Analítica da subjetividade: configuração de um si


Resenha bibliográfica: Marlene Guirado – A análise institucional do discurso

como analítica da subjetividade

Felipe Martins Afonso1

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo


Talvez a melhor maneira de iniciar seja mesmo pelo título da obra: A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade. Nele, a palavra como tem função de comparar dois termos, ou melhor, especificar um sentido para essa “Análise institucional do discurso”, ela pode ser uma “analítica da subjetividade”. Análises à parte, partamos a algumas definições, afinal, o que se entende por Análise Institucional do Discurso? Ou ainda, o que se entende por Analítica da Subjetividade? Que subjetividade é essa? Será a cara e conhecida pelos psicólogos, uma subjetividade de interiores? (E não à toa que tomamos essas, ao invés de outras, perguntas; elas perpassam todo esse livro de Guirado).

A análise institucional do discurso é, sobretudo, um método de análise. Não configura uma teoria, muito embora se sustente em determinados conceitos, principalmente o de discurso e o de instituição. E aqui, por necessidade conceitual e metodológica, a autora sublinha a tradição de pensamento que tinge com suas cores e seus matizes esses conceitos. São oriundos, indiretamente, das ideias de Michel Foucault, e, diretamente, de Dominique Maingueneau e de José Augusto Guilhon de Albuquerque, respectivamente. Iniciemos por esse último.

É curioso que, ao longo desse livro de Guirado (2010), encontremos inúmeros relatos, às vezes mais às vezes menos, pessoais de cenas e acontecimentos concretos (para utilizarmos o adjetivo caro à autora). O capítulo que abre esse livro (essa tese de livre-docência) se intitula O Discurso Livre-docente – Contexto, Acaso, História (2010, p. 27-36); ele é como um prelúdio, um exemplo, um resumo, em ato daquilo que teórica e concretamente é exposto nas partes seguintes do livro. Guirado (2010), utilizando a primeira pessoa do singular e sem deixar de marcar a estranheza desse ato, diz:

Optei por fazer passar as elaborações teóricas pelo fio da experiência concreta na produção do conhecimento. Às vezes, me deixava invadir pela sensação de inadequação aos cânones dos procedimentos acadêmicos e científicos por conta dessa opção. Às vezes, me convencia de que seria a forma mais simples e acertada de dizer o que, de outra forma poderia se tornar um estudo correto, corretamente apresentado, sem mais. As aulas, tanto na graduação quanto na pós-graduação, me ensinaram que tem que se ter humildade para explicar as coisas difíceis que se sabe ou se julga saber. Nesses ambientes acadêmicos, o discurso da experiência concreta (a de pensar, que seja!) corre o risco de ser desvalorizado: ele não é citatório e não pode ser ‘excitatório’ (nem para o enunciador, nem para o co-enunciador). A pesar de tudo, ou por tudo, arrisquei mais uma vez: escrever com sujeito da ação de pensar em voz alta, com outros, numa relação que se fazia viva no ato mesmo de conhecer ( p.28)

Duas coisas, pelo menos, podem ser ditas, uma delas é a maneira como Guirado, enquanto escreve, se coloca abertamente em duas posições: a de quem, enfim, escreve uma tese de livre-docência, e por isso argumenta, defende, esclarece, e a de quem ao escrever uma tese também escreve sobre a tese. Fato esse que, ao término da leitura do livro, podemos dizer não aleatório, pois, no limite, o esforço de (e do) pensamento da autora e toda sua propositura de uma maneira de fazer psicologia vetoram politicamente sua obra, afinal: o que se faz enquanto se faz e se diz fazer psicologia? Assim, sem perceber, escorregamos para o outro ponto (a outra coisa a ser dita), é que podemos perceber, já nesse trecho, as consequência de pensar, como faz e propõe a autora, com determinado conceito de instituição. Segundo ela, apoiada em Albuquerque, entende-se instituição como o “conjunto de relações sociais que se repetem e, nessa repetição, legitimam-se” (Albuquerque, citado por Guirado, 2010, p.45). Legitimação que acontece em ato, por meio dos efeitos de reconhecimento dessas próprias relações como naturais e por meio do desconhecimento de sua relatividade histórica e contextual (Guirado, 2010). A sensação de inadequação de Guirado, esse apesar de tudo e por tudo do final marcam justamente o descompasso que às vezes surge (ou é provocado) nos procedimentos já tão calejados (reconhecidos e desconhecidos) de certas práticas, no caso da autora, a docência, as pesquisas, os escritos, etc., enfim, nesse fazer de psicóloga-professora-pesquisadora.

E, como quem puxa a linha solta de um tecido até a roupa voltar para o carretel, Guirado toma esse conceito de instