No primeiro domingo do ano, dia 3 de janeiro de 2021, perdemos a querida Sylvia Leser de Mello, professora emérita de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP que, aos 85 anos, não resistiu a complicações decorrentes de uma conjugação de problemas de saúde e veio a falecer, numa parada cardiorrespiratória

Sylvia graduou-se em Filosofia (1961) na USP, especializou-se na Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales, França (1963-1964), e doutorou-se em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (1972), na USP, sob a orientação de Carolina M. Bori.

Suas contribuições para a Psicologia, em especial para a Psicologia Social e do Trabalho no Brasil, são incomensuráveis. Ao longo dos quase 60 anos de dedicação à USP, Sylvia formou centenas de alunos, lideranças e intelectuais que hoje se debruçam sobre a produção social da desigualdade no País e colaboram na direção da emancipação da dominação. É inestimável também a sua contribuição sábia, efetiva e sempre coerente na direção da democratização da Universidade de São Paulo, mesmo nos longos anos da ditadura civil militar que marcaram o início de sua carreira como professora, em 1962.

Em todos os campos em que atuou, o exame crítico das condições psicológicas dos homens em situação de dominação foi o fio condutor das investigações de Sylvia, que operava sempre numa dialética que incluía resistência diante dos processos sociais mais violentos de alienação e o desenvolvimento pessoal dos envolvidos. Ela buscava a expressão individual, o saber de cada um, seja na formação de cooperativas populares, seja na escuta das narrativas das mulheres pobres da Vila Helena com quem trabalhou, na tensão da consciência da opressão com a esperança de encontrar a liberdade.

Para aprofundar o exame desta tensão, Sylvia propunha a literatura como instrumento privilegiado de auxílio à Psicologia Social. Nos textos literários, ela buscava elementos para a interpretação dos fenômenos que presidem a formação da subjetividade. Em um curso na pós-graduação sobre Kafka, Sylvia punha seus alunos em contato com os conflitos dos homens no século XX e início do nosso século, dentro da família, do mundo do trabalho, da vida na sociedade burguesa, estimulando o debate sobre a vida na sociedade administrada. Na relação com os estudantes, mantinha uma generosa, empática, humilde capacidade de ensinar e aprender. Era marcante a mescla de doçura e crítica feroz que fluía através das hipnotizantes análises da mestre.

No ensino, na pesquisa e na extensão, Sylvia convocava, sem privilégio exclusivo, tanto diferentes campos do saber – a Psicologia Social, a Psicanálise, a Educação, as Ciências Sociais, a Antropologia, a História, a Literatura, quanto diversos procedimentos de pesquisa, com a finalidade de permitir a revelação das brechas por onde fosse possível superar os limites do tecido individual e social dos implicados. Para Sylvia, a socialização é um processo contínuo, que se dá em todas as esferas da vida e, por isso, seu campo de estudos e de trabalho levou fortemente em consideração o campo da socialização de adultos. Sylvia se lançava atrás da tentativa de superar os sólidos limites do que somos, das ideologias que nos constituem, do nosso modo de nos inserirmos no mundo do trabalho e de uma sociabilidade mais ampla.

Professora emérita Sylvia Leser de Mello, durante confraternização de sua aposentadoria realizada em novembro de 2016, na Biblioteca Dante Moreira Leite do Instituto de Psicologia da USP / Foto: Aparecida Angelica Zoqui Paulovic Sabadini

Com o mesmo olhar que levava em consideração simultaneamente as estruturas macrossociais e os seres humanos que as constituem – olhar voltado para o amplo espectro de instituições sociais nas quais se fazem os processos contínuos de socialização –, Sylvia debruçou-se sobre a família. Em seu artigo Família, uma incógnita familiar (2002), ela demanda este olhar, se quisermos compreender algo das organizações familiares:

“Retirar a família de seu isolamento, colocá-la na história, tratá-la como instituição cujas raízes sociais são inequívocas, compreendê-la aí dentro e, ao mesmo tempo, reconhecer o âmbito da intimidade e a formação da subjetividade, é tarefa complexa.”

Pensar a família, as relações de gênero e a sexualidade no Brasil hoje, e o impacto de suas transformações, tornou-se para Sylvia um programa de ação que ganhou ainda mais corpo quando, em 1993, ela criou, no Departamento de Psicologia Social e do Trabalho, o Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade (Lefam), com o objetivo de desenvolver estudos e pesquisas que, numa perspectiva transdisciplinar, tratassem das problemáticas da família, do gênero e da sexualidade em seus contextos psicossociais.

O Laboratório desde o início abrigou, sob a coordenação da professora Vera Paiva, o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Prevenção à AIDS (Nepaids), que desenvolve trabalhos de pesquisa, formação e assistência voltados para os temas da sexualidade, das relações de gênero e da aids. Hoje, o Nepaids tem dedicado o seu repertório de conhecimentos e intervenções para compreender a resposta psicossocial à pandemia de covid-19 no Brasil.

