Considerações sobre a destituição subjetiva e o corpo em Jacques Lacan

Considerations on the subjective destitution and the body in Jacques Lacan.

 

Abenon Menegassi¹

 


Resumo: O objetivo deste trabalho é promover uma articulação entre a noção de corpo e a noção de destituição subjetiva, termo introduzido por Jacques Lacan na década de 1960. Nessa época, Lacan problematiza o final de análise enquanto tempo de reconhecimento intersubjetivo do desejo mediado pelo registro do simbólico. Para Lacan, esta estratégia encontra seu limite no interior da práxis psicanalítica devido ao fato de que a dimensão do simbólico apaga o sujeito, suporte da estrutura significante. A partir desta reflexão propomos que o corpo pode ser pensado enquanto superfície que engendra a junção entre o ser e o des-ser da destituição subjetiva do final de análise, ponto este em que passa a ser considerado mais em seu aspecto de opacidade do que em sua boa forma egoica totalizadora.

 

Palavras-chave: Destituição subjetiva. Real. Final de análise. Corpo.


Abstract: The objective of this work is to promote a link between the notion of the body and the notion of subjective destitution, a term introduced by Jacques Lacan in the 1960s. At this time, Lacan discusses the end of analysis as a time of intersubjective recognition of desire mediated by the symbolic order. For Lacan, this strategy finds its limits within the psychoanalytic praxis due to the fact that the symbolic dimension turns off the subject, supported by significant structure. From this discussion, we propose that the body can be thought of as a surface that engenders the junction between being and des-being of subjective destitution of the end ofl analysis, a point where the body is regarded more in its aspect of opacity that in their fitness totalizing ego.

 

Keywords: Subjective destitution. Real. End of analysis. Body.



O objetivo deste trabalho é o de tecer algumas considerações em torno de um estatuto possível a ser dado ao corpo a partir das reflexões que Jacques Lacan promove, particularmente em textos como Proposição de 9 de outubro de 1967 e Discurso na Escola freudiana de Paris.

 

Segundo Safatle (2003; 2005), a partir da década de 1960 Jacques Lacan empreende uma reviravolta conceitual no que se refere às formalizações da clínica psicanalítica acerca do final da análise. Até então, sua proposta pautava-se pelo reconhecimento intersubjetivo do desejo enquanto mediado pelo registro do simbólico. No Seminário VII, por exemplo, Lacan (1988) expressa que “podemos tentar definir o campo do sujeito na medida em que ele não é apenas o sujeito intersubjetivo, o sujeito submetido à mediação significante, mas o que está por trás deste sujeito”. (p. 130). Este programa, portanto, encontra seu limite a partir da constatação de que o simbólico, pela via de uma consciência reflexiva, seria insuficiente para solucionar o problema da emergência do desejo já que a partir destas coordenadas este registro não situaria o sujeito em seu descentramento, sujeito este que, uma vez aspirado pelo desejo do Outro, restaria localizado para além de suas fronteiras.

 

Por isso, dentro da proposta maior de retorno a Freud, com a consequente extração das mudanças que este autor propõe com a noção de inconsciente, Lacan, neste momento de seu ensino, se depara com a questão sobre como simbolizar o desejo no interior da reflexividade intersubjetiva sem cair, tanto na clínica quanto na sociedade, nos diagramas performativos impostos pelo Outro.

 

Neste contexto, inclusive, pensando a questão do laço social, que a priori está submetida ao simbólico, a proposta de Lacan nos anos sessenta é a de constituir a ciência da psicanálise como abertura que procura não incorrer nas armadilhas forjadas pelas políticas utilitaristas, totalizadoras e universalizantes que o sujeito encarna a partir da causação de seu desejo pelo Outro.

 

Nesta via, a noção de destituição subjetiva aparece como sendo a mudança estrutural privilegiada que estaria no cerne do tratamento psicanalítico e que, no final da análise, promoveria, pela via de um ato ético, a passagem do psicanalisante a psicanalista.

 

Essas reflexões são, assim, desenvolvidas a partir da introdução da noção de destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre enquanto paradigma do que ocorre com o sujeito que, após o final de sua análise, aspira, com seu corpo, à formação de uma nova identidade, com a qual se propõe outra maneira de fazer laço com o social

 

O corpo em Lacan e a destituição subjetiva na contemporaneidade

 

Sobre o corpo, no texto O estádio do espelho como formador do eu (je) tal como se nos revela a experiência psicanalítica, Lacan (1998) compreende o estádio do espelho enquanto identificação que é a transformação que se produz no sujeito quando este assume com júbilo uma imagem especular. Lacan (1998) apreende esta experiência enquanto uma matriz simbólica onde o eu e o corpo antes mesmo de objetivarem-se na dialética da identificação com o outro “se precipitam em uma forma primordial” (p.96-103), onde o corpo é o que resta sob as vestimentas das boas formas das imagens narcísicas da identificação imaginária. Por sua vez, na contrapartida, Lacan (1993) declara que “o desejo do homem é o desejo do Outro” (p. 12) e que “o gozo do corpo simboliza o Outro”. (p.13). Nesta linha, Lacan (2003c) afirma que “apoiamos o fato de que esse lugar do Outro não deve ser buscado em parte alguma senão no corpo” (p.327).

 

Quanto a estas citações, há que se dizer que no mundo contemporâneo, também considerado como pós-moderno, as representações da corporeidade vão desde as tatuagens, os piercings, os anabolizantes veterinários e as cirurgias modeladoras e bariátricas pautadas pelo discurso médico clínico e estético até o extremo onde a ciência se infiltra no código genético para transformá-lo ao mesmo tempo em que apaga o sujeito.

 

Sob esta ótica, constata-se que os diversos sentidos dados ao corpo pela cultura derivam de um campo cada vez mais impulsionado por uma realidade que se tornou radicalmente virtual onde, por exemplo, de acordo com Baudrillard (1997), a cibernética controla o corpo desde o interior jogando com o signo, com o código ou com as suas modalidades genéticas. Recentemente foi lançado o filme “A pele que habito” (2011) do diretor e roteirista espanhol Pedro Almodóvar que retrata bem esta ideia de corpo copulado pelo desejo do outro e do Outro, onde a ciência intervém de forma decisiva na sua manipulação.

 

Nesta via, Lacan (1998) define o conceito de Outro como sendo o lugar a partir do qual o sujeito se coloca “a questão de sua existência” (p. 547). Neste questionamento está colocada a interrogação sobre o que é de seu corpo, ou seja, de sua sexualidade, de seu desejo, de sua identidade, de seu destino. No mesmo texto, Lacan se refere ao Outro para dizer que ele também é o “lugar do tesouro dos significantes” (p. 563). Com estas definições, Lacan explicará que o essencial é que não existe qualquer correspondência entre o significante e os seus significados e que, por isso, as mensagens chegam de forma invertida do lugar do Outro. Trata-se, portanto, de um lugar a partir do qual, ao se interrogar acerca de seu ser, o sujeito receberá a resposta sempre na forma característica de uma inversão. 

 

Nesta perspectiva, é por meio deste questionamento que o corpo sexuado entra na existência, passando assim a situar-se, também, em um lugar que o firma como suporte dos discursos vindos do Outro que se projetam sobre ele.

 

Ao ocupar o lugar deste suporte (a – A), o corpo se torna também um anteparo que reflete esta projeção. Desse modo, o eu/corpo se forma como uma espécie de ilusão virtual (derivada da inversão do significante), ou seja, como uma exterioridade e uma expressividade em que o sujeito se aliena quando pensa totalizar-se através dos desígnios da boa forma.

 

Nesta via, para Dunker (2006), uma das noções que se pode estabelecer sobre o corpo a partir dos discursos da modernidade é que tanto o cartesianismo quanto o anti-cartesianismo incorrem no mesmo equívoco que é o de pensar a corporeidade em forma de saco (e não de superfície), no quadro de uma topologia dominada pela alternância entre as modalidades interior e exterior co-extensivas da emergência histórica da categoria de indivíduo.

