20 nov 2020

Grupos surgiram como respostas às dificuldades dos alunos de encontrarem na universidade vivências semelhantes

Escuta Preta, Tarja Preta, Núcleo Ayé e Coletivo Negro. Esses são alguns dos grupos criados por estudantes negros para estudantes negros da USP. São espaços de acolhimento, de compartilhamento e de luta. O desafio é mostrar que a universidade precisa se organizar para ser um local de e para todos. Desde 2017, a USP adotou como política institucional as cotas sociais e raciais na graduação. Isso significa reservar vagas nos processos de seleção para quem estuda em escola pública e ainda se autodeclare preto, pardo ou indígena (PPI).

Em 2020, a universidade registrou o índice de 47,8% de alunos matriculados vindos de escolas públicas em seus cursos de graduação. Entre eles, 44,1% autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. A principal preocupação dos coletivos é acolher quem está chegando e quem já estuda na USP. Mas não sem esquecer o combate ao racismo e à fraude na política de cotas.

Alguns desses coletivos relataram como é ser um aluno negro na USP e de suas lutas na vivência em uma das principais universidades públicas do País.

Coletivo Escuta Preta

coletivo surgiu em 2019, criado majoritariamente por calouros do Instituto de Psicologia (IP) da USP, em São Paulo. “Questionávamos a falta de representatividade discente dentro do IP. Também criticamos a forma como a nossa grade curricular é estruturada, porque privilegia principalmente autores homens, brancos e europeus, que tratam de uma subjetividade muito específica do ser humano, com a qual a não nos vemos representados”, conta Alexia Oliveira, de 22 anos. Ela está no segundo ano do curso de Psicologia e foi uma das articuladoras do coletivo.

O grupo hoje é formado por 15 estudantes e busca por mais representatividade dentro do instituto, por uma formação antirracista. “Infelizmente, a nossa formação negligencia como as opressões de classe, raça e gênero interferem na escuta dos psicólogos, e a nossa pauta é que isso mude. Queremos uma formação que nos torne psicólogos críticos, que não se conforme com as opressões que existem na nossa sociedade e que consigamos passar isso pra outras pessoas e formar psicólogos anticolonialistas”, explica a estudante.

No ano passado, eles organizaram um debate sobre as cotas e, neste ano, a Primeira Semana de Psicologia Preta. O coletivo também funciona como um grupo de estudos. Antes da pandemia ocasionada pelo coronavírus, ocorria a discussão de livros considerados importantes, de autores como Neuza Santos, Franz Fanon e Grada Kilomba, pesquisadores da área de psicologia.

Alexia Oliveira, de 22 anos, está no segundo ano do curso de Psicologia e foi uma das articuladoras do coletivo – Foto: Arquivo pessoal

A importância do coletivo pra mim é muito grande, foi um espaço que me acolheu. Conseguimos muitas oportunidades depois de formar o coletivo e aprendemos muito. Participar do Escuta Preta foi muito importante porque eu vi pessoas que passavam pelas mesmas situações que eu passava na universidade e que me acolhiam, me respeitavam e me motivavam a fazer todos os meus planos

Eles acreditam ser necessário aumentar o número de vagas destinadas às cotas raciais da graduação e criar a modalidade de cotas para a pós-graduação, que ainda não existe. Além disso, o grupo pretende se mobilizar para a realização de um vestibular indígena na Universidade. “Também pensamos em ter uma clínica preta dentro do instituto. Temos um sonho de sermos psicólogos que tenham uma formação voltada pra questão racial e que consigam prestar um atendimento adequado para a nossa população, que ainda é muito negligenciada  em muitos atendimentos”, diz Alexia.

Clique e confira as redes sociais do coletivo:

 

Coletivo Tarja Preta

Uma ação de estudantes Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP, em São Paulo, contra a falta de inclusão e acolhimento de pessoas pretas deu origem ao coletivo no ano passado.

“Conversando com dois amigos pretos, Guilherme e Filipe, no bandejão, percebemos que – no fundo já sabíamos que era verdade, dentro das salas de aula do nosso curso, o número de alunos negros era muito inferior ao número de vagas por cota racial”, relembra Cibeli Lopes Gomes Cardoso, 20 anos, que está no segundo ano do curso de Farmácia-Bioquímica e cofundadora do coletivo.

Esse fato despertou a vontade de, além de criar um espaço de troca de experiências e resistência, se reunir como grupo para denunciar as fraudes de quem se inscreve indevidamente na modalidade de cota racial.

“Observamos que há pessoas brancas usurpando nossa luta e direito conquistados que não lhes dizem respeito. Isso nos mobiliza cada vez mais para reafirmar nosso lugar e nossa negritude dentro desse espaço”, comenta Cibeli.

Guilherme Reis, 19 anos, colega de curso da Cibeli e cofundador do Tarja Preta, acrescenta que “tem um certo número de vagas, juntando Fuvest e Sisu, mas olhando as turmas que entraram, o número de alunos é menor que o número de vagas PPI”.

