“O medo não apenas cria monstros, ele cria monstros que falam a nossa língua e são pré-determinados por nossas fantasias. Mas se é verdade que as identidades são sempre baseadas em políticas, disso não decorre que nossas políticas tenham que se basear em identidades.”
Por Christian Ingo Lenz Dunker, Blog da Boitempo, 7/7/2017
Em julho de 2017 estive em Manchester para um congresso sobre psicanálise e islamismo. A cidade no oeste da Inglaterra, abalada por um ataque terrorista poucos meses antes, parecia o cenário ideal para discutir as relações entre religiosidade e modalidades de sofrimento. Oportunidade que deveria ser obrigatória na formação de psicanalistas tanto por confrontar a relatividade cultural de seus próprios pontos de vista, quanto por testemunhar a força da universalidade clínica de sua prática. A própria “culturalidade” das diferenças de entendimento sobre a cultura – e, consequentemente, a “culturalidade” da teoria psicanalítica da cultura – configura o ponto de partida.
As tentativas cruzadas de interpretar modalidades teológicas no contexto da invenção do que se veio a chamar “oriente” nos ajudam a entender a modernidade cristã, desde a colonização das Américas, passando pela redescoberta do Japão, da China e da Índia, até a popularização da expressão “Oriente Médio” após a segunda guerra mundial. Portugueses e espanhóis se perguntavam se ameríndios possuíam alma para ser catequisada. Nossos índios afogavam seus colonizadores para saber se eles tinham corpos semelhantes aos deles. Enquanto isso, os verdadeiros habitantes da Índia surgiam para nós como um outro tipo de outro. Ao inventar nossos outros devemos ter em mente que esses outros já têm uma história e uma geografia em nossa fantasia, e que eles responderão à nossas fantasias com outras fantasias – e essas são feitas daquilo que sequer sabemos que não sabemos.
Se debruçar sobre o processo de invenção do oriente nos ajuda a entender duas questões: (1) que criamos alteridades necessárias para confirmarmos nossa própria identidade e (2) que essa relação, em geral, é feita para justificar a predação antropofágica pela qual nos relacionaremos com “eles”. Nesse processo, o islã ocupou um papel estratégico. Sendo uma das três religiões derivadas de Abraão (as religiões abraâmicas colocam o deserto entre os homens e Deus), o islã oferece o suporte narrativo para “um outro nós”. Desenvolvido do oriente próximo, passando por Jerusalém e chegando à Indonésia, ele representava um outro ao mesmo tempo distante e perdido. Ele representa o que poderíamos ter sido e o que não somos. Coube ao budismo e ao hinduísmo a representação do reverso dessa fantasia, horizonte utópico futuro assim como o islã realiza nossa fantasia de passado.
Colocar o islã como questão convida a psicanálise a problematizar sua própria antropologia, até mesmo seus compromissos teológicos subterrâneos ou sua aliança com a visão de mundo da ciência. Segundo Nathan Gorelick, a psicanálise foi profundamente influenciada pela revolução islâmica. Introduzida no Irã junto com o marxismo durante o pós-guerra, ela chegou aos anos 1980 representada pelo culturalismo de Jung, Erich Fromm e Karen Horney. A guerra contra o Iraque trouxe consigo a psicologia biológica, mas recentemente há um novo interesse pela psicanálise, principalmente pela combinação entre seu potencial clínico e crítico. Por isso, ela vem sendo cada vez mais praticada por mulheres atentas às problemáticas de gênero e de opressão sexual naquele país. Durante alguns anos, o Irã foi o país com maior número de cirurgias de redesignação sexual no mundo. Isso está fortemente ligado ao fato de que a homossexualidade era punida com a pena de morte, ao passo que a transgeneridade era percebida como uma doença que poderia ser corrigida. Equívocos como esse exigem uma sensibilidade para um tipo de sofrimento cuja narrativa social não pode se reduzir nem ao moralismo culturalista, nem à medicalização do sofrimento.
