20 set 2024

“O bom amor é aquele que começa quando a gente pretende falar a língua do outro” – iStock

“O que é o amor? Onde vai dar? Parece não ter fim…”, assim, com esta pergunta, começa a canção escrita por Danilo Caymmi, O Que é o Amor. Poetas, músicos, escritores, cineastas, psicólogos, psiquiatras, aliás, todos nós, já tentamos responder. Alguém conseguiu? Afinal, o que é o amor para um, pode não ser para o outro.

Quem agora responde esta pergunta é o prestigiado psicanalista Christian Dunker, 58 anos, professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP), no livro A Arte de Amar (Editora Record). A obra é uma versão compacta de um curso que o psicanalista apresentou na Casa do Saber, em 2019, sobre o tema, e que se tornou muito popular.

No livro, Dunker defende que o amor “é algo que acontece entre palavras, presumindo que a escuta é uma espécie de condição elementar para todo amor possível. Além disso, aproveita para discutir o que é essa escuta e como ela é uma espécie de prática, que se aprende, se cultiva e se desenvolve, como uma fase introdutória para exercitar a verdadeira arte de amar”.

A seguir, nesta entrevista exclusiva, Dunker comenta alguns trechos de sua obra mais recente, que cita desde grande intelectuais até figuras da cultura pop, como princesas da Disney. Confira:

Seu livro nasceu de um curso que lecionou na Casa do Saber. Acredita que as pessoas estão mais interessadas neste tema: o amor?

Sim, as pessoas estão cansadas de ódio, exaustas de medo e procurando o aspecto restaurador da experiência amorosa, tanto na vertente de solidariedade quanto de aproximação e proteção. O amor é um sentimento que está em alta, porque está escasso no mercado, portanto seu valor está aumentando.

O senhor frisa muito sobre o escutar em seu livro. As pessoas perderam essa capacidade?

Insisto bastante que o amor é uma experiência que se dá pela palavra. O amor acontece pela narrativa, na história, no discurso. Ele envolve um certo tipo de criação que só a palavra pode dar. Para que ele se complete, para que alcance e feche seu circuito, é preciso que a gente saiba escutar. Muitos se dedicam a estudar o amor enquanto afeto, mas ele é um afeto transitivo, amar e ser amado. O desejo do amante é de se tornar amado. E o desejo do amado é de se tornar amante. Esta reversão implica não só que as palavras sejam ditas, mas que sejam acolhidas, recebidas, incorporadas.

Pouco se fala de quão difícil é a arte de receber o amor, não só de dar. Dar implica a gratuidade que envolve o ato amoroso, conforme Lacan¹ já tinha dito, dar aquilo que não se tem. Dar a sua falta, dar o seu vazio, dar aquilo que é a sua ausência. Este gesto é, por si mesmo, um gesto crítico, em um mundo em que tudo tem de ter métricas, valores, comparações e equivalências, o ato de dar, é um ato transformador, que rompe com a regra do ordinário, com a regra das relações mais empobrecedoras.

– Por que diz que a heroína de nossa época é a personagem Elsa, da animação Frozen?

Elsa é uma personagem solitária, que está às voltas com a descoberta do amor e a contenção de seu próprio ódio, que passa por uma longa jornada de aprendizado sobre o que é a capacidade de se abrir para o outro, a capacidade de sair de si mesma. Ela é a personagem de nossa época porque esse é o drama da nossa época, a solidão, o deficit de intimidade, o deficit de comunalidade, e, ainda assim, há a fraternidade que ela tem em relação à irmã.

– Achei esta frase marcante: “O amor é um risco e um veneno em potencial”. Por favor, explique-a.

O amor é um risco porque ele envolve uma espécie de declinação da nossa soberania, a gente diz que um forte amor é um amor avassalador, o outro se torna nosso suserano em potencial. É claro que a gente pode se desvencilhar e se separar de formas mais rebaixadas de amor, mas, no fundo, é muito difícil a gente escapar de um risco dependencial que ele acaba trazendo consigo, seja o risco de se ocupar e se preocupar com o outro, de se pensar e investir no outro. E ele, além de um risco, é também um veneno porque foi se tornando um antídoto e panaceia para quase qualquer coisa.

