06 nov 2024

O rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, Minas Gerais, em 2019, além de causar perdas humanas e sérios impactos ambientais e socioeconômicos, levou a um aumento significativo do adoecimento psíquico entre os moradores da cidade. Uma pesquisa da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP revelou que o número de atendimentos individuais nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do município mais que dobrou, comparativamente aos demais municípios de Minas Gerais, nos anos posteriores à tragédia. Além disso, o número de hospitalizações por abusos de substâncias psicoativas também apresentou tendência de crescimento em comparação aos números dos demais municípios. Os dados analisados foram extraídos do Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde do Brasil (DataSUS).

Priscila Porr, autora da pesquisa – Foto: Arquivo pessoal

A tragédia de Brumadinho aconteceu em janeiro de 2019 causando o vazamento de 12 milhões de m³ de rejeitos de minérios, uma avalanche de lama contendo substâncias tóxicas que matou 272 pessoas, incluindo três desaparecidas, além de destruir casas, uma aldeia indígena e contaminar solo e água dos rios da bacia Paraopeba. “O desastre de Brumadinho não foi um acontecimento pontual. A catástrofe teve consequências que seguem se desdobrando e gerando ininterrupto sofrimento às populações afetadas”, explica a pesquisadora Priscila Porr. O evento foi objeto da pesquisa de mestrado de Priscila, no trabalho Avaliação do impacto do rompimento da barragem de Brumadinho na saúde mental, que teve a orientação do professor Ariaster Baumgratz Chimeli, da área de economia ambiental da FEA.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental como um estado de bem-estar que permite às pessoas desenvolver suas habilidades pessoais para enfrentar desafios da vida e contribuir com a comunidade. Esse conceito abrange não apenas fatores individuais, mas também aspectos sociais, ambientais e econômicos. Para a professora Belinda Piltcher Haber Mandelbaum, psicanalista e docente do Instituto de Psicologia (IP) da USP, não se deve tratar a questão de Brumadinho como um problema meramente individual. Belinda fala em trauma social. “A tragédia resultou em sofrimentos psicossociais que impactaram tanto os indivíduos quanto a comunidade como um todo”, enfatiza.

Belinda Piltcher Haber Mandelbaum, psicanalista e docente do Instituto de Psicologia da USP – Foto: Arquivo pessoal

Segundo o estudo da USP, a prevalência de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) acomete em torno de 5% a 60% das pessoas quando elas experienciam desastres naturais como furacões, inundações, epidemias; e de 25% a 75% quando presenciam desastres derivados da ação humana, como catástrofes industriais que envolvem contaminantes, rompimento de barragens, desastres radioativos, dentre outros. Para a professora Belinda, estamos constantemente interagindo com a realidade que nos confronta com situações excessivas para nossa capacidade psíquica, o que pode nos levar ao adoecimento, manifestando-se em reações como ansiedade, medo e tristeza. “Freud dizia que cada perda que se vive, de alguma maneira, nos faz entrar em contato com todas as perdas que já tivemos”, reflete.

Metodologia

Para avaliação dos efeitos do desastre, Priscila utilizou o “método de controle sintético”, uma ferramenta que compara dados referentes a uma realidade impactada por um determinado fenômeno (no caso da pesquisa, o rompimento da barragem, que impactou no número de atendimentos feitos no Caps e no número de internações hospitalares por causas psicológicas), com dados prospectados, caso não tivesse ocorrido o rompimento da barragem. Os dados analisados foram extraídos do DataSUS e abrangeram dois períodos: antes do rompimento da barragem, de 2013 a 2018, para atendimentos no Caps, e de 2009 a 2018, para internações hospitalares; e após o rompimento, de 2019 a 2022, para ambas as classes de dados.

A pesquisa comparou o número de atendimentos e hospitalizações no município de Brumadinho (unidade tratada) com dados de outros municípios de Minas Gerais com características semelhantes, como porte populacional, Produto Interno Bruto (PIB), que recebiam Compensação Financeira pela Exploração Mineral (CFEM) e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM – grupos controle), utilizando a métrica de uma “razão por 100 mil habitantes”.

Atendimentos individuais

Priscila explica que o número de atendimento individuais do Caps de Brumadinho sempre foi maior do que em outros municípios do estado de Minas Gerais: cerca de duas a três vezes mais. No entanto, a partir de 2019, quando houve o rompimento da barragem, a diferença no número de atendimentos aumentou substancialmente, chegando a ser cinco vezes maior em Brumadinho do que em outros municípios, passando de um patamar de cerca de 10 mil para 30 mil atendimentos por 100 mil habitantes.

Evolução de atendimento individual em Brumadinho nos dois períodos – Gráfico: reprodução da tese

Em relação aos atendimentos psicoterapêuticos, na categoria “práticas corporais”, houve estabilidade nos dados no município de Brumadinho e queda no número de sessões em outros municípios de Minas Gerais. Segundo a pesquisadora, o cenário pode ser explicado devido ao isolamento social provocado pela pandemia de covid-19, o que levou as pessoas a permanecerem dentro de casa e terem menos contato físico.

Número de hospitalizações

Entre 2019 e 2022, o número de hospitalizações em Brumadinho foi analisado com base em três variáveis: hospitalizações devido ao uso de substâncias psicoativas; transtornos do humor; esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e delirantes.

A pesquisa revelou que as internações por uso de substâncias psicoativas tiveram um crescimento significativo, superando os índices de outros municípios. Em 2019, a “Brumadinho sintética” (dados estimados caso houvesse o desastre) registrou hospitalizações por causas psicológicas superiores às de “Brumadinho real”. No entanto, a partir de 2020, essa tendência se inverteu, com “Brumadinho real” apresentando números de hospitalizações por causas psicológicas três vezes maiores do que de  “Brumadinho sintética”.

A pesquisadora avalia que a tragédia de Brumadinho ainda está em curso, com a possibilidade de que os indicadores de saúde mental se deteriorem ainda mais com o tempo, sobretudo quando as indenizações temporárias aos habitantes tiverem cessado. A pesquisa de mestrado Avaliação do impacto do rompimento da barragem de Brumadinho na saúde mental foi defendida no mês de outubro e ficará disponível em breve na Agência de Bibliotecas e Coleções Digitais (ABCD) da USP.

Por: Ivanir Ferreira, Jornal da USP, 05/11/2024

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