A singularidade como cada um realiza esta combinação indissociável entre religiosidade, cultura e história pôde ser percebida pelos ingleses após décadas de convívio com imigrantes paquistaneses, bengalis ou indianos. Diante da fobia com o estrangeiro, essa diversidade foi rapidamente substituída pela unificação de um inimigo genérico, atribuindo-lhe a identidade, homogeneidade e consistência que sabemos que ele não possui. O medo não apenas cria monstros, ele cria monstros que falam a nossa língua e são pré-determinados por nossas fantasias. A massa com medo, assim como o sono, é imprevisível e incalculável. Ela não negocia, apenas demanda. Por isso, é importante escutar sua voz, mas também desconfiar sempre das identidades que ela produz. E ter sempre em mente que, se é verdade que as identidades são sempre baseadas em políticas, disso não decorre que nossas políticas tenham que se basear em identidades.
Freud afirma que a religião é uma ilusão baseada na idealização do pai, necessária para manter a atitude social de obediência e submissão. Ao mesmo tempo, ele se apresentava como judeu ateísta. Uma mesma religião contém várias culturas, assim como diferentes religiões participam de uma mesma cultura. Por isso, a relação entre cristianismo e islã não precisa depender de uma suposição de irmandade ou origem comum, mas eventualmente do próprio reconhecimento de uma falta comum. Disso decorre um conceito de justiça que não corresponderia à igualdade das posses, mas a uma falta ou um buraco comum em relação ao qual o inconsciente funciona como uma linha ou como um litoral de demarcação. O inconsciente poderia ser pensado como essa linha impossível que separa o ocidente do oriente. Por que no norte da África e não no sul? Mas o sul pode ser a Itália ou a Grécia. Grécia não é a Turquia. Qual Turquia? Bizâncio no século V, Constantinopla no XVI ou Istambul em 1914? Pensando bem: por que a linha não poderia estar na Espanha ocupada (que pensa que é a França)? Vê-se assim como o Oriente surge como um espaço ilimitado, que só se pode ser demarcado quando transforma-se em outra coisa.
Depois de inventar o Oriente, de fundi-lo com o islã e de combiná-lo com nossos próprios preconceitos de classe, gênero e raça, ainda poderemos dizer que “eles tomam a si mesmos como vítimas”. Processo marcado pelo que Fanon chamou de instantes de racialização, pelos quais o islã adquire uma mesma cor, que ora separa e ora reúne um esquema corporal com uma estrutura de sentimentos. Forma-se assim uma espécie de narcisismo negativo à espera de sua inversão. Instantes que estão associados também ao momento no qual um adolescente incorre no gesto de “radicalização”, tornando-se um terrorista. Instantes no quais a religiosidade perseguida responde como fundamentalismo. Há consequências políticas das fantasias que sancionam a ontologia da violência comunitária e da revolta islâmica. Mas quando lemos o processo nos nossos próprios termos nos impedimos de entender como isso acontece fora de nossa própria fantasia. As políticas de Estado que tentam estabilizar o sentido de “islã” buscam, ainda assim, nos convencer de que isso levaria a uma estratégia melhor na luta contra o terror. O custo desse erro é incalculável, desrespeitando as contradições internas vividas durante séculos. É preciso desconectar modernidade e lógica da colonização, com sua divisão entre oriente manifesto (poder) e oriente latente (saber), transformando o secularismo transcendental em criticismo secular rumo a uma transmodernidade pós-colonial.