Então, o rebaixamento de si, a falta de amor-próprio, a frustração porque alguém não te amou, as dificuldades e os transtornos mentais são porque em algum momento o amar ou ser amado não funcionou. Temos uma dificuldade? Coloca mais amor, é um pouco assim, um remédio homeopático que você usa para qualquer coisa e que nem sempre é o que está curando, às vezes é o veneno mesmo. É o excesso de amor, excesso de confiança na potência do amor… Aquele amor onipotente, que salva tudo e transforma tudo, é também o que nos aliena em relações das quais não conseguimos nos separar. É também aquele que rebaixa amantes e amados ao desespero da solidão a dois.

– Vivemos com medo de nos arriscar emocionalmente?

Sim, o risco envolvido no amor, é hoje, um grande vilão. E ele tem uma certa razão de ser, pois quando a gente se decepciona, é desamado, sequelado por experiências amorosas que terminam mal, é um luto, uma perda que demora, muitas vezes, para que a gente consiga se recompor dela. Portanto, em tempos de cálculos de riscos, em tempos em que o amor é visto como um investimento, arriscar-se se torna cada vez mais complexo. A gente quer garantias, quer tateamentos que sejam, ao mesmo tempo rápidos, para a gente não se envolver e perder tempo com alguém, mas também não quer se entregar assim, em um ato de abertura das portas dos nossos corações para qualquer um.

No fundo, é a ideia de ter benefícios sem riscos: café sem cafeína, chocolate sem gordura, paixão sem comprometimento. Isso seria o ideal. Só que o ideal acaba sendo muito pobre, acaba sendo um conjunto de armadilhas de autoengano porque o amor vem necessariamente com uma certa dose de risco, e nós estamos muito covardes.

Subjetivamente, cada vez mais covardes em função dessa cultura de prevenção ao risco generalizada. Infelizmente, ou felizmente, ainda não inventaram um seguro contra decepções amorosas. Acho que ele daria muito prejuízo.

– Outro trecho do livro que me chamou a atenção: “A maneira neoliberal de produzir e consumir, entre outros, trouxe uma ‘nova economia moral dos afetos’”. Por quê?

Tendo a achar que o amor é uma experiência que se aprende, nas histórias, nas cantigas, nos contos de fadas, nos filmes, nos livros. Sem história, o amor é simplesmente sem paixões ou ilações desejantes fragmentadas no tempo. Agora, o neoliberalismo² descobriu uma forma de empacotar nossos afetos em geral, e de moralizá-los de tal maneira que a gente possa, digamos, administrá-los como um síndico administra um condomínio. E isso empobrece o amor, faz com que a gente espere do amor aquilo que ele não pode dar, e isso sobrecarrega nossas relações com aquele que é o maior dos venenos afetivos, que é a obrigação de amar. Isso sempre termina em ódio, violência ou agressividade.

E essa nova economia moral dos afetos está baseada em certos esquemas para que… ame, mas ame na justa medida; ame, mas ame sem atrapalhar os negócios; ame, mas não pare de trabalhar para amar; ame, mas faça de seu amor algo produtivo, uma coisa transformadora, uma coisa que tenha um efeito antidepressivo; ame, mas encontre uma função para o amor. E o amor, a graça dele, é que ele é meio sem função. Ele é um ato de gratidute, portanto corrompe a regra fundamental das trocas.

– Continuando neste tema, as pessoas estão buscando um amor romântico, principalmente aquele “vendido” por Hollywood e que não existe na vida real?

É difícil a gente dizer o que há de real no amor. Há uma parte do amor que é composta pelo saber, pela curiosidade, pela investigação de quem é esse outro, quais são suas máscaras, onde ele se engana, onde ele me engana. Por outro lado, quando a gente se engaja em uma relação amorosa, a gente quer saber qual é a verdade daquilo. Muitas vezes, esta investigação é o que há de mais real no amor.

Agora, quando a gente diz que o amor é uma epopeia que termina bem, que vai curar todos os males. Isso, em grande medida, é falta de literatura, falta de bons filmes de Hollywood. Vamos falar de Hollywood: como termina Casablanca? Termina mal. Gilda? Mal. Sunset Boulevard (aqui no Brasil, Crepúsculo dos Deuses), mal. Mais recentemente, Titanic, termina mal.