A USP deve também à Sylvia Leser de Mello a construção de importante espaço para olhar o trabalho preso e enredado nas relações capitalistas de forma crítica, com as lentes da Filosofia e da Psicologia Social, e para buscar alternativas que mitiguem os sofrimentos dele decorrentes. Em consonância com sua crítica às desigualdades e problemas que a sociedade de classes engendra, Sylvia abraçou projeto cujo objetivo era construir relações igualitárias de trabalho. Trata-se aqui de sua atuação no campo da Economia Solidária, na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP), criada em 1998, que promove formação, apoio e incubação a grupos de trabalhadoras/es que buscam constituir cooperativas de trabalho autogeridas.

Nessa direção, fundou o Núcleo de Economia Solidária da USP (NESol), que articula alunos que se inserem na pós-graduação como pesquisadores da economia solidária. A formação ali de estudantes de graduação e pós-graduação, técnicos, docentes e grupos de cooperados dá-se no exercício cotidiano, vivenciando os desafios, as potencialidades e as contradições. Sylvia não se posicionava apenas teoricamente em favor de relações igualitárias, mas se dispunha a vivenciar seus desafios. Ao mesmo tempo, como iniciativa de extensão, a ITCP contribui na reflexão sobre as relações entre a universidade e a população.

Conforme Paul Singer, seu colega nesse projeto: “Sylvia Leser de Mello teve participação destacada na elaboração da filosofia da incubação e de suas decorrências políticas e pedagógicas. Sua presença sempre provocativa e estimulante nos ajudou a enfrentar os problemas que uma empreitada como esta não deixa de suscitar” (Singer, 2006: 46). Os desenvolvimentos no campo da política nacional de Economia Solidária devem muito ao trabalho construído a partir das ITCPs e das contribuições de Sylvia Leser de Mello, como atestava Singer em 2006, na condição de Secretário Nacional de Economia Solidária do Ministério do Trabalho.

Sua passagem por diversos cargos e na direção do Instituto de Psicologia da USP (1992-1996) espelhou sua generosidade e abertura para o outro, um genuíno dialogar com a autonomia de pessoas. Junto aos docentes, alunos, funcionários com quem conviveu e liderou, estimulava o exercício da democracia em um momento em que o país e a Universidade começavam a se repensar, depois da promulgação da nova Constituinte cidadã.

Às mulheres da Vila Helena, deu a palavra e com elas aprendeu e nos ensinou; aos alunos de graduação devolvia os temas que os interpelavam, renovando o curso anualmente e a cada aula oferecendo um texto primoroso, de próprio punho, denso e literariamente encantador, fomentador da boa conversa e do debate; aos orientandos que acolhia, ensinava como ensinar e como orientar para a autonomia, com a liberdade de escolher seus temas e referências teóricas, aprendendo com eles. Aos psicólogos brasileiros, presenteou a corajosa e inovadora reflexão crítica sobre o lugar da Psicologia no país, tema de sua tese de doutorado e de seu livro seminal, Psicologia e Profissão em São Paulo (Mello, 1975). Sua análise sobre a profissão confinada aos consultórios particulares, para quem pode pagar, marcou gerações e promoveu transformações necessárias no currículo dos cursos de Psicologia no Brasil para os tempos que se seguiriam, como as profecias de que são capazes os grandes intelectuais que têm a coragem de pensar seu país. Como lembra Maria Helena Souza Patto (2006), o cenário de expansão que Sylvia imaginou para psicólogos inseridos na realidade social brasileira resultou em perguntar como seria trabalhar “com escolares, em escolas públicas de periferia, com as famílias desses escolares, com os professores e diretores dessas escolas, com menores órfãos e abandonados, nos recolhimentos de menores, nos orfanatos, com as pessoas que cuidam desses menores, com delinquentes nas prisões, com os policiais e os juízes, com migrantes e suas famílias, chegados há pouco em São Paulo?”

Sylvia nos deixa o aprendizado da convivência, seu legado ético, o compromisso cotidiano de trabalho e luta no ensino, na pesquisa e na ação social. Nos deixa sua amizade e seu amor.

Adeus, Sylvia, muito obrigado!

Referências
Mandelbaum, B. Os processos de socialização e a família no trabalho de Sylvia Leser de Mello. Psicologia USP, v. 17, n. 3, 2006.
Mello, S. L. Trabalho e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. SP: Ática, 1988.
__________. “Família, uma incógnita familiar”. Em Família: conflitos, reflexões e intervenções. SP: Casa do Psicólogo, 2002.
Mello, S. L. (1975). Psicologia e profissão em São Paulo. São Paulo: Ática.
Patto, MH. (2006). O sentido de uma obra: sobre Sylvia Leser de Mello. Psicologia USP, v. 17, n. 3, 2006.
Singer, P. (2006). Depoimento: Sylvia Leser de Mello e a Economia Solidária. Psicologia USP, v. 17, n. 3, 2006.

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