Para os universitários, a palavra-chave é “terrorismo”, para os políticos, é “guerra”. Nos últimos anos, acompanhamos a construção de um discurso sobre o “terror” que seria uma espécie de suporte para entender o “islã”, assim como a “guerra” aparece como senha para praticar o “terror contra o terror”. Os universitários e especialistas na “mente dos terroristas” reproduzem, discursivamente, a obsessão que serve para manter a “guerra”; assim como a política precisa produzir mais “islã” para justificar a fobia social. Para os intérpretes econômicos do problema, “islã” e “terrorismo” fundem-se em uma mesma espécie de perversão contra o mercado – perversão cuja verdade só pode ser revertida por meio da guerra. Finalmente, para as “pessoas comuns” o estado de atenção, alerta e perigo serve para estimular a presença de um Estado forte e protetor, com suas políticas de exceção. Essa combinação circulante entre “terror-guerra-islã” reforça esse conjunto de identificações e identidades. A produção do “retrato de um certo islã” nos mantém no dispositivo da colonização. Uma potencial “transmodernidade pós-colonial” começa pelo reconhecimento de que a guerra ao terror não pode ser nem ganha nem perdida, muito menos desativada, sem a desconstrução de nosso próprio complexo colonial. Enquanto isso, ela será o modelo discursivo e político para um conjunto de pequenas guerras locais, justificando seus pequenos e grandes estados de exceção.
Entre as diferentes experiências com a psicanálise no islã, destaca-se o projeto com a comunidade de artesãos da população islâmica do Cairo. Uma estranha forma de sofrimento acometeu este grupo desde a primavera árabe e a brutal repressão que se seguiu no Egito: as pessoas pararam de sonhar. Contar sonhos é uma prática muito importante para a mística islâmica, particularmente no sufismo. Interromper o sonho equivale à supressão da partilha de um saber que define uma comunidade. A melhor resposta para um sonho é outro sonho. No decorrer do projeto, analistas egípcios e ingleses acompanharam uma faxineira que sonha que está em um julgamento. O réu é acusado de tentativa de explodir um café no Cairo. Na hora de declarar a sentença, o juiz convida a faxineira a se pronunciar. Ela grita, mas ninguém a escuta. Ela grita em árabe, mas ninguém a entende. É preciso um tradutor. Os analistas ingleses não entendem árabe, mas mesmo assim parecem dar suporte ao que precisa ser dito e de alguma forma sua própria presença criou esse novo lugar para onde endereçar sonhos.
Neste ponto começamos a entrar no problema central da experiência religiosa como cultura: a linguagem. Aparentemente, o sentido de “islã” (rendição, submissão) depende da língua na qual o Corão foi escrito, ou seja, o árabe antigo. Portanto, os que se aproximam miticamente da língua original se apresentam como hierarquicamente superiores aos que falam variantes como o urdu. Uma religião que começa pela frase: “Não há deus senão Deus, e Maomé é seu profeta” envolve um sistema complexo baseado na ideia de que existe pelo menos um que não é (“Não há deus”), para que algo seja (“senão Deus”) e para que daí se estabeleça uma relação de filiação ou continuidade (“e Maomé e seu profeta”). O problema é que tal expressão não é a mesma em sua tradução ao português (como tentei fazer acima). Sua expressão material escrita em árabe com sua ressonância específica parece insubstituível. Encontrei psicanalistas muçulmanos que não se autorizavam a falar tal expressão em sua “língua original”, apesar de sentirem-se a vontade para fazê-lo em inglês. O problema linguístico da tradução e seu correlato antropológico da comensurabilidade entre culturas parecia reencontrar assim seu equivalente psicanalítico do inconsciente sem fronteiras. O inconsciente quer dizer que entre nossa identidade e o outro existem assimetrias. Há o que não pode ser traduzido, mas que mesmo em silêncio pode ser transmitido, como o sonho da faxineira do Cairo.
“Alá não é Deus” porque quando fazemos esta tradução estamos recriando um universo outro na nossa própria língua. Estamos nos apropriando do outro e fazendo equivalências de identidade que estão na origem do problema, mais do que na sua solução.
O psicanalista não é apenas um tradutor, mas uma espécie de xamã poliglota e andrógino que vive no espaço cuja linha comum é o cuidado com o intraduzível. Para ele não há sinônimos.
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Para aprofundar a reflexão, recomendamos a leitura de Freud e os não-europeus, de Edward Said, traduzido por Arlene Clemesha e prefaciado por Joel Birman, e do n. 26 da revista da Boitempo, a Margem Esquerda, com dossiê temático de capa sobre terrorismo.
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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