
Saulo Velasco e ilustrações Gaby Alves
A paixão avassaladora de Romeu e Julieta, clássico de Shakespeare, só é eterna porque a morte chegou antes que a rotina e os percalços do dia a dia minassem o romantismo dos jovens de famílias rivais, Capuleto e Montecchio. Pós-doutor em psicologia experimental pela USP, professor da The School of Life e especialista na temática amor, Saulo Velasco brinca que a intensa, mas curta história entre Romeu e Julieta não permitiu que cada um conhecesse o lado miserável do outro. “Todas as histórias de amor do cinema e da literatura acabam quando o casal consegue ficar junto e não mostram sua continuidade. Mas essa paixão é muito diferente do amor. O amor mesmo só começa quando o filme termina”, acredita ele.
Apesar do ideal romântico ter criado uma série de mitos prejudiciais, como “depois que você encontrar sua alma gêmea seus problemas estarão resolvidos”, Velasco relembra que é justamente depois da paixão que é preciso arregaçar as mangas: “Esquecem de nos contar que amar dá trabalho. Amar é uma habilidade aprendida e envolve aprender e ensinar, constantemente”. Confira a seguir a entrevista de Saulo à revista J.P.
J.P: Qual a importância do amor em tempos de pandemia?
O amor, assim como qualquer conexão que a gente estabelece com outras pessoas, sempre foi importante, mas em contexto de adversidade, como agora, ele é fundamental para criarmos resiliência. Vários estudos demonstram o fator protetivo quando você tem conexões afetivas com as pessoas – e isso pode ser com amigos, familiares, mas mais ainda no amor. Uma das formas de a gente superar a adversidade e lidar com os desafios é estar com alguém que vai ser um suporte, um parceiro para pensar junto, que às vezes pode nos ajudar a tomar decisões que não conseguiríamos sozinhos. Às vezes, estamos encalacrados em um ponto cego e a outra pessoa pode nos ajudar a enxergar por outro ângulo.
J.P: Quais mazelas do amor romântico carregamos até hoje?
O romantismo foi um movimento artístico e literário, mas todas as histórias de amor que conhecemos se espelham nele. Se temos como parâmetro esse tipo de amor, a tendência é sempre estarmos insatisfeitos com o outro. Muitas vezes, estamos infelizes em função de expectativas erradas, como, por exemplo, achar que o outro precisa te aceitar do jeito que você é, que o sexo sempre vai ser incrível e frequente, que o outro não tenha defeitos, ou seja, criamos a ilusão de que existe alguém na Terra que me completaria plenamente. Ficamos numa eterna busca do amor perfeito. Somos formados nessa cultura. Não há ninguém perfeito na galáxia. O amor dá trabalho para qualquer um. Alain de Botton [fundador da The School of Life] disse uma vez que deveríamos experimentar vários relacionamentos antes de nos casarmos, não para termos mais experiência, mas para termos certeza que é sempre difícil, com qualquer pessoa. Cultivamos uma intolerância muito baixa às imperfeições dos outros. Esse ideal romântico do amor, como se tivesse uma necessidade inata de se apaixonar, é muito recente na história. Até o século 18, os casamentos não tinham nada a ver com o amor. Eles eram contratos políticos e econômicos, arranjos diplomáticos. O romantismo inaugurou essa ideia de que a pessoa com quem você vai dividir a vida pode ser alguém que você ame, o que é muito mais legal. O amor é uma habilidade aprendida. Nós aprendemos a amar.
J.P: Como aprendemos a amar?
O amor romântico prega um conjunto de suposições e uma delas é que o amor é algo espontâneo, que em algum momento você vai encontrar sua alma gêmea, que foi desenhada para você, vai se apaixonar e seus problemas vão acabar. Esse alguém vai compartilhar os mesmos valores, interesses e paixões e você não precisa falar nada que ela adivinhará o que está pensando. Não tem que aprender a conversar nem a se relacionar. Essa ilusão é criada pelo romantismo: o casal luta contra tudo e todos, e, depois que ficam juntos, a história não continua. Mas o amor começa justamente quando o filme termina. Isso que a gente chama de paixão é muito diferente do amor. Esse desejo de estar com o outro o tempo inteiro, essa cegueira em relação aos defeitos alheio, esse turbilhão de emoções e hormônios – que, inclusive, são úteis para a gente se reproduzir – nos embriagam e nos deixam cegos. Quando essas emoções se acalmam, começa o que a gente chama de amor. Amor é aprender a negociar as diferenças, a comunicar nossos incômodos, nossas próprias esquisitices, é buscar proximidade e ajudar o outro e, inclusive, facilitar a vida administrativa. Um amor a longo prazo é uma empresa, você precisa dividir contas, pagar boletos, cuidar da casa e combinar quem vai levar o filho para a escola. Por isso digo que amor é uma habilidade. Aprender a aprender.
J.P: Como esse ensinamento pode ser feito?