 

Esta forma de objetivação do eu é, portanto, o lugar onde este eu, ao se apreender como tal, enuncia a sua alienação radical. Na via de pensar o corpo a partir de uma topologia que privilegia a noção de superfície, Lacan (2007) afirma que a concepção de corpo como um saco de órgãos exclui o nó como aquilo que ex-siste e não constitui uma corda-consistência. Para Lacan (2007) “o corpo decerto não se evapora e, nesse sentido é que ele é consistente” (pág. 64). A consistência é justamente esta insensatez simbólico-imaginária que permite à mentalidade, que mente, a ilusão que dá ao corpo uma unidade, ou seja, aquilo que se mantém junto, em conjunto, na identidade, no eu, na verdade.

 

Em decorrência da efetivação dessesdiscursos da modernidade sobre o corpo na formação do eu, tem-se o que se poderia chamar de uma dupla destituição subjetiva encaminhada pela cultura, uma vez que tanto o eu quanto o corpo são subprodutos usinados por esses discursos. Dessa forma, o corpo, ao ser instituído como suporte do Outro, passa a ser um objeto destituído de autonomia na medida em que seu interior se torna anódino, quer dizer, indiferente a qualquer exterioridade, desde a qual, na sua imagem, o corpo só se subjetiva na proporção inversa desta indiferença ao seu interior.

 

A ideia é que quanto mais o corpo, enquanto objeto inacessível que escapa ao sujeito, torna-sesubjetivado pelo indivíduo, mais indiferente ou alienado (no sentido de alheio) à sua interioridade este indivíduo fica, já que na tensão desta subjetivação o que ocorre é a radical alienação (no sentido de aderência) às imagens corporais (projetivas e virtuais) que lhe servem como vestes alienantes. Por outro lado, uma das consequências resultantes desses modos de subjetivação é que passa a existir uma discordância radical e constitutiva entre o eu e as suas formas, pois não existe a boa forma para o eu, pois a apreensão de sua corporeidade é sempre vacilante e desconexa uma vez que é dependente do olhar do Outro e nunca é apreensível imediatamente, mas, sempre, mediada pela imagem e pelo significante.

 

O que acontece ao sujeito quando ele se deixa capturar, alienando-se assim à imagem corporal cedida pelo Outro, é que esta imagem antecipa a imagem total que ele acredita será garantida pelo Outro na constituição de sua unidade. Isto significa que ao ser mediado pelo Outro o sujeito insere-se no campo de seu desejo (do Outro) e passa a instituir-se como objeto deste Outro constituindo, deste modo, o seu próprio desejo a partir do desejo do Outro. Trata-se, portanto, de um sujeito que ao alienar-se na imagem corporal em que se constitui o eu institui-se, no mesmo movimento, como objeto do Outro já que é o Outro que fornece as imagens e os discursos da mediação entre o corpo e o eu.

 

Esta alienação aos modos de subjetivação e de formação do corpo e do eu acontece porque o homem, desde sempre, projeta no imponderável as imagens de seus ideais sendo o corpo uma dessas telas para-imagens-totais, quer dizer, suporte sobre o qual o sujeito se aliena capturado pela miragem de um eu advindo do Outro, a partir do qual ele se apreende, moto continuum, na sua aposta à totalidade.

 

Por sua vez, e partindo-se das inúmeras definições que se pode dar ao corpo em psicanálise, tais como a concepção de corpo erógeno e sexuado, corpo despedaçado, corpo historicizado e imagem inconsciente do corpo, é possível dizer que, de forma geral, para Lacan, segundo Cukiert e Priszkulnik (2002), o corpo é aquilo que é “marcado pelo significante e habitado pela libido. Corpo de desejo e, portanto, de gozo” (p.143).

 

Diante do panorama apresentado, em que é possível constatar níveis de incidência da instituição do sujeito aspirado em sua alienação pelos desígnios do Outro, cabe perguntar se na clínica psicanalítica, com as suas estruturas psicopatológicas próprias, existem formas de destituição do sujeito e, se a resposta for afirmativa, quais seriam essas formas. Situada neste contexto, com sua proposta de pensar a cultura e também de oferecer um método eficaz para promover a cura (sem nos atermos à discussão sobre o que seria cura em psicanálise),dos mal-estares por ela produzidos nos indivíduos, uma das tarefas da psicanálise seria, em sentido amplo, a de circunscrever as incidências desses mal-estares causados por estas discursividades do corpo enquanto tela de um espaço virtual egóico, para, em seguida, buscar alternativas salubres tanto para a relação do sujeito com o seu corpo quanto para a inserção deste corpo no laço social.

 

Lacan, destituição subjetiva e des-ser

As noções de subjetividade, identidade e corpo foram articuladas até aqui tendo como referência as coordenadas estabelecidas pelos registros do simbólico e do imaginário. Face às formulações indicadas acima para a compreensão da identificação desde a mediação desses dois registros, o que se propõe na sequência é a ideia de que o registro do real expressa um potencial crítico de outra ordem, o que permite um novo olhar para a dimensão da corporeidade. 

 

Assim, na continuidade do que foi exposto até agora, a questão que se coloca no escopo do objetivo deste trabalho é como repensar a localização da corporeidade articulada com o registro do real na clínica psicanalítica, no interior da destituição subjetiva. Mas, para fazer a articulação entre destituição subjetiva e real cabe, antes, compreender a destituição subjetiva na sua articulação com o termo des-ser.

 

A noção de destituição subjetiva adquire várias conotações na obra de Lacan. Como já vimos, uma delas é a que se refere à destituição que acontece com o sujeito na cultura, quando tanto o eu quanto o corpo se instituem desde a alienação radical ao Outro.

 

No que se refere ao tema proposto sobre a destituição subjetiva no interior da psicanálise, duas definições serão suficientes. Elas estão nos textos Proposição de 09 de outubro de 1967 e Discurso na Escola freudiana de Paris.  A primeira definição da noção de destituição subjetiva trata da relação do sujeito com o seu desejo ao fim da relação transferencial, no momento em que o decaimento da fantasia faz com que as opções que o sujeito até então levantara se reduzam a resto. Para Lacan (2003b),

 

a estrutura, assim abreviada, permite-lhes ter uma ideia do que acontece ao termo da relação transferencial, ou seja, quando havendo resolvido o desejo que sustentara em sua operação o psicanalisante, ele não tem mais vontade, no fim, de levantar sua opção, isto é, o resto que, como determinante de sua divisão, o faz decair de sua fantasia e o destitui como sujeito ( p.257).

 

Nesta citação, o termo “destituição subjetiva” é tratado como dado de estrutura naquilo em que ele possui clara conotação clínica, referido às mudanças que acontecem com o sujeito na situação específica do final de análise, instante em que só é possível às suas opções, isto é, o resto, entenda-se modos de gozo, decaírem porque, como veremos a seguir, o des-ser o afeta.

 

Então, o que acontece neste processo são mudanças estruturais resultantes da afecção do des-ser sobre o sujeito. Trata-se, para nós, de entender que o gozo é aquilo que aprisiona o sujeito e que a destituição do sujeito deste gozo é a sua libertação. De quê? De ser este resto em que se vê aprisionado ao reduzir-se àquilo que goza das sobras na relação senhor-escravo, sobras que tornarão o sujeito fraco e doente. Estamos, portanto, falando de dois níveis de destituição do sujeito: aquela que o enfraquece na relação com o Outro na fantasia e, por outro lado, aquela destituição subjetiva que advém livre no final de uma análise. Lacan (2008), nos explica o que é ser livre: “Livre não quer dizer outra coisa senão mandando embora o sujeito.” (p. 45). É disso que se trata. Mas, mandar embora de quê? Do gozo. E o que é o gozo? Ao retomar Freud, Lacan (2008) explicita que é a pulsão de morte que no masoquismo se colore num rebaixamento da vida, pois identificável com a regra do prazer. Assim,

 

o gozo conduz a uma diminuição do limiar necessário à manutenção da vida, limiar este que o próprio principio do prazer define como um infimum, isto é, a mais baixa das elevações, a mais baixa tensão necessária à elevação da vida (p. 111).