Os grandes amores… olhe como terminam? Em desastres, tragédias, terminam dessa maneira que acaba nos ensinando muito mais sobre relações de classes, relações de gênero, sobre nossa capacidade de fantasiar e de domesticar nossas expectativas do que propriamente sobre a vida real, sobre o estado amoroso. Porque a vida real sob o estado amoroso é uma vida de degradação, vai partindo de pontos de saída para formas em que o amor vai se extinguindo. Não há nada que garata que ele continue o mesmo. Ele se transforma e nos transforma, mas precisa de renovações periódicas.

– “Os algoritmos perceberam rapidamente como o ódio engaja mais e se alastra mais rápido que o amor” – outro trecho interessante. Acredita que as pessoas estão querendo aparecer a qualquer custo?

Sim, os algoritmos perceberam que o ódio engaja mais, monetiza mais e representa uma intensificação vertical dos nossos afetos. Eles submetem outros afetos ao ódio. Odeio para proteger aqueles que realmente amo, me transformo em um leão, em um soldado para que, em nome do amor… ou seja, em nome do amor é muito fácil odiar. Por outro lado, a gente tem formas muito empobrecidas de amor. O amor pelo gatinho. O amor na floresta com aquela foto instagramável, o amor como poesia de baixa voltagem.

No fundo, é o que tem tornado a experiência amorosa fonte de muita vergonha, de um certo silenciamento, de decepções que fazem com que as pessoas odeiem, se desliguem dos malditos aplicativos que não entregam o amor que eu estou esperando. Quem sabe eu encontre isso num Rappi ou em um Disque-Pizza. E esperar uma frugalidade, uma simplicidade do amor que é ultrajante diante da experiência histórica de complexidade, trabalho e decifração. Cada qual ama de um jeito. E cada qual supõe que será amado pela mesma forma como ama. Ledo engano. Por isso, preciso amar o saber, amar a verdade que estaria por trás do saber.

– As pessoas confundem paixão com amor?

As pessoas confundem paixão com amor, mas elas se autoenganam para que isso aconteça. Na verdade, a gente tem uma visão bastante razoável de que a paixão está no começo de um grande amor. Paixão é este estado de turvação, de abandono de si, em que vemos coisas neste outro, que a gente sabe, em certa medida, que não estão lá. O que você prefere? Essa cegueira da paixão em que está criando aquele homem, aquela mulher, aquela grande pessoa que você mesmo criou com o seu contramolde? Ou a experiência mais cotidiana, ordinária, pequena, mas real que envolve, no fundo, a segunda grande pergunta sobre o amor que é a vida comum?

Agora que eu te amo, e você me ama, o que vamos fazer? Vamos viajar, conquistar o mundo, comprar coisas, descobrir… Para que vai ser a finalidade desse amor? Muitos não conseguem entrar nessa pergunta e ficam em uma espécie de gagueira: eu te amo, não, você me ama mesmo? Mas eu preciso de mais tempo, você precisa de mais tempo… E no fundo é a negação daquilo que a gente sabe, paixão é paixão, e amor é amor. E que são tempos diferentes. E querer viver em estado de paixão é uma opção. Você pode querer. Está o Cazuza aí como uma vida exemplar neste sentido. Você risca o fósforo e queima até o fim. Pode ser uma opção para alguns. É uma opção de grande coragem e, em geral, de fim trágico.

– “A geração Z, familiarizada com as redes sociais, é a faixa etária que mais experimenta a sensação de solidão. E a Alfa (2010) encarará dias piores”. A solidão vai aumentar, na sua opinião?

A geração Z teme muito as afecções de saúde mental. Por isso, se esquiva frequentemente. Vai se afastar de zonas de perigo, zonas que saem fora do conforto, e talvez ela crie um sobressalto para a geração subsequente, Alfa, que está vindo aí, para que esteja mais advertida dos perigos e das sequelas que o uso incauto de redes sociais, o uso incauto da aceleração e intensificação de afetos deem uma certa confiança de que, na história da humanidade, as tecnologias sempre tiveram, na primeira geração, efeitos assim devastadores, mas que na segunda e na terceira, a gente vai aprendendo.

Vão surgindo marcos regulatórios informais e jurídicos, mas a gente vai se ensinando e se cuidando quando pensa nessas novas formas de amar que vêm junto de novas linguagens. Mexeu na forma de trabalhar, mexeu na forma de usar a linguagem, vai ter um novo amor em curso. É assim que vemos ao longo da história.