Além da pauta sobre as cotas raciais, o grupo trabalha acolhimento e conscientização através de encontros semanais. “Como recurso para que o debate se mantivesse constante dentro do grupo, organizamos encontros para discutir temas como colorismo, ancestralidade, movimentos sociais, música como ato de resistência, entre outros”, diz Cibeli.

Hoje, eles são em 30 pessoas e planejam ações para o futuro como continuar o projeto proposto pela política de cotas e incluir cada vez mais pessoas pretas em todas as esferas. “Queremos realizar eventos em que pessoas pretas e periféricas possam ter contato com a ciência que produzimos dentro da Universidade e que tenham profissionais negros para guiar diálogos como esse”, destaca Cibeli.

Núcleo Ayé

O Núcleo Ayé, coletivo negro da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), em São Paulo, surgiu em agosto de 2017 através de uma iniciativa liderada por duas alunas da pós-graduação, Gláucia Verena, à época em seu mestrado, e Merllin de Souza, doutoranda. O grupo tinha como objetivo recepcionar os primeiros ingressantes da Universidade aprovados por meio do sistema de cotas raciais, que passou a ser adotado a partir de 2018.

Segundo Danielle Rosa Beserra, mestranda na FMUSP e diretora de acolhimento do núcleo, uma das principais preocupações do Ayé é acolher os alunos pretos na faculdade. E o processo se inicia desde o nome. “Ayé” é uma palavra de origem Yorubá e significa “mundo físico”, “terra”.

O núcleo atua principalmente no letramento racial, no combate às fraudes das cotas e ao racismo e na promoção da saúde mental e permanência estudantil dos alunos. “A presença do Ayé na faculdade possibilita que os estudantes negros tenham um local de segurança e representatividade dentro da Faculdade de Medicina. É no Ayé que podemos nos fortalecer enquanto comunidade”, destaca Danielle.

O coletivo organiza encontros semanais em que dialoga sobre diversas temáticas relacionadas à negritude, como espiritualidade, cultura, música e política – por conta da pandemia, os encontros são virtuais.

O Ayé também promove eventos abertos à comunidade externa, como o Sarau da Consciência Negra, que neste ano será no dia 27 de novembro e tem como objetivo divulgar produções artísticas de alunos negros.

De acordo com Danielle, a existência do coletivo negro em uma das mais tradicionais faculdades de medicina do Brasil influencia também no processo de escolha dos estudantes. “Ouvir que alunos escolheram a Faculdade de Medicina por ter um coletivo negro em que sabiam que seriam acolhidos não tem preço. E isso reafirma a importância da nossa existência”, enfatiza.

Apesar disso, a integrante lembra que é função de toda a comunidade universitária promover ações antirracistas a fim de incluir os alunos negros na Universidade. “Não podemos ser os únicos responsáveis por lutar por pela permanência estudantil, saúde mental dos estudantes negros e também no que se diz respeito no combate a fraude às cotas”, afirma.

O núcleo tem mais de 60 integrantes, entre estudantes da graduação e pós, de cursos como Medicina, Fisioterapia e Fonoaudiologia. Os estudantes negros da FM da USP que quiserem conhecer e participar do coletivo podem contatar o Ayé através das redes sociais para ter acesso aos encontros virtuais.

Coletivo Negro da USP Ribeirão Preto

O Coletivo Negro da USP, em Ribeirão Preto, surgiu em 2014 como um espaço de combate ao racismo e à violência racial. Através de conversas e discussões, o coletivo se tornou não apenas um ambiente de debate de ideias, mas também um local de autorreconhecimento.

“O coletivo teve um papel extremamente importante na minha identidade enquanto pessoa. Através dele, me reconheci e construí vínculos. Após participar, me senti mais confortável e acolhida na Universidade”, diz a integrante Carolyne Laurie, que está no último semestre da graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP.

O grupo organiza reuniões quinzenais em que discute temas relacionados à negritude a partir de referências textuais e artísticas. Nesses encontros, os estudantes compartilham impressões do material analisado e também experiências. Além disso, o coletivo realiza diversas atividades que não se limitam ao espaço das salas de reuniões. Os integrantes organizam eventos, atividades na semana de recepção dos calouros, idas em conjunto ao restaurante universitário e outras atividades de lazer.

Para Carolyne, é justamente essa relação tão próxima entre os participantes que contribui no processo de acolhimento e sensação de pertencimento.

Para a estudante de psicologia, o Coletivo Negro da USP Ribeirão Preto teve um sentido ainda maior. Carolyne está pesquisando sobre questões interraciais, tema que surgiu após uma das reuniões do grupo. “A minha pesquisa saiu de um grupo de debates. Hoje, estudo sobre famílias interraciais e racismo”, diz a integrante.

O coletivo é composto por alunos de diversos cursos do campus de Ribeirão Preto, como Psicologia, Fonoaudiologia, Direito e Enfermagem.

David Ferrari e Karina Tarasiuk, para o Jornal da USP, 20/11/2020.

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