 

Na destituição subjetiva do final de análise, é de ser este resto que o sujeito se liberta, vai embora, no des-ser.  

 

Uma terceira definição de destituição subjetiva aparece em “Discurso na Escola Freudiana de Paris”. Nela, após indicar que no término de cada psicanálise o psicanalista é afetado pelo des-ser, Lacan (2003c) se refere à destituição subjetiva para afirmar que “aquilo de que se trata é de fazer com que se entenda que não é ela que faz des-ser, antes ser, singularmente e forte” (p. 278). Ou seja, o efeito do advento da destituição subjetiva do final de análise é, paradoxalmente, é a produção de ser.

 

A ideia contida na afirmação de Lacan é mais enigmática do que precisa. Ela parece indicar a necessidade de se distinguir dois momentos importantes da destituição subjetiva do final de análise. Uma que acontece ao termo da relação transferencial com o analista e outra que, em decorrência da primeira continua, exercendo seus efeitos.

 

Primeiro, tratar-se-ia da destituição subjetiva pensada numa linha de continuidade temporal dentro da clínica, na qual se verificaria efeitos diferentes com suas consequentes modificações qualitativas conquistadas a partir das mudanças subjetivas, naquilo que o sujeito vai, desde as entrevistas preliminares, dessubjetivando-se de suas ilusões fantasmáticas, culminando com o des-ser do final. Depois, no laço social, portanto, strictu senso, não mais na clínica (a não ser que do lado do analista, caso o psicanalisado decida exercer esta profissão), trataria-se da destituição subjetiva que, ao portar o des-ser, engendra um ser singular e forte. Se a destituição subjetiva não faz des-ser é porque ela, neste nível, é des-ser. Assim, sendo des-ser, o que ela permite é a produção de um ser, outro ser, singular e forte.

 

A distinção a ser feita aqui se refere a que se trata, de um lado, da mesma destituição subjetiva (via di levare) com diferentes conotações qualitativas, dependendo do momento em que é articulada na clínica e, de outro lado, da destituição do sujeito do des-ser desde a sobreposição (via di porre) de formas temporais exercidos nas relações sociais.

 

Lacan (2003a) afirma que o ser do sujeito é “a sutura de uma falta” (p.207). Por outro lado, o ser singular e forte seria aquele que após a travessia do fantasma participaria do laço social de modo bem diferente, pois foi afetado pelo des-ser e o suporta. Tratar-se-ia, portanto, de um ser que não mais sutura a falta e que se sustenta na falta-a-ser. Com esta afirmação, Lacan indica a coexistência do des-ser e do ser em uma identidade que suporta sustentar-se como queda do objeto a enquanto suporte do desejo do Outro.

 

Quanto ao conceito de des-ser acima referido, este aparece tanto no texto da Proposição de 9 de outubro de 1967  quanto no texto Discurso na Escola freudiana de Paris. Por sua vez, em O ato psicanalítico, resumo do Seminário de 1967-1968, texto da mesma época que os outros dois anteriores, Lacan aborda o assunto sobrepondo-o a um fundo de claras conotações hegelianas no que tange à dialética do senhor e do escravo. Lacan (2003d) afirma que na destituição subjetiva do final “o em-si do objeto a esvazia-se no mesmo movimento pelo qual o psicanalisante cai, por ter verificado neste objeto a a causa do desejo” (p. 371). Neste momento, ele fala do ser como o que é em-si e que o des-ser é a queda que promove a libertação (retirada, saída, ir embora) do ser de seu em-si ao se tornar para-si mediado pelo outro. O des-ser é a libertação do em-si do ser e de tudo o que o objeto a como desejo do Outro comporta de ideal.

 

Desse modo, ao se reportar nestes textos, especificamente àquilo que acontece com o sujeito no final de análise, Lacan refere-se ao des-ser para indicar o que se passa com o sujeito quando ele se desvencilha das seguranças fornecidas pela fantasia enquanto aquilo que possibilitava ao sujeito, por um lado, defender-se do real e, por outro, também, desejar. Segundo Lacan (2003b), 

 

nessa reviravolta em que o sujeito vê soçobrar a segurança que extraia da fantasia em que se constitui, para cada um, sua janela para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser (p.259).

 

Então, agora, é o des-ser que constitui a janela para o real, e não a antiga forma de estruturar a fantasia.

 

Para Lacan, a substância do ser sexuado que é o homem é o gozo. Lacan (2003c): “Com essa referência ao gozo inaugura-se a única ôntica admissível para nós” (pág. 327). Nestes termos, a característica fundamental do gozo é que ele exige do Outro, através da variação de seus modos, a sua permanência infinita e absoluta no tempo. Nesta via, só é possível compreender o que é o des-ser lacaniano se o tomarmos como a afecção que o sujeito apreende enquanto resultante dos desligamentos lógicos dos seus modos de gozo operados pela análise. O des-ser é, assim, aquilo que afeta o sujeito no final da análise, sendo esta afecção a condição para a passagem do psicanalisante a psicanalista dado que ele é o que abre a porta que franqueia esta passagem. Lacan (2003b) diz que o que o sujeito apreende é o seu desejo, que “não é outra coisa senão o des-ser” (p. 259) e “com que ele é afetado” (p. 279). Lacan diz isso com todas as letras. O des-ser não é outra coisa senão a apreensão do desejo advindo do processo de separação do Outro, no que isso implicava de adesão aos modos de gozo exigidos do Outro.

 

Para abordar o termo “apreensão do desejo” que Lacan introduz ao falar da qualidade do des-ser, recorro à ontologia conectiva de Espinoza (1983) que no livro I, definição V “da Ética”, ao falar da substância, estabelece uma teoria dos modos em sua relação com os afetos. Assim, ele afirma que “os modos são afecções de uma substância, ou seja, o que é em outra coisa (in alio, acidentes), e que também se concebe por essa outra coisa” (p.90).

 

Nessa linha, chamo a atenção para a palavra “apreensão”. “Apreender” significa aqui ser afetado, onde a “afecção” é a incidência de um afeto, que pode ser um traço, uma marca que se produz de certo modo quando um corpo é afetado por outro através de um suporte que o veicula, e que pode ser uma ideia, um saber. Lacan (1988) frisa que a “direção na qual se envereda o pensamento freudiano é sempre a de colocar o afeto na rubrica do sinal” (p.130), e que a angústia é o sinal que não engana. Esta afecção, por conseguinte, pode produzir um efeito negativo, que rebaixa o movimento mas, de outro modo, pode produzir também um efeito positivo que pode ser a potência de agir, de pensar. Esta ideia será importante ao tratarmos da terceira noção de destituição subjetiva,quando veremos que ela se articula com a noção de ser singular e forte no momento em que o psicanalista faz liame com o social.

 

Dessa forma, sofrer a apreensão ou ser afetado pelo des-ser implica deixar de ser afetado pelos modos dos afetos que copulavam as ideias do ser na fantasia, aquelas ideias doentes que rebaixavam a vida, no gozo.  Perceba-se que as ideias são os suportes representacionais que sustentam os afetos. E caberá perguntarmos como na destituição subjetiva do final e após o final da análise os afetos e as representações se co-ligam, uma vez que o des-ser implica justamente desligamentos e rearranjos entre afetos e representações.

 

Assim, a partir destas coordenadas, é possível afirmar que a sentença de Lacan de que a apreensão do desejo não é outra coisa senão a de um des-ser é equivalente à afirmação de que o sujeito é afetado pelo des-ser e que, desse modo, ele está se referindo a este des-ser como um afeto forte e que continuará forte o suficiente para desalojar os outros afetos que parasitavam as ideias anteriores com seus respectivos modos de gozo.

