21 ago 2020

A escalada da retórica das armas, da guerra e, mais recentemente, no contexto da pandemia, a narrativa da banalização das vidas perdidas associada à lentidão em implementar medidas de assistência aos mais vulneráveis, é a expressão tácita do questionamento de valores que seriam de pretensão universal – como a razão, a justiça e a vida.

Tomada como modo de governar, a chamada necropolítica, diferentemente da aplicação do princípio de preservação da vida, adota a prática de deixar morrer e de negar o processo de extermínio, adoecimento ou desproteção que leva à morte.

A avaliação é do psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), e autor de obras premiadas como Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Annablume, 2011).

Ele lançou este ano o livro A arte da quarentena para principiantes (Boitempo) e participou, em 4 de agosto, do webinário Conversas sobre perguntas, organizado por Casa Fiat, CCBB, Memorial Minas Gerais Vale e MM Gerdau, com a palestra Os novos desafios do eu – Psicanálise e vida pós-pandemia, que foi transmitida pelo canal Memorial Minas Gerais Vale, do Youtube. A seguir, uma entrevista com o psicanalista e escritor:

Assistimos nesta pandemia a segmentos da sociedade que embarcaram num processo de relativizar a gravidade da doença. Como a psicanálise explica o negacionismo?

Poucas pessoas se dão conta de que a expressão negacionismo vem da psicanálise. Freud tem texto clássico chamado A negação, em que escreve a nossa atitude diante de realidades que são mais dolorosas ou complexas do que conseguimos aguentar. Essa é uma atitude muito básica, muito simples, é o começo de muitas outras formas de negação e foi descrita ali no início da psicanálise.

Vamos notar que cada país entrou na pandemia a partir de seu próprio processo cultural. A chegada do novo coronavírus pegou o Brasil em meio a dois processos particulares: a divisão social discursiva e a pauperização da vida econômica e dos direitos trabalhistas. A retórica de campanha eleitoral, tornada depois método de governo, baseada na produção contínua de inimigos imaginários, foi impactada pela chegada de um inimigo real, biológico e natural.

A produção de inimigos justifica ações intempestivas, ações que acumulam poder naquele que está governando o país e naqueles que o cercam. Então qual é a regra aqui? Desautorizar as autoridades constituídas, para dizer: ‘Olha, aqueles que cuidam da palavra, da razão, aqueles que cuidam do debate, estão todos comprometidos e interessados’.

Essa ideia é necessária para que se destituam os poderes impessoais representados em instituições como as universidades, a imprensa, os cientistas. Pois no momento em que o interlocutor põe em dúvida – não precisa depô-las, basta dizer que são controversas –, amealha para si uma dúvida razoável, que a partir de então vai deslocar aquela fé, aquela crença que as pessoas tinham naquela instituição, para aquela autoridade pessoal de quem está confrontando, denunciando, criticando a autoridade simbólica constituída. Isso é um método de discurso.

A pandemia não é inimigo político, não é um inimigo intencional, é um fato que vem da natureza, vem desse lugar terceiro, algo que nos une. Mas num governo que adota esse método, não se pode admitir que exista esse terceiro, algo que nos une, porque esse terceiro destrói a retórica da produção contínua de inimigos. Nada mais óbvio que isso gerasse a resposta descrita por Freud como a negação. E por que o negacionismo é importante como método deste governo? Para criar os processos de transferência de autoridade simbólica das instituições para a autoridade pessoal de quem desafia.

Em sua avaliação, qual é o impacto social desta conduta no enfrentamento da COVID-19?

O negacionismo representou um prejuízo dramático para o enfrentamento da COVID-19, custou a vida de milhares de brasileiros, nos colocou no segundo lugar do número de mortes no mundo e certamente está fazendo o Brasil ser representado por uma piada internacional. Porque nessa hora, para que todos fizessem o sacrifício, temos de recorrer às figuras de autoridade, que vão dizer, vai ser muito difícil, mas faço em nome de alguém.

E nessa hora encontramos uma divisão na política sanitária, marcada por uma hesitação e pela negação do consenso científico. Vai ser um preço que ainda não temos a justa medida, porque no momento em que a batalha está sendo travada não se percebe o impacto capilar de alguém que está confrontando a ciência como o principal instrumento que temos para lidar com um adversário que vem da natureza.

Como a psicanálise vê o discurso e práticas que deslocam a centralidade da vida, – um valor universal, civilizatório – estimulando as condutas que aumentam as chances de mais pessoas morrerem?

Temos em ascensão no país uma retórica das armas, da guerra, da violência, que de fato está dizendo para a gente que a vida não é o princípio mais importante, mas que poderíamos imaginar um todo social, muito melhor, se eliminássemos algumas formas de vida. Por exemplo, os indígenas, os negros, aqueles que não são produtivos, por exemplo, os corruptos. Esse é um discurso, e que foi ganhando e amealhando forças amparando-se nas fragilidades e dificuldades que temos em expandir a democracia brasileira.

Onde isso terminou? Numa democracia customizada, uma democracia para quem pode pagar, uma democracia de condomínio. Sou simpático à sua colocação de que já teríamos alguns valores, que seriam de pretensão universal, como a razão, como a justiça, como a vida. Ocorre que essa ideia começa a sofrer críticas, começa a sofrer certa desconfiança de que seja uma falsa promessa. Porque haveria formas de realização dessa ideia – que coloca a vida como um valor indiscutível – que excluem formas de vida específicas.