A gente precisa lembrar que ensinar e aprender é parte do amor. Amar é uma oportunidade das pessoas se tornarem melhores. O outro, que compartilha sua intimidade, pode ajudar a te conhecer melhor. Precisamos aceitar que sempre temos o que aprender e melhorar. O que vejo é que a comunicação sempre trava em algum ponto. Quando o outro age de maneira que nos desagrada, em vez de ensinar, brigamos e agredimos. Geralmente não somos bons aprendizes nem bons professores. Quando o outro está sendo desagradável deveríamos ser o mais acolhedor possível. Briga é um momento em que todos só querem ganhar. Não há diálogo. Se seu parceiro não está te entendendo, muitas vezes o problema é você que não está sabendo ensinar. O ensino precisa vir com afeto e carinho.
J.P: A paixão a longo prazo é impossível?
Ela é muito rara. É muito difícil a gente continuar apaixonado num relacionamento duradouro. Brinco que Romeu e Julieta, se não tivessem morrido, talvez tivessem matado um ao outro na convivência. Eles não faziam a menor ideia do que é dividir uma vida. Não tiveram tempo de conhecer o lado miserável um do outro, as manias, as pequenas chatices… Mas é possível nos reapaixonarmos pela mesma pessoa várias vezes durante a vida. A gente redescobre a pessoa.
J.P: E se escolhermos viver uma vida só de paixões, engatando uma após a outra?
Existem dois perfis. A pessoa que escolhe viver apaixonada e vive pulando de um relacionamento para o outro, e está tudo bem, mas existe também a pessoa que acha que está fazendo essa escolha, mas, na verdade, tem dificuldades em criar vínculos duradouros. Ela não sabe fazer concessões e não quer aprender a se relacionar. E se justifica dizendo que quer continuar sentindo as emoções da paixão. Falta autoconhecimento. Amar é se mostrar vulnerável. E muitas pessoas não querem.
J.P: Por que as pessoas estão cada vez mais com dificuldade em criar laços?
Poderia fazer várias análises, mas vou ficar com uma vertente. A nossa cultura atual privilegia o prazer imediato em relação ao esforço. Muitos dos problemas que estamos vivenciando hoje tem a ver com isso. Quando começamos a usar veículos, começamos a destruir mais o mundo. Quando inventamos o celular e o computador, nos tornamos mais sedentários. Quando a gente não se esforça, a gente acaba perdendo o prazer de realizar algo e construir. Estamos em uma cultura do comodismo. As pessoas querem tomar remédios para solucionar problemas emocionais, em vez de fazer terapia. É a cultura da facilidade. Se a gente pensar que o amor dá esse trabalho todo, talvez seja melhor garantir o sexo e a paixão imediata do que se esforçar para construir algo.
J.P: Como se beneficiar do humor?
Sabe quando você fala a mesma coisa e a outra pessoa não muda? Se a pessoa não mudou até agora, é porque você não está ensinando do jeito que ela aprende. Falar não é ensinar. Ensinar é fazer o outro compreender. O humor é uma ferramenta que permite uma imunidade diplomática em falar coisas que seriam encaradas como um ataque. Mas se você fizer o outro rir, ele desarma. Eu tinha uma mania horrível de acumular meias ao lado da minha cama. Minha esposa reclamou mais de mil vezes e eu simplesmente esquecia. Um dia, cheguei em casa e tinha uma fileira de meias do meu quarto até o cesto do banheiro. Era a caravana das meias. Eu ri e, despois daquele dia, entendi.
J.P: Você disse numa live que é importante abrir o jogo e deixar espaço para questões “sobre o que você precisa ser perdoado” e “sobre o que eu quero que você me perdoe”.
Sim, porque muitas vezes a gente guarda mágoas e não as colocamos na mesa. Mas tudo acumula, o que torna as coisas cada vez mais difíceis. Quando existe uma ferida e não se fala, ela vira um fantasma. Essas perguntas são formas para desentupir o que está entalado. Porque muitas vezes a gente tolera, mas não perdoa. E isso bloqueia os afetos.
J.P: Na The School of Life, a maioria dos alunos é mulher. O homem não é ensinado a lidar com suas emoções?
Acho que, no geral, ninguém é muito ensinado. Mas o homem, muito menos. Isso faz parte da cultura patriarcal e machista. O cuidado sempre foi uma habilidade feminina na história, e parte por conta da maternidade, que sempre foi atribuída à mulher. O homem de hoje está pela primeira vez descobrindo o papel na maternidade. A mulher historicamente é ensinada a cuidar, a escutar, a abrir mão. Já o homem é ensinado a subjugar, a dominar e a se impor. É recriminado por demonstrar vulnerabilidades.
J.P: Qual o preço que os homens pagam?
Eles adoecem, levam uma vida infeliz, não se conhecem e não podem pedir ajuda. Eles também são vítimas dessas práticas. Mas todos nós pagamos enquanto sociedade. Isso acarreta uma série de estragos, como a divisão injusta do trabalho doméstico e dos filhos, e os altos índices de violência doméstica.
J.P: É possível ser feliz sozinho?
O ser humano precisa de conexão e de afeto. O amor a dois não é a única forma de supri-los. Agora, acho impossível ser feliz sem outros seres humanos. O isolamento predispõe situações de risco. Somos seres sociais. Nós precisamos do outro para nos entendermos, para nos construirmos humanos. É possível ser feliz tendo pessoas significativas em sua vida que tenha intimidade. Ser feliz sozinho completamente é impossível.
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