 

Percebe-se, então, que o des-ser é um afeto bem diferente dos demais. Primeiro, porque ele é um afeto que ao advir faz com que os demais afetos saiam de moda, quer dizer, tornem-se de modé, ou seja, quando o des-ser afeta o sujeito, ele suprime os outros afetos que copulavam as ideias. Para que isso ocorra, ou seja, para que o afeto do des-ser advenha, é necessário que ele se torne em sua negatividade um afeto mais forte que todos os outros afetos reunidos em conjunto. Quando isso acontece, o afeto do des-ser continua forte no interior do efeito de ser do novo sujeito e, nele, desenvolve a potência salubre de agir. Cumpre ressaltar que em sua negatividade, o des-ser comporta um modo de afecção que não é in alio, ou seja, o ser esvaziado quanto ao objeto a não é, no que se refere ao seu desejo, em outra coisa, quer dizer, não é alienado aos modos de gozo no sintoma. Por isso, nesses termos, ele não é acidente.

 

Segundo, porque o des-ser é um afeto que esvazia o sujeito e causa o luto. É por isso que no final da relação transferencial o psicanalisante não tem mais vontade de levantar a sua opção, pois a potência do des-ser a dissolveu e a dissipou uma vez que o advento desta potência se dá justo no momento em que o sujeito se vê reduzido ao significante qualquer que sustentava em agálma e decai (o que não quer dizer que ele deixa de existir) de sua fantasia. 

 

Portanto, se, por uma lado, os modos de gozo são afetos que substancializam o ser, então, por outro lado, o des-ser é o deixar de afetar-se por esses modos.O des-ser é o apagar dos afetos que transitavam através das ideias que suportavam estes modos de substancializar o ser. Assim, des-ser pode ser entendido como afecção que tira os modos de gozo de moda no mesmo golpe em que advém como desejo. Por isso, para Lacan, retirar os afetos produz o efeito de des-substancializar o ser e seu gozo, o que desvela o sujeito como suporte sem o posto, logo, condição para conduzi-lo a novas formas de se manifestar. Como diz Lacan (2003c) “no des-ser revela-se o inessencial do sujeito suposto saber” (p. 259). O que é este inessencial? O seu posto, o seu saber, o que antes era acidente.

 

O des-ser do primeiro momento traz este traço, esta marca da apreensão, que advém quando o sujeito é afetado pelo seu desejo. Mas, que desejo? Aquele do qual ele não sabia ainda a causa, por ser sexuado, hiância e fratura? Desejo advindo da reviravolta em que este sujeito vê soçobrar a segurança extraída da fantasia, diz Lacan (2003b) “naquilo que a fantasia é o que promove a entrada do sujeito no real” (p. 259). Assim, o desejo apreendido, que é o do des-ser, advém quando o sujeito extrai as suas modalidades de ser, de gozar, da fantasia.  “Extrai” significa aqui: deduz e transforma. Então, veja-se, só é possível haver desejo lá onde ele advém como consequência da afecção do des-ser, no que este é a condição para que os gozos se dissipem. Fica claro assim que gozar não é sinônimo de desejar ou de exercer as vias deste desejo. O desejo que advém no final é uma solução lógica da equação posta na estrutura do sujeito suposto saber.

 

Desse modo, para Lacan (2003b), no final da travessia, o psicanalisante fica sabendo o que era do ser do objeto de seu obscuro desejo, ou seja, do gozo na fantasia (do gos-sou) que sobrou ao ser separado como resto na relação senhor-escravo e, então, ele advém ao outro ser do final da análise, ou seja, ao ser salubre do saber sobre este gozo, e se apaga (gomme), no sentido de passar a borracha (p. 259), ou no sentido de Santo Thomas de Aquino para quem, refere-se a ele Lacan (2003b) na Proposição de 9 de outubro de 1967, no final de sua vida, sua obra se tornou sicut palea, ou seja, esterco, dejeto, lixo, estrume (p. 259).

 

É o que Lacan (2003b) ensina quando diz que a destituição subjetiva deste momento equivale ao des-ser enquanto aquilo que acontece com o sujeito após o decaimento da fantasia, desde onde o desenlace da análise ocorre com a solução do desejo a partir da evolução de agálma dentro da estrutura do sujeito suposto saber. A destituição subjetiva enquanto des-ser é a des-essencialização, des-substancialização do sujeito de gozo. Por isso, Lacan (1993) diz no Seminário XX que “onde está o ser há exigência de infinitude” (p. 19), quer dizer, sob os desígnios do supereu, o ser faz exigência do gozo do Um que sai do Outro, mas, também, o ser exige o gozo do Um, do Um do corpo.

 

O gozo narcísico busca este Um através dos objetos parciais que nunca fecham uma totalidade e que dariam a sua essência de gos-sou. Nisto reside o impasse a que o ser é obrigado a incorrer e, com ele, o sujeito. Em Aristóteles a essência de um ser, que é a substância dá-lhe a sua unidade regular no decorrer do tempo. Para ele, a substância é o que estabelece a essência de um ser, sendo a essência o que dá a unidade deste ser.  A essência é a unidade de um ser, porque ela dá ao ser as suas propriedades necessárias. Assim em Aristóteles, a infinitude é a principal característica da substância essencial de um ser. 

 

Em Lacan, o que dá essência e, de certa maneira, a unidade ao ser é o gozo, e só o gozo, porque nenhum predicativo (a totalidade predicativa é impossível) pode dar unidade ao ser sexuado que é divisão. Por isso, o que o ser exige enquanto Um, enquanto unidade, é a infinitude do gozo, seja do corpo ou do Outro. Por outro lado, o des-ser, ao afetar o sujeito, desmonta este Um. O que advém, então, decorrente da análise, é outro momento da destituição subjetiva.

 

Destituição subjetiva e ser singular e forte

 

Quanto a este outro momento, a partir do qual o psicanalisante passa a psicanalista e, por isso mesmo, assume para si o desejo de engajar-se de outra maneira no laço social, pois bem, é preciso entender que nele a destituição subjetiva, diz Lacan (2003c), “não é o que faz des-ser, antes, ser singularmente e forte” (p.279).  Observe-se que Lacan fala em “ser” da destituição subjetiva, e não mais em des-ser. Toda atenção deve ser dada aos termos “singular” e “forte”. Estes termos não indicam um retorno ao ser da filosofia. Não indicam, também, a recorrência a um ser com um ego forte refletido ao psicanalista, de acordo com a tradicional psicologia do ego. Indicam, ao contrário, que para que o psicanalista faça laço social sem, contudo, perder a especificidade de seu desejo de analista, é necessário que este psicanalista produza em si um ser, e este ser não pode ser qualquer um, mas ser singular e forte nos termos que Lacan conceitua ao dizer que a passagem a psicanalista implica que o psicanalisante abandonou os outros discursos e entrou no discurso analítico.

 

Assim, singular é tudo aquilo que não é plural, quer dizer, é tudo aquilo que não participa de um universal a partir de pelo menos um modo comum e que, portanto, não é o particular deduzido deste universal. Por exemplo, a frase “Sócrates é mortal”, deduzida do silogismo aristotélico, só é possível porque o particular “mortal” em Sócrates participa, ou é comum, ao universal “Todo homem é mortal”. Veja-se, portanto, que a essência socrática de mortalidade nada mais é que aquilo que é comum a todos os homens, quer dizer, plural.

 

 Lacan (2003d) denuncia a universalização que a lógica aristotélica permite introduzir no seio das ideologias de massas. O perigo reside no fato de que o termo médio “Sócrates é mortal” do silogismo aristotélico direciona o homem singular que é Sócrates a participar com seu gozo do universal que a premissa maior afirma (p.377). Que todo homem seja mortal desde sempre e, talvez, para sempre, eis aí uma verdade que não implica as formas de seu gozo para além de sua formalização.

 

Em contraste a esta definição de plural, o que é o singular? É aquilo que não sendo plural, é único, quer dizer, não dedutível de uma universalidade. O singular é a diferença absoluta. Nada mais único que os desfiladeiros a que o sintoma leva o sujeito em suas vicissitudes de gozo, logo, nada mais único que os seus modos de sair deste desfiladeiro e, ao seu estilo, desejar.

