No pós-eleições há a oportunidade de se olhar no espelho, resolver seus traumas e melhorar
Por Eduardo Graça — São Paulo
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Como psicanalistas analisam o Brasil após as eleições. Foto: André Mello/Editoria de Arte
‘O país é uma criança com os pais se separando’
Christian Dunker, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP
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O paciente chega tal qual uma criança, desorientada após a separação litigiosa dos pais, com dois discursos opostos e convocada a tomar partido quando deseja os pais unidos pois, crê, todos ganharão com isso. Ela, no entanto, desconhece as razões mais profundas do conflito.
É central perceber onde o Brasil errou. Mas a retomada só será possível após se superar a convicção delirante de que quem errou foi o outro, posição egoica que aparece quando a raiva domina.
Uma tarefa clínica importante é deixar claro que a situação mudou, a briga acabou e o inimigo não organiza mais quem você é. Precisa-se passar por um período de luto, aceitar que a casa caiu para os dois lados — quem perdeu a eleição embora convicto de que iria ganhar, mas também os que viram metade do paciente optar por algo genocida, golpista, autossabotador.
Esta dupla derrota pode levar o paciente a não evocar mais culpas e sim reconstruir experiências. É complicado, frequentemente se recusa tamanho trabalho, mas aí entra-se em melancolia, depressão.
O luto recusado traz respostas violentas. O conflito evolui a tal ponto que nos sentimos impotentes, entramos em estado demissionário. Vivemos um momento pós-traumático de neurose de guerra discursiva, sanitária, política. E o paciente pode chegar desconfiado, angustiado e com dificuldade para se envolver novamente justamente quando mais precisa de novos projetos.
O Brasil tem que aprender a desejar de novo, a mirar novos horizontes, a não apenas fugir do desprazer mas ser capaz de amar novamente. Não vai ser fácil, mas só assim conseguiremos crescer.
‘O amor é a chave para superar nossas diferenças’
Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise
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A psicanálise é ferramenta para se livrar do autoritário e do prazer de julgar o outro. O Brasil tem muito a ganhar no divã, onde as relações são mais horizontais e o desejo melhor colocado.
Na análise, o paciente se vê no espelho, inclusive seus temores, que, ao serem enfrentados, libertam. Observo no Brasil um quadro de psicose, com um lado delirante e outro satisfeito em relação a um mesmo evento, as eleições. Em um desses lados, constata-se fenômeno muito conhecido, no qual se deposita tudo em um “mito”, um poder, um saber, uma onisciência sobrenatural que oferece um sentimento de irmandade, de pertencimento. Mas, quando esse mito cai, abre-se um vácuo, reza-se na frente de quartel em busca de um novo salvador.
A fantasia do rei revela alienação sobre figuras de autoridade e o próprio caráter autoritário do paciente. Este é um caso bem trabalhoso, mas não impossível de se tratar. Ele precisa fazer o luto, reconhecer a perda. E depois entender o que de fato perdeu: a fantasia da salvação da vida, do preenchimento de algum vazio, do amor que nunca teve, da falta de paixão em sua vida ordinária?
A manipulação da carga afetiva do paciente é enorme quando o objeto de adoração de uma de suas partes perde seu lugar. Em momento de vácuo, em que até a família do “mito” se mostra desagregada, é fundamental a responsabilização dos atos e não se passar uma borracha.
‘É hora de parar de jogar os traumas embaixo do tapete’
Teresa Palazzo Nazar, médica psicanalista da Escola Lacaniana do RJ
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No consultório, o paciente precisa ter disponibilidade à escuta, deixar o inconsciente falar. E o analista não faz julgamento de valor sobre o que é verbalizado, muitas vezes pela via da lembrança.
Diz-se que o Brasil é um país sem memória, mas o exato é que o paciente tem cultivado uma memória do esquecimento. No tratamento, precisamos obter de sua história algo que se atualize no aqui e agora da relação transferencial. No Brasil, essa memória vem sendo sistematicamente apagada, produziu-se esquecimentos.
O paciente não pode mais jogar as tragédias para debaixo do tapete. Precisa encarar seus traumas, o genocídio dos indígenas, o holocausto dos negros. Precisa enfrentar seu “complexo de mazombo”, deixar de ter vergonha de sua origem, superar o recalque.
O Brasil é um paciente dividido. Mas está partido há tempos, o que se vê agora são sintomas. Não podemos enxergar em metade da população milhões de racistas e misóginos. Nem tirar conclusões precipitadas, mas ouvi-lo, escutá-lo por inteiro.
É preciso tratar o equívoco da idealização do “mito” bolsonarista, mas também a desilusão com a idealização petista. De um lado há uma loucura, na recusa de se aceitar o real, na sugestão de que não se passará a faixa presidencial. De outro, uma condução perversa, que relativiza o corromper da essência idealizada.
Escutei no consultório pessoas desesperadas pelo medo do outro lado ganhar, os fantasmas apareceram. Tudo isso gera ódio. Não cabe a nós, analistas, apontar dedos, mas ajudar o paciente a superar essa dicotomia pobre e viver oposições, projetos diversos, mas que se encontrem ao visar o bem comum.
‘Ter que ser (só) isso ou aquilo é empobrecedor’
Urania Tourinho-Peres, psicanalista doutora pela UFBA, membro da Academia de Letras da Bahia
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O divã acolhe a singularidade, não o coletivo. Mas nosso paciente é formado pela diversidade. O Brasil é plural e a pluralidade acolhe mal movimentos restritivos. O brasileiro, especialmente o nordestino, é criativo — e o artista necessita de liberdade.
A divisão que se abateu no Brasil a partir do processo eleitoral acolhe um conflito: ser isso ou aquilo. O processo eleitoral se iniciou com vários candidatos e aos poucos foi se reduzindo, chegando a quatro centrais, dois da “terceira via” e, finalmente, os dois que foram ao segundo turno.
Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - sala 26
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