– “Aplicativos e a possibilidade de excesso de escolhas torna-se um problema, uma tarefa que pressiona a solidão”– mais um trecho interessante. Acha que está ocorrendo uma “fadiga” dos apps de encontros? 

Sim, a ideia de que você, impunemente, vai começar cinco ou seis conversas, sair com três pessoas e isso aí tudo bem, porque a fila anda, e a gente vai orquestrando… É ter pouco apreço pela máquina, como diria o espantalho de O Mágico de Oz, é bater a lata do coração e aí você fica fadigado, sequelado e amaldiçoa os aplicativos. Mas no fundo é a falta de uma certa prática que é o cuidar de si. Muito importante cuidar de si, e isso não quer dizer faça esporte e academia e se alimente bem. É preciso pensar nos alimentos da alma, a auto-observação, os seus sonhos, ver as coisas de perto e de longe. O que é pensar uma biografia, como você está na arte sobre do diálogo sobre si, uma série de condições que favorecem o amor.

Não, a gente dilapida tudo isso e espera que o amor vai acontecer sem trabalho algum. Este é um dos mitos falseados por uma certa versão incorreta do romantismo de que o amor acontece entre estatuas. As pessoas estão ali paradas em seus jardins epicureus, vem um anjo, desce uma flecha e tudo acontece sem que eu tenha que fazer nada! Amor preguiçoso é o que melhor poderia caracterizar a promessa que colocamos nos aplicativos. Deixe ele em paz e aprenda a usar direito. E, antes de tudo, aprenda a cuidar de si para depois não se esfolar vivo em experiências amorosas incautas.

– Por favor, para terminar, explique esta frase do livro: “Um pouco da crise amorosa que vivemos, deriva de nosso excessivo etnocentrismo³”.

Um pouco da nossa crise amorosa, e também da nossa crise de saúde mental, deriva do nosso excessivo etnocentrismo. E o que é o etnocentrismo, essa espécie de armadilha antropológica da qual é difícil sair? É de olhar para nossa cultura, para nossa forma de vida, para nossa família e imaginar que isso é o padrão, a medida ouro das formas de amar. E pensar assim: “Para mim, amar é dar presentes, então, vai ser o mesmo para ele. Se para mim, amar é fazer bonitos discursos amorosos, isso vai ser assim para ela. Se para mim, amar é se comprometer, fazer pagamentos juntos e assumir compromissos juntos…” Esse é um erro etnocêntrico, imagine que cada um aprendeu a amar conforme suas próprias circunstâncias; e o outros? Há outras circunstâncias.

Entrar em um coração alheio é como entrar em outra comunidade. É uma viagem ao mundo dos indígenas, é um lugar que você tem de olhar para aquilo e se perguntar por que as coisas estão desse jeito e não com essa nossa atitude colonizadora de chegar na vida do outro e dizer mude isso, vá para lá e me aceite como eu sou e você se transforma.

Não! O bom amor é aquele que começa quando a gente pretende falar a língua do outro. Para isso precisa escutá-lo, para isso precisa sair do nosso próprio etnocentrismo.

E, no fundo, é isso que a gente espera do amor, que ele tire a gente de nós mesmos, que nos transforme nos fazendo falar uma língua outra, uma língua nova, nos fazendo entender valores, pessoas que não seriam aquelas que a gente teria escolhido. Quando você escolhe alguém para amar, vem tudo junto: periquito, passarinho, gato, amigos, ex-amigos e inimigos. É como entrar em outro universo humano. Respeitar isso para fazer um amor menos etnocêntrico, para não dizer um amor menos narcísico.

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O psicanalista e professor Christian Dunker – Foto: Divulgação

Christian Dunker, nascido em 1966, é psicanalista e professor titular em Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório Interunidades de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP). Com pós-doutorado pela Manchester Metropolitan University e analista membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano, foi articulista da Boitempo e, atualmente, escreve para o Blog do UOL. Autor de mais de cem artigos científicos e professor convidado em mais de 15 países, tem 14 livros publicados, com edições em inglês, francês e espanhol, entre eles: Estrutura e constituição da clínica psicanalítica, Mal-estar, sofrimento e sintoma, Reinvenção da intimidade, O palhaço e o psicanalista, Paixão da ignorância, Uma biografia da depressão e Lacan e a democracia. Foi duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti.

Por: Cármen Guaresemin, JB, 18/9/2024

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