 

Aprendemos desde Freud que a maneira de se extrair os modos de gozo é de outra ordem de dedução, a saber, a que rearticula a relação das representações com os afetos.  Portanto, a força associada ao advento do singular só pode ser a potência única que se manifesta quando esta singularidade liberta o seu desejo das amarras do ser alienado à fantasia. Alienação (in alio: no caso, a modos de agregação de ideias impotentes). Assim, no ser singular e forte da destituição subjetiva causada pelo discurso analítico, o sujeito, ao contrário do ser gozante dos discursos alienados, ao se manifestar em sua hiância, ou seja, naquilo que causa o seu desejo, ele resolve o impasse de um gozo que exigia o Um impossível justo porque os objetos parciais do mundo não permitem a totalidade exigida ao Outro pelo supereu. No Seminário 16, Lacan ensina acerca da ingenuidade que é acreditar que o Outro responde ao sujeito desde uma consistência que garante que o outro é como eu. Pergunta ele, Lacan (2008): “Que é o Outro? É o campo da verdade que defini como sendo o lugar em que o discurso do sujeito ganharia consistência, e onde ele se coloca para se oferecer a ser ou não refutado” (p. 24).  Na sequência, diz Lacan, nada pode responder como grito da verdade.

 

Quanto ao terceiro momento da destituição subjetiva, ao inserir-se no laço social, enquanto constituído por uma rede ilusória de sentidos necessários para a sustentação e o amparo de seus indivíduos, o sujeito destitui-se daquilo que o afetara como advindo da queda de sua fantasia: o des-ser. Destitui-se deve ser entendido num sentido bem específico. Não significa que ele se desvincula do des-ser, que ele se despoja, se livra, joga fora ou manda embora, porque o des-ser se tornou fraco e cedeu lugar (in alio) aos modos antigos de ser. Significa ir mais além, ou seja, que para inserir-se no laço social ele dá um passo adiante. Ele porta o des-ser, mas não fica parado nele. Ele persevera e avança afirmando um efeito de ser que porta o des-ser em sua interioridade.

 

A partir do instante em que o des-ser afeta o sujeito não há mais volta. Portanto, o efeito de ser da terceira destituição não significa destituir a segunda destituição para voltar à primeira instituição do sujeito para que ele volte a desejar na alienação da fantasia primordial.  Aquilo de que se trata agora é que não é interessante para o sujeito que ele se instale na depressão, na melancolia, na tristeza, na paralisia causada pela falta de sentido, e que, por isso, permaneça na indiferença apática de um eterno domingo da vida, como, por exemplo, os dois xadrezistas do poema de Fernando Pessoa (1916) que se mantêm jogando indiferentemente enquanto as mulheres e as crianças morrem nas chamas da cidade que estava sendo atacada pelos invasores (Pessoa/Reis em “Ouvi contar que outrora”, Odes de Ricardo Reis, 1916).

 

Trata-se, portanto, de um ser que porta o des-ser. Para Lacan (2003b) as duas destituições se encontram na junção onde “o ser do desejo une-se ao ser do saber para renascer, no que eles se atam” (p.260). Assim, este novo ser singular e forte, forjado desta junção, possui um efeito de ser que revela o sujeito na sua inserção no laço social de forma salubre quando, antes, era de seu mal estar na civilização que se tratava.

 

A destituição subjetiva do final de análise se refere ao movimento de transformação constitutivo do sujeito do des-ser, momento em que ele se separa do Outro na fantasia e redefine os seus modos de gozo. Na continuidade, a destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre no laço social trata de uma transformatividade resultante do movimento de formação de um sujeito cujo eu, logo o corpo, como resto, se reporta ao real deixando-se atravessar num processo de aprendizado que alcança uma posição muito particular ante o saber, que é a de que nada pode preencher o vazio constitutivo do sujeito (os objetos não totalizam o ser) e que, portanto, não se pode mais se enganar diante da promessa sempre traída de completude realizada pelos objetos empíricos do mundo em suas ilusões de objetos fálicos ideais que recobrem o objeto a. Isto porque nenhuma infinitude de predicados preenche o ser. O ser é fratura, hiância, falta a ser quer dizer, ser que subjetiva o objeto a como falta e não como objeto parcial que sutura uma totalidade em suas identificações narcísicas.

 

Gozo, desejo e ato

 

Desse modo, no Seminário VIII, ao se referir à ética do gozo e denunciar que o que mais se vê é que o desejo encontra no ato antes o seu colapso que a sua realização e que, além, na melhor das hipóteses, o ato só apresenta ao desejo a sua proeza e o seu gesto heroico, Lacan (1992) pergunta sobre “como preservar do desejo a este ato, aquilo a que se pode chamar de uma relação simples, ou salubre?” (p. 14). De outro modo, como preservar o desejo do ato insalubre, ou seja, daquele ato que cai nas armadilhas existentes na toca i(a) (identificação imaginária ao Outro) do Outro?

 

Tratar-se-ia aqui, de uma relação entre desejo e ato sem mediação, já que simples, ou de uma relação cujo estatuto seria de outra ordem? Uma leitura possível desta frase é que Lacan pergunta como preservar a relação simples e salubre entre o desejo e o ato, no que se refere ao que se espera de um analista, onde este ato só pode ser o ato analítico, do outro ato que só apresenta ao desejo as proezas e as peripécias que, na sua mediação, introduzem afecções doentes na fantasia.

 

Assim, este efeito de ser salubre seria a relação simples que pode haver entre o desejo e o ato analítico. Então, o que se espera de um psicanalista é que ele se sustente no desejo do analista que é o de perseverar na função de uma essência cuja existência implica afirmar uma relação simples do sujeito com o seu ato. E esta relação simples é aquela que não está mediada pelos modos (acidentes) de gozo dos devaneios ditos platônicos, sendo estes devaneios entendidos como aquilo que se delineia enquanto projeção do sujeito no campo do além da miragem, quer dizer, como diz Lacan (1992) “projeção do sujeito no campo do ideal, desdobrada entre, de um lado, o alter ego especular, o eu ideal, e, de outro, o que está mais além, o ideal do eu” (p. 335). A mediação de que se trata é a que, por outro lado, se refere ao objeto a naquilo que seu esvaziamento comporta a possibilidade de o sujeito sustentar-se o máximo possível em sua opacidade face ao Outro e ao real.

 

O que Lacan explicita no Seminário VIII, na via de uma crítica ao idealismo – inclusive platônico, porque este reflete o dualismo metafísico que se insinuou para dentro da psicologia através de um dualismo psicofísico – e a tudo que ele promoveu na terra desde sua aparição como mal-estar, (porque o ideal é o que o supereu exige ao Outro, e a exigência do ideal destacado ao Outro pelo supereu implica agressividade), pois bem, a todo idealismo Lacan opõe o termo salubridade para designar a saúde que se origina da libertação desta infecção que está no limiar de todas as agressividades que estão na base das atividades humanas. Quanto à cura do idealismo, Lacan afirma que a salubridade está na erradicação dessa matriz que se desdobra numa ontologia metafísica idealista que busca substancializar e essencializar patologicamente o ser a partir das peripécias que não cumprem a função de totalizá-lo, comprometimento a que Lacan (1992) nos exorta é que:

 

…deixemos de rodeios quanto ao significado de salubre no sentido da experiência freudiana. Significa livre, tão livre quanto possível desta infecção, que é, aos nossos olhos, – mas não somente aos nossos olhos, aos olhos desde sempre, desde que se abrem à reflexão ética – a base movediça de todo estabelecimento social enquanto tal (p.14).

 

Assim, a questão de se saber que lugar o corpo passa a ter a partir do momento em que, no processo analítico, o sujeito do inconsciente constitui um novo saber sobre o sintoma, logo, acarreta uma nova identificação, ganha a sua relevância e dimensão a partir do programa que Lacan formaliza na década de sessenta para o final de análise, no qual apresenta a destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre como um paradigma que reserva ao corpo a função de, após atravessar o fantasma, buscar a formação de um novo eu que, caído como resto, tem no objeto a o ponto de referência para um outro romance. Abordo aqui o conceito de objeto a como o termo que Lacan forjou para se referir àquilo que ele chama de resto não simbolizável. Este resto pode ser o gozo, o real, o corpo, ou tudo o que está fora do significante.