É o que podemos chamar de necropolítica. Não se trata da aplicação do princípio de preservação da vida – como o faz a biopolítica -, mas da prática de deixar morrer e de negar o processo de extermínio, o adoecimento ou a desproteção que leva à morte. Enquanto a biopolítica nos oferece verdadeiros monumentos para o controle das populações – como a escola, os hospitais –, a necropolítica se caracteriza pelo adiamento e pela manutenção de situações de miséria e de desproteção.

É isso o que explica a lentidão na tomada de medidas protetivas e o pouco caso com a vida das pessoas praticados pelo presidente. A necropolítica, então, já estava presente na desatenção que dávamos para uma série de vidas que eram praticamente matáveis. Então temos com o coronavírus um fato, que começa a ficar mais pronunciado: parece que tem vidas que valem mais do que outras vidas.

Que tipo de moralidade emerge de um governo que ao se omitir, tem por consequência maior probabilidade de mortes em determinados grupos sociais?

É claro que este não é um discurso que vai ser explícito. Mas é uma democracia que tem no nível tácito de seu discurso a ideia de que se a gente tirar algumas pessoas, vai ficar melhor para quem sobreviver. É uma moral da sobrevivência. Uma moral do Big Brother, uma moral da eliminação de concorrentes e de inimigos. Isso infelizmente chegou ao poder, graças a uma injunção, uma constelação de discursos, que no fundo apelaram para algo do tipo assim: se você pode ser feminista, então eu posso ser machista; se você pode defender a inclusão da população negra, eu quero defender a supremacia branca; se você pode ser racionalista e acreditar na ciência, então eu posso acreditar no neopetencostalismo de resultados.

A inversão de princípios universais na defesa de interesses particulares. E na hora que a gente consagrou uma conversa pública com essa dimensão, a gente abriu as portas para o negacionismo científico, abriu as portas para o negacionismo moral.

Embora a educação formal seja, em princípio, um elemento central para combater o negacionismo, há também pessoas adultas e de alta escolaridade que adotam alguns raciocínios simplificadores para o enfrentamento da COVID-19. O negacionismo se vincula a algum tipo de regressão intelectual?

Quando apresentei a ideia de negação, disse que ela ocorre por algo doloroso ou algo que supera a nossa capacidade de simbolização por ser excessivamente complexo. Vamos encontrar a ideia de anomia em Émile Durkheim, da impossibilidade de reconhecer uma sociedade que se torna mais complicada do que os nossos dispositivos de interpretação.

O que ela desencadeia? A regressão, as formas de pensamento regressivas. Voltamos da instituição que representa a razão no seu sentido impessoal para as instituições que representam a razão no sentido pessoal: voltamos para a família. Como a ideia de que a Terra é plana, entre várias outras, se infiltram aí? Ao questionar verdades muito sólidas, muito consensuais, você mostraria que a ciência não está dando as respostas que gostaria para todas as perguntas que você tem.

E ao acentuar isso, acentua o desamparo das pessoas. Você diz assim para elas: “Olha, essa complexidade não vai ser explicada no campo da ciência”. Então, quem vai explicar isso? As narrativas mais simples, na religião. Ao conseguir dividir a autoridade simbólica, se produz efeitos de reempoderamento da autoridade particular. Hoje, temos um nível de complexidade na conversa que foi trazido por vários fatores, entre eles, o acesso pela primeira vez a um conjunto grande de pessoas à linguagem digital, que pode participar de uma conversa e opinar publicamente segundo motivos e razões em relação aos quais nunca foram indagados e não foi educado para isso.

Essa busca pelo simples, pelo familiar, como atalho cognitivo, vem sendo explorada por políticos?

Há uma expressiva quantidade de pessoas que estão diante de um mundo muito complexo e são incitadas a formas de pensamento muito simplificadas. Qual é a forma mais simples do ponto de vista da psicanálise para operar com grupos? É aquilo que o autor chamado Wilfred Bion chamou de defesa esquizoparanóide. Diz respeito a dividir e introduzir um inimigo. Dividir, de tal forma a reencontrar segurança e a identidade, desde que seja criado um inimigo que nos une.

Desde que se crie uma diferença, cuja estrutura é a esquize: a ruptura, a divisão sem reconciliação, é a quebra. Isso não é um fenômeno só brasileiro. Mas que grassa, prospera, pela conjunção entre uma crise do modo neoliberal de produção, com consequente aumento de desemprego, simultâneo ao aumento de perspectiva de ascensão social, com a entrada das massas digitais.

Há um novo discurso sobre o sofrimento psíquico, que não é mais referido ao conflito, mas referido à mudança de intensificação das coisas, tratadas por meio de ideais hiperinflacionados como encontramos em torno do discurso sobre a felicidade. Então, esses três elementos concorrem para a produção dessa bomba relógio de regressão política e cognitiva.

Olhando para o Brasil hoje, que tipo de sociedade se projeta, em sua opinião, para daqui a cinco anos?

Acho que uma coisa interessante que a experiência de COVID-19 junto com política vai deixar para a gente é que acabou a cultura da culpa. Discutir de forma simplificada: a culpa é do PT, a culpa é do Olavo de Carvalho, obviamente é um discurso passadiço que não dá mais conta para o tamanho do problema que é a nossa realidade.

Isso está ficando muito claro para as jovens gerações, que são, no fundo, aquelas que fazem a diferença. Esse é o ponto de virada, esses que experimentaram na carne essa grande enganação. “Como me deixei cair numa conversa tão simples?” Essas perguntas são formativas.

A experiência está aí, foi desilusiva, e acho um grande potencial transformativo que estamos gerando a partir da miséria. Não foi pelo amor, mas lamentavelmente vai ser pela dor.

 

Por Bertha Maakaroun

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