Em meio a uma crise global de saúde mental que impacta crianças e adolescentes, as escolas brasileiras ainda enfrentam um deficit de psicólogos e dificuldades para atuar em comunidade. Além disso, medos e desconfianças fazem com que pais e gestores escolares ergam muros de proteção contra os perigos externos e internos, dificultando um diálogo que poderia fazer avançar o debate sobre o tema dentro das instituições. Esses são apenas alguns dos principais pontos que o psicanalista Christian Dunker levanta quando o assunto é saúde mental no ambiente escolar.
“Organizar uma escola em termos de comunidade representa transformações reais. Significa incluir seus fornecedores, dar voz para o pessoal da limpeza e criar um aprendizado para todo mundo”, destaca o professor do Instituto de Psicologia da USP em entrevista a Gama. Uma das vozes mais retumbantes sobre psicanálise e saúde mental no Brasil hoje, Dunker fala para centenas de milhares de pessoas em seu canal no YouTube, Falando nIsso, e em suas redes sociais, num diálogo franco sobre questões como burnout e TDAH, que vêm fazendo cada vez mais parte do nosso dia a dia.
Pesquisas recentes trazem dados preocupantes sobre o impacto de transtornos psicológicos na vida de crianças e adolescentes, tendência que vem se fortalecendo desde a pandemia. Pela primeira vez, o Datafolha registrou mais casos de ansiedade entre jovens do que adultos no país, ao mesmo tempo em que as taxas de suicídio nessa faixa etária também vêm aumentando com frequência nos últimos anos.
Contrariando aquela velha ideia de que saúde mental é um problema que se aborda somente em casa, no seio familiar, Dunker endossa a visão de especialistas de que a atuação da comunidade escolar sobre o tema pode ser crucial para identificar e tratar desde cedo sintomas de transtornos como estresse, ansiedade e depressão. Por outro lado, o psicanalista também aponta tendências problemáticas como o excesso de medicalização, que impede um processo de investimento pedagógico mais longo e profundo, e a superficialidade de alguns diagnósticos atuais.
Integrando projetos em colégios de comunidades como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ele reforça a importância de uma escuta ativa e inteligente dentro da escola, que abra linhas de diálogo frequentes com esses jovens, muitas vezes alvos e também perpetuadores de diversos tipos de violências em seu cotidiano. “A atitude básica tem sido expulsar. Estamos regredindo, porque esse aluno demanda tempo e trabalho. Precisamos reunir todo mundo e falar sobre isso”, afirma o psicanalista e escritor, autor de livros como “A Arte de Amar” (Record, 2024) e “Uma Biografia da Depressão” (Paidós, 2021).
Na quarta-feira (2), Dunker debate o tema ao lado de outros especialistas no 6º Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância, da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, que acontece no Centro de Convenções Frei Caneca, em São Paulo. Durante o papo com Gama, ele reflete ainda sobre o papel dos pais e os desafios para lidar com a saúde mental dos filhos, questões prementes como o cyberbullying e a crescente dificuldade do ser humano de funcionar em comunidade.
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Christian Dunker | A pandemia pegou alguns estratos etários de forma muito desleal. Crianças muito pequenas, no início do processo de socialização, onde você está constituindo o que é o espaço público, o que é sair da família. O atraso ali realmente traz efeitos. Uma segunda zona de impacto são adolescentes com 12 ou 13 anos, começando a mudar o patamar para a vida sexual e as preocupações com o corpo. A retração gerada pela covid impactou bastante esses jovens. Além disso, estamos falando de uma geração de nativos digitais, a geração Z, que nasce com oferta de telas, banda larga e redes sociais como prática trivial. E isso também tem impactos na saúde mental que estão ficando mais claros conforme o tempo vai passando. Um terceiro elemento são as alterações no modo de trabalhar, constituir famílias e transmitir desejos, que mudaram significativamente, marcando uma crise mundial de expectativas. Deixamos de ter a atitude que caracterizou a formação dos millennials, de que o mundo vai melhorar, a tecnologia veio para qualificar a vida humana e vamos diminuir a desigualdade. Isso se traduz em modos de educação mais protetivos, que enfatizam que a vida e o espaço público são perigosos. No caso brasileiro, isso se reforçou pelo processo político. Então, vários elementos confluem contra a saúde mental dessa geração.
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G |Muitos pais também estão sofrendo com transtornos psicológicos. É comum que eles passem essas angústias para os filhos?
CD | As famílias são modelos de transmissão de neuroses, não começou agora. Temos uma crise global do modelo de saúde mental, que gira ao redor da medicalização massiva e do uso de substâncias psicotrópicas, tanto para compensar prejuízos quanto para — e essa é a novidade — ir além da correção de um sintoma. Tem de um lado uma pressão muito forte por desempenho e, do outro, substâncias que vão aumentar a performance. A preocupação dos pais vem da percepção de que nós temos um problema com a saúde mental, e ela define padrões de desempenho, sociabilidade, aprovação e adaptação social. Antigamente a saúde mental era uma questão para quem tinha sintoma. Hoje, estima-se que só 7% da população escape de um diagnóstico. Então a norma é a patologia. Por isso criticamos a facilidade com que se empresariam os sofrimentos mentais hoje, que se transformaram em negócios. -
G |Qual o papel da comunidade escolar para identificar ou tratar esses transtornos? Hoje você vê as escolas assumindo esse posto?
CD | Nos anos 80 e 90, o Brasil produziu uma justificável crítica da psicologização do transtorno escolar, que reduziu o número de psicólogos nas escolas. É um paradoxo curioso. O Brasil tem cerca de 500 mil psicólogos, somos o terceiro ou quarto país no mundo com mais psicólogos. Mas não produzimos psicólogos escolares. E isso foi pressionando as escolas a responder cada vez mais por dificuldades escolares que podem ser causadas por neurodivergências ou transtornos. Por um lado, representa um encaminhamento em massa para psicólogos, neurologistas e psicanalistas por dificuldades que nem sempre são patologias. Muitas são inadequações do estilo cognitivo da criança à escola, excesso de produtivismo, falta de acompanhamento, assistência social e escuta, que manifestam na dificuldade escolar uma dificuldade na vida. Como a presença da violência e as aulas intermitentes em lugares como a Maré, onde tenho um projeto. Agora, estamos numa epidemia de TDAH e autismo. É possível que haja um hiper inflacionamento, sem negar que essas crianças estão sofrendo e precisam de intervenção. -
G |Parece que encontramos cada vez mais dificuldade para viver em comunidade. As comunidades escolares refletem isso?
CD | Tivemos um aumento de casos de violência letal nas escolas de 1.000% a partir de 2022. É um dado sobre a perda do sentido comunitário, com um assoreamento dos laços sociais entre alunos pelo excesso do uso de telas. Existe uma pressão hoje sobre os professores por resultados e um acompanhamento muito minucioso das suas atividades, o que faz deles a segunda população que mais adoece de problemas mentais. E você tem, por outro lado, esse novo choque entre as famílias e as escolas. Os pais cada vez mais acompanham a vida digital dos filhos, o bullying digital, e opinam vigorosamente sobre conflitos que habitualmente estavam na escola, mas agora passam a ser judicializados ou familiarizados. As famílias tomam as dores e confrontam a escola na posição de consumidoras, clientes. Ou, nas escolas públicas, demandam a implementação de regras e leis. Então existe uma insatisfação das famílias com as escolas.
Por: Leonardo Neiva, Gama, 29/9/2024
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