 

Isto significa que o objeto a, no que tange ao des-ser, é uma forma de produção que está no horizonte da mudança de posição subjetiva causada pela análise. Lacan (2003d) “É a isso que responde o objeto a. O psicanalista se faz do objeto a. Ele se faz, entenda-se: faz-se produzir; do objeto a: com o objeto a” (p. 375). Desse modo, o objeto a está relacionado com o saber que o inconsciente constrói. Saber que, por ter como núcleo o real não simbolizável do objeto a, é da ordem do não solidário com a verdade. Trata-se, portanto, de uma mudança do saber inconsciente, no sentido de arrancar as raízes profundas do que era do gozo como involucrado pelo simbólico. Lacan (2003d):

 

Será que o psicanalisante, ao término da tarefa que lhe foi   atribuída, sabe “melhor do que ninguém” da destituição subjetiva a que ela reduziu justamente aquela que lha ordenou? Ou seja: o em-si do objeto a que, nesse término, esvazia-se no mesmo movimento pelo a qual o psicanalisante  cai, por ter verificado nesse objeto a a causa do desejo” (p. 371).

Esta mudança de saber, que resulta num des-ser que se propõe a uma outra relação do sujeito com o saber e  com o desejo, produz, a meu ver, o que eu entendo como sendo o silêncio, silêncio (da pulsão) em relação ao velho fantasma, silêncio que não é nem paralisia, nem conformismo, muito menos ausência da relação de objeto mas, antes, uma maneira muito especifica de sustentar-se com o corpo, mediado pelo objeto a, no real. Esta singularidade se manifesta na personagem que apresento a seguir através da maneira como ele atravessa o fantasma com seu corpo.

 

Jacque Maast, um sujeito singular e forte

 

Para a compreensão da posição subjetiva da personagem que ilustra o corpo como real face ao real da guerra, do Outro, do outro e, sobretudo, do gozo no seu sintoma, é preciso introduzir uma definição do conceito de real em Lacan. Esta definição é estratégica, uma vez que será a partir dela que, para nosso propósito, retomaremos a citação desta personagem a que Lacan se refere em (2003b) para ilustrar o que é a destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre.

 

A partir do momento em que Lacan deixa de apostar no simbólico como sendo o essencial da experiência psicanalítica e sua ética, ele passa a articular o real com o vazio. Assim, no Seminário VII, sobre a ética da psicanálise (1960), Lacan articula o real com das Ding, a Coisa que governa o mundo, ou seja, com a pulsão de morte, com o gozo que se presentifica no simbólico e que, contudo, está além dele sendo que é, portanto, muito difícil de apreendê-lo. Lacan (1988) ao situar o que é o real, afirma que seu sentido tem relação com aquilo que faz oposição entre princípio de prazer e princípio de realidade tal como definiu Freud: “Para além do princípio do prazer aparece-nos essa face opaca – tão obscura que pode parecer, para alguns, a antinomia de todo pensamento, não apenas biológico, mas até mesmo simplesmente científico – que se chama ‘instinto de morte’” (p.31). Por ser assim, o real é o registro que ex-siste ao imaginário e ao simbólico. É, também, aquilo que é sem fissura, que não cessa de não se escrever. O real não pode ser simbolizado. Ele é o que caracteriza a impossibilidade da relação sexual: se o real é indescritível, então, não há relação sexual.

 

Partindo destas definições de real, cabe perguntar sobre como um sujeito sustentaria o seu eu a partir da destituição subjetiva naquilo que ela se caracteriza por um despojamento justo daquilo que este sujeito recobre através do sistema simbólico-imaginário, uma vez que aí o de que se trata é de manter-se com o seu corpo a descoberto no interior do laço social, lugar em que, como já foi afirmado, se dá a amarração entre o corpo e os discursos do Outro?

 

Aqui, é preciso interpolar também uma consideração sobre a noção de laço social. Para Askofaré (2010) “o laço é o que assegura a coexistência sincrônica de dois ou mais termos” (p.5). Para este autor, a amarração de que se trata na coexistência de termos no laço social “não são puros significantes mas sim corpos” (p. 5). Por outro lado, uma vez que a relação sexual não existe, como o sujeito da destituição subjetiva poderia sustentar, com seu corpo e sob o primado do objeto, uma inserção no laço social enquanto campo aberto para a coexistência  entre o ser, em sua singularidade desejante, e os discursos do Outro que amarra esses corpos?

 

Para responder esta questão, quero partir, como já anunciamos, de uma personagem que Lacan introduz como sua ilustração daquilo que acontece com o sujeito da destituição subjetiva que se propõe a atravessar o real dos discursos do Outro levando consigo apenas o real do seu próprio corpo, justamente porque, tendo atravessado o fantasma, apreende este corpo para além de um eu que se constitui numa função que não recai mais numa ontologia porque não mais se ilude com as miragens advindas do Outro, e que, no início, alimentavam o seu gozo.

 

Referimo-nos a Jacques Maast, personagem do livro “O Guerreiro Aplicado” de Jean Paulhan (1982), que tomo aqui como ilustração de um sujeito pós-analítico. Este personagem foi indicado por Lacan em “Discurso na Escola freudiana de Paris” (2003c) como a ilustração da destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre, no que a salubridade se refere ao ser singular e forte produzido pela psicanálise. Para Lacan (2003c), “no que concerne ao efeito de ser, aborda-se melhor o assunto em Jean Paulhan. Le Guerrier Appliqué é a destituição subjetiva em sua salubridade” (p. 279).

 

Nesta frase, tanto o termo “efeito de ser” quanto o termo “salubridade” aparecem, assim como anteriormente o termo des-ser, de forma enigmática. Na esteira do debate sobre a cura e sobre a ética em psicanálise no interior mesmo da controvérsia sobre o que é o normal e o patológico, Lacan introduz o termo “salubridade”, dando, desse modo, continuidade a este debate. Assim, neste contexto, o ser como efeito de ser salubre é o que resulta do des-ser.

 

Ao raciocínio desenvolvido até aqui sobre a noção de “efeito de ser salubre”, cabe acrescentar que a salubridade éa capacidade do ser em estabelecer através do esforço do pensamento, relações causais entre ideias inicialmente desconexas para interliga-las a partir de pontos comuns. No contexto que estamos considerando a salubridade é, assim, a capacidade do ser em sustentar o ato do desejo, ou seja, de perseverar neste ser e no seu ato. Esta capacidade advém, portanto, como efeito do estabelecimento dessa rede de conexões causais promovidas pela inteligibilidade do sujeito descentrado. As passagens sobre a trajetória de Jacques Maast que serão apresentadas a seguir ilustrarão a ideia apresentada.

 

Maast é um estudante francês de dezoito anos que se engaja voluntariamente como zuavo (soldado da infantaria francesa) na guerra de 1914. Seu engajamento implica ir ao encontro de um ferimento e de uma morte muito provável. Mas Maast, escreve Paulhan (1982), integrando “um grupo de reforço de cinquenta homens, parte de Saint-Denis silenciosamente” (p.13). Uma primeira leitura do livro de Paulhan pode dar a impressão de um Maast cabisbaixo, depressivo, tolo e à mercê da situação. Contudo, o seu ato de engajamento voluntário na guerra não é uma ação qualquer. No seu ato é possível captar o que para ele é a alegria: um entusiasmo que é o efeito do aumento da potência para agir, ou seja, a capacidade de desalinhavar-se e realinhavar-se (em desapego) em novas maneiras de viver os modos de gozo no sintoma com o qual, agora, ele sabe o que fazer.

 

Assim, este silêncio seria uma metáfora possível do estatuto do eu ante o real da angústia e do gozo, pode-se dizer, no corpo de Maast após o final da análise. Angústia gerada pela questão acerca do que o Outro quer de mim. Trata-se, portanto, o máximo possível, do silêncio da não inscrição do Outro no corpo. Por isso, Jacques Maast é, segundo Soler (1995), este “sujeito que não tem medo, não tem angústia nem ideal” (p. 16), e que aceita ir de encontro a outro real, a guerra (das balas e obuses que silvam sobre a sua cabeça inesperadamente, de um modo que não deixam dúvidas quanto ao que é preciso fazer uma vez mergulhado naquela realidade), como modo de instituir-se enquanto sujeito descentrado e desejante que avança em relação ao cinismo de sua época, superando-o em direção a uma posição ética diante da história de seu sintoma (compromisso de gozo), da guerra (Outro) e do outro (laço social). Veja que aqui mantemos, como condição essencial, a instituição do sujeito do des-ser, que era, por sua vez, o sujeito destituído do ser alienado (in alio) da fantasia.

 

O guerreiro aplicado, corpo e real

 

Esta ideia do corpo silencioso, no real, efeito resultante do advento do des-ser, corpo ejetado do fantasma após o final da análise, coaduna-se com o eu de um sujeito que resolve o problema do júbilo e da angústia, em outras palavras, de sua existência, do gozo. Mas, aqui, é preciso não confundir este silêncio com o mutismo histérico ou com a complacência psicótica e, principalmente, com a indiferença contemplativa dos heremitas. Nada disso interessa à psicanálise que vê aí antes o cinismo e o mal uso de sua contribuição do que o encaminhamento saudável e forte dos efeitos dela decorrentes. Trata-se, antes, do silêncio de um eu, não sem gozo, mas de um eu que não ontologiciza a sua função. Assim, trata-se de um corpo que participa ativamente do processo de formação perseverante do ser singular e forte que aspira a manter os modos decididamente escolhidos de sua existência. E esta é a contribuição crítica que o conceito de real em Lacan pode oferecer, já que ele permite fazer face aos registros de Simbólico e Imaginário como aquilo que envolvia o corpo como suporte das agregações das ideias terceiras (fantasia) que o parasitavam.

 

Deste modo, o corpo participa da formação desta nova identidade. Por formação entenda-se a construção erigida pela tensão dialética entre opostos que se encaminham para a afirmação que é, por sua vez, a potência de agir a qual requer um esforço em que se articulam a razão e os afetos tendo como referência o vazio do objeto a. É neste sentido que formar este corpo significa afirmar este corpo como opacidade que existe sem se deixar substancializar pelas ideias que portavam afetos tristes, deprimidos, portanto, fracos e doentes.

 

O livro de Paulhan (1982) O Guerreiro Aplicado, cujo título já indica esta ideia de esforço para perseverar no ser enquanto aplicação de sua função existencial da essência, apresenta vários momentos que ilustram este ponto em que encontramos Maast indo adiante no seu alistamento voluntário, “com tanta força que não havia com o que se preocupar, por isso nos abandonávamos” (p. 53), com seu corpo num ato que inclui a adequação entre um pensar e agir sustentado por ele enquanto sujeito desejante e descentrado, cuja condição para tal é a de se manter na tensão que direciona o pensamento num dever ético que requer dele estar numa posição subjetiva muito específica, e não qualquer uma, face ao outro, ao Outro e ao seu sintoma.

 

Desse modo, é possível entender o adjetivo “aplicado” atribuído a Maast por Paulhan como sendo este esforço, exercido durante a sua jornada, de perseverar na função existencial de sua essência, diga-se, neste ser que comporta o des-ser/efeito de ser, que sustenta o descentramento do seu desejo após a travessia do fantasma. Basta ver que Maast engaja-se na guerra como voluntário, quer dizer, por vontade própria, mas não por capricho, e sim para afirmar, diga-se, sustentar, a essência que escolheu para a sua existência nos modos particulares em que a realidade se apresenta. Não é disso que se trata quando falamos em sustentação do desejo de analista em sua ética e ato psicanalítico?

 

É assim quando Maast, por exemplo, encontra-se diante de uma moça que o convida para jantar em sua casa. Ele vê neste convite a possibilidade de obter momentos agradáveis, contudo, renuncia à oportunidade porque se vê advertido de seu novo estado em que  “mais que cansado ou ávido de cuidados, estava desejoso de abandono e de cansaço” (Paulhan, 1982, p. 16), ou seja, encontrava-se num estado de alma em que crescia a consciência guerreira que estava se formando nele.

 

Cabe aqui fazer ver que se “aplicado” refere-se ao esforço que Maast sustenta para ir adiante, por sua vez, o adjetivo “Guerreiro” enfatiza justamente o caráter de alguém que “vai à luta” como se diz comumente através do provérbio. Como dissemos, Guerreiro aplicado é uma variação de aluno aplicado. Mas, sua guerra não é a da França frente aos alemães que estão em seu território. Sua “guerra” é a de alguém que se coloca em face de si mesmo, naquilo que ele reconhece necessário fazer frente, através de sua salubridade (em francês, guerrier tem homofonia com gueré (negação), àquilo que mesmo depois da travessia do fantasma, insiste em se presentificar, a saber, a assombração fantasmagórica daquilo que já morreu e que não sabe que está morto: o desejo agregado aos modos insalubres de gozo. Consequência desta operação é a relação simples que o sujeito passa a ter com seus afetos. Em certo momento (Paulhan, 1982, p. 59), Maast explicita o que se tornou para ele os afetos:

 

Parecia que nossos sentimentos de afeto ou de antipatia tinham passado a um segundo plano e tinham sido submetidos pela guerra ao conhecimento da força ou da debilidade de cada um de nós, – conhecimento firme e que dava a nova ordem que sentíamos ter alcançado uma grande simplicidade (tradução Menegassi, 2010, pág. 161).

 

Em outro momento:

 

É difícil fazer compreender a natureza dos sentimentos que eu havia experimentado nestas duas ocasiões e a estranha semelhança que adquiriram para mim: ela não se relacionava com os acontecimentos mesmos, mas com uma qualidade particular como a que, se se quiser, é para o lago o seu nível de água (tradução:Menegassi, 2010, pág. 148).

 

O que o nível da água é para o lago, logo, a natureza dos sentimentos de Maast? Resposta possível: ausência de relação com os acontecimentos, embora toque-os; uma vez que estes sentimentos refiram-se às coisas como qualidades particulares delas e não como ligadas ou pertencentes essencialmente a elas. 

 

Por isso Maast não corresponde ao perfil de um homem típico da bela época francesa do início do século XX, cuja tendência era a de se engajar oportunamente nos movimentos dos ideais coletivos em progresso. Na página 3 do livro ele tem um pensamento que é a reunião racional de noções comuns acerca de sua insistência em suportar-se numa certa posição.

 

Quando ele afirma que ficaria embaraçado (embarrassé) se pensassem dele como “o único galo da vila” (Paulhan, 1982, p.3), ele só o faz porque já se antecipa racionalmente ao possível posicionamento das pessoas, mas, sobretudo, porque se antecipa a si próprio, já que sua razão compôs ideias claras e distintas sobre o estado de sua existência essencial, e se barra.

 

E aí está, descrito por este “embaraço”, o afeto que marca a sua relação simples com o desejo, a que é suficiente para barrar o desejo do ato insalubre. O mesmo sentimento de embaraço advém novamente quando algum tempo depois, já a caminho do front, ele se vê em situação semelhante de poder decidir entre duas direções: ir por um caminho que lhe tiraria da trajetória da perseverança. Isto acontece quando, após ter tomado chá com a amiga que o convidara para ir à sua casa, ele se pergunta se se deixava levar pela conversação e pela ternura ou não. Então, neste instante ele pensa: “Não foi sem um embaraço (embarras), nem sem certo remorso. Eu me vi advertido, assim, de meu novo estado” (Paulhan, 1982, p. 15). Este “novo estado” é demarcado pelo significante “zuavo” que ele opõe ao significante “galo”. E é porque ele é capaz de racionalmente antecipar esta tensão e afirmá-la através dessa barra de embaraçamento, que ele constata que sua força cresce e que, com ela, uma imensa alegria e entusiasmo se apoderam dele, características que refletem o estado de espírito que, quanto mais avança, mais forte e saudável fica. A coisa acontece quando ele recebe uma ordem de derrubar um refúgio que havia cavado na parede da trincheira para se proteger da chuva. Então Paulhan (1982), ele pensa:

 

Não sei por que esta ordem me deu uma alegria, dura como um golpe – depois esse sentimento, no início incerto, que começou a apropriar-se de mim e que não era nem satisfação nem inquietude, mas uma tentativa de entusiasmo. (Paulhan,  p.19-20).

 

Ele diz que assim seria obrigado a permanecer sob a chuva num frio que o impedia até de mover-se. Esse estar sob a chuva, no frio, é o emblema de um sujeito que avança na sua formação, com o corpo como um resto que sustenta o desejo. No final do livro, após receber uma bala, seu lamento não será pela dor e pelo ferimento situados “na velha carcaça” (Paulhan, 1982, p. 85), mas por terem-no socorrido e o tirado do front e da guerra.  No momento em que é ferido, Maast se sente feliz, livre: “Alegria que me parece maior que toda uma existência. Na trincheira a que logo me levam, – quem me levou? Não sei -, sinto a princípio decepcionado. Tudo acabou, a porta está fechada” (p. 85). Na última oração do livro, ele fala de sua experiência externa e interna como uma espécie de segredo. Neste segredo pode-se ver o de que se trata na singularidade de cada um.

 

Corpo e carne como paradigmas de uma nova identidade

 

Por sua vez, como referência sobre o real do corpo, Safatle (2006), propõe a carne como paradigma de uma identidade que faz frente ao outro, onde o sujeito coloca-se no ponto de exílio, de opacidade entre o eu e este outro, justo porque seria possível para Lacan, segundo Safatle,

 

fazer o objeto sair da cena fantasmática. Por meio dessa saída de cena, o sujeito pode ter uma experiência do real do corpo, ou seja, do corpo como carne opaca que não se deixa submeter às formas fetichizadas do imaginário, nem se corporificar por meio do significante com seu primado fálico (p. 210).

 

E é exatamente neste sentido que é possível entender a renúncia de Maast a estar com a sua amiga e sua escolha para continuar rumo ao front. Sua avidez de abandono e de cansaço é o modo como se manifesta esta retirada de seu corpo como objeto da cena do fantasma, é a opacidade da carne que não se deixa submeter ao fetiche nem ao primado fálico expostos na frase de Safatle. Mas é também, em seu silêncio, o pensamento e o ato com o corpo. No início do livro alguém diz que a guerra acabará antes que cheguem ao front. Então Maast pensa: “Contanto que eu tenha alguns dias para combater” (Paulhan, 1982, p. 13).

 

Dunker (2006), por sua vez, ressalta que a carne, enquanto corpo fora do corpo, pode ser uma figura teórica daquilo que Lacan chamou de real, e ela representa uma contribuição à dialética entre simbólico e imaginário que pode compor as formas de identidade não narcísicas do eu ao outro. A carne é aquilo que falta ao corpo para se totalizar e que por definição deve ser não especularizável, ou seja, não caber na imagem. Para Dunker, esta ideia permite pensar a corporeidade como uma situação permanente de duplo descentramento, entre o sujeito e o seu corpo, e entre o corpo e a carne. Trataria-se de pensar o corpo como “corporeidade imaginária” (p. 119) compatível com a noção de eu em Lacan, onde esta corporeidade, em acordo com a função do eu, ganharia um estado cuja função é de um valor formativo. O argumento aqui é que o eu é só uma função. Não é uma ontologia ou uma estrutura. Assim, trata-se de como partir de tal função formadora no quadro da experiência psicanalítica sem incorrer no erro de identificar o eu com a totalidade do subjetivo e com a totalidade do ser.

 

A meu ver, Jacques Maast nos dá algumas destas coordenadas. Nele, o corpo, como condição de uma experiência da destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre ganha, assim, os contornos de um eu que busca sempre novas formações nas quais este eu como função não se deixa apanhar e alienar pelas projeções ideais.  O efeito de ser é o pensamento e o ato, ou seja, é, ao mesmo tempo, uma aspiração a este ser e o seu próprio movimento de formação a este eu que não se coagula, que não ganha consistência ontológica e que, portanto, não se essencializa. Não se trata de negligenciar a importância da imagem do corpo na formação do eu, mas, de apreender este corpo como escreve Dunker (2006) em acordo com a função do eu, quer dizer, menos em uma ontologização do que em uma constante metamorfose (p. 120).

 

À guisa de conclusão, para Safatle (2006):

 

Os homens só são humanos quando eles se reconhecem naquilo que não tem os contornos auto-idênticos de um eu. Pois só há um sujeito lá onde há a possibilidade de reconhecer uma experiência interna de não-identidade. Uma experiência cujo espaço privilegiado de reconhecimento não parece mais ser a relação intersubjetiva da consciência de si, mas a confrontação traumática entre sujeito e objeto (p.220). 


Esta pode ser uma saída interessante para o corpo após o final da análise em sua articulação com a destituição subjetiva em seu efeito de ser salubre. Volto à frase de Lacan (1993) do Seminário XX de que “o gozo do corpo…. simboliza o Outro”  (p. 13), para afirmar que se o corpo é o real, o que concerne ao gozo enquanto sexual é que ele é marcado por um furo “que não lhe deixa outra via senão a do gozo fálico” (p. 16). Lacan (1993) também diz que “no gozo dos corpos, o gozo sexual tem esse privilegio de ser especificado por um impasse” (p. 17). O impasse refere-se ao furo que não deixa outra via senão a do gozo fálico.  É porque a mulher é não-toda, quer dizer, comporta um furo, que é preciso o falo. A mulher é não-toda devido a uma exigência lógica da linguagem. Como não-toda, a linguagem como Outro encarna o corpo e decide a sua sexualidade. Cumpre lembrar que quanto à angústia, no Seminário X. Lacan (2005) afirma que esta “jaz na relação fundamental do sujeito…com o desejo do Outro” (p.304). Em outras palavras, o sujeito se angustia diante do desejo x do Outro. Traduza-se este x como desconhecido e teremos que o desejo do Outro, ao demandar um objeto, interroga o sujeito quanto à sua posição fálica, seu gozo fálico, na via do “será que eu posso dar o que Ele quer de mim e, por outro lado, seu desejo não me arrancará o meu objeto fálico de gozo”?

 

Assim, na destituição subjetiva, quando o corpo se reduz ao resto, ao objeto a, não é sem esta incidência do furo. Aí, contudo, o sujeito não se faz todo, ele permanece não-todo e, portanto, comporta o furo. Desse modo, a recorrência ao gozo fálico, na via do ainda falta, mas, também, da falta a ser, encontra o seu limite naquilo que é a opacidade do outro. Na destituição subjetiva o corpo serve como suporte (Hypokeimenon) das insígnias de gozo do Outro, contudo, na medida mesma em que este sujeito de modo algum goza em ser este suporte, embora não se furte a sê-lo. Caído que está do Outro, o sujeito da destituição subjetiva não goza de ser o objeto fálico do Outro, ao contrário, ele realiza o seu desejo na medida em que encontra a sua liberdade fora do regime das formas narcísico-imaginárias. Como infinito que se transfere sempre para além da possibilidade de qualquer apreensão fantasmática diante do outro, do Outro e do próprio eu, o corpo é este negativo diante do qual a destituição subjetiva se detém.

 

Referências

 

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¹ Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Bacharel em Filosofia  pela  Universidade de São Paulo  e  possui  Licenciatura  Plena, Bacharelado e Formação Clínica em Psicologia pela Universidade de Mogi das Cruzes. Email para contato: abl.menegassi@ig.com.br