há situações em que a morte se torna solitária em unidades de terapia intensiva e em hospitais por conta de horários restritos de visita, não ter possibilidade da presença de familiares, por não se suportar conversar com o paciente sobre sua doença e proximidade da morte.

Conseguimos descrever o que seria uma boa morte?

O processo de humanização da morte leva em conta o paciente, suas necessidades pessoais e seus valores. O conceito de boa morte é subjetivo e leva em conta fatores como história de vida, da família, da comunidade e questões culturais. Mas de maneira geral, é uma morte sem dor, sofrimento, com a presença de pessoas queridas, se possível em casa. Mas em alguns casos, o domicílio não é melhor lugar, então o ideal é abrir espaços de comunicação para que se possa ofertar um processo de morrer sem sofrimento e com dignidade. Cada pessoa terá sua forma de se preparar para a morte. A religião pode ajudar para quem é religioso, para quem é ateu possivelmente aparecerão outros elementos que auxiliem. O processo é singular e depende de fatores como apoio de familiares e amigos, compreensão existencial ou outros.

A morte pode ser considerada uma escolha pessoal?
A morte é um fato na vida do ser humano, a forma de morrer pode ter fator de escolha, o que hoje é discutido de uma maneira mais ampla. Para pessoas religiosas, cabe a Deus o momento da morte, mas mesmo nestes casos, uma escolha pode ser de não ter sofrimento prolongado, ou preservar aspectos que são importantes na vida da pessoa. Sobre as pessoas conseguirem escolher como querem morrer, é uma questão que está ganhando mais espaço, por meio de discussões nas instituições de saúde, nos hospitais, na academia em vários fóruns, também na imprensa. Se não podem exatamente escolher como morrer, já podem falar sobre o que é importante para elas.

A senhora diz que as pessoas estão afastadas desse processo de morrer. Como mudar isso?
É importante a comunicação entre pacientes, familiares e profissionais de saúde, falando sobre o que é importante para cada pessoa. Atualmente, as diretivas antecipadas de vontade dão indicação de que tipo de tratamentos a pessoa não gostaria de ser submetida.

Como pacientes e familiares devem lidar com a morte eminente?
Uma forma de lidar com a morte eminente é poder se comunicar a respeito, buscar ajuda se a angústia estiver muito forte, se o paciente estiver lúcido, poder conversar sobre o que ele precisa, suas necessidades, seus desejos. E os profissionais de saúde? Eles estão preparados para isso, para dar apoio aos pacientes? Cada vez mais se discute a necessidade de inserção de disciplinas na academia sobre a questão da morte e a relação profissional de saúde com pacientes e familiares. Se os profissionais não estão preparados, precisam ter a consciência de buscar ajuda para se preparar. Quem vai trabalhar em hospitais, postos de saúde precisa saber que em algum momento vai lidar com a perda de pacientes e cuidar da sua formação nesse sentido

Há uma fórmula de como lidar com o luto? É possível minimizar esse sofrimento?
Não há fórmula para o luto, só é possível acolher o sofrimento. Ao ser acolhido e buscando um sentido para a vida mesmo com a perda de uma pessoa significativa, ocorre o processo de elaboração do luto. Mas é importante lembrar sempre de considerar as questões pessoais, a cultura, a família e outros aspectos que podem influenciar o processo. É difícil dizer qual tipo de luto é mais difícil de superar, pois cada uma tem características diferentes. Na tragédia o grande problema é a morte violenta, repentina, invertida (filhos morrendo antes dos pais), o que torna o luto difícil. No caso das mortes prolongadas é o tempo de sofrimento antes da morte, às vezes por anos com sofrimento diário, que torna todo esse processo complicado.

Há realmente as fases de luto?
Durante muito tempo se trabalhou com fases do luto, que ajudam a sintonizar as necessidades da pessoa. O perigo é que se transformem num molde ou padrão. Atualmente se procura observar o processo da pessoa e as suas necessidades. A melhor ajuda que podemos dar nesta fase é se mostrar disponível ao que a pessoa precisa, se é consolo, conforto, esclarecimento, ajuda nas tarefas cotidianas. Mais do que falar, é essencial a escuta cuidadosa e encaminhamento para ajuda profissional, quando necessário, em situações de risco de adoecimento e sofrimento intenso.

Como o país está na área de cuidados paliativos?
Estamos avançando, mas ainda muito atrasados. O principal desafio é tornar essa modalidade conhecida, expandir o número de programas, atender a um maior número de pessoas necessitadas dessa modalidade. A principal vantagem é garantir qualidade de vida até o final da vida, diminuindo o sofrimento em doenças sem possibilidade de cura e com múltiplos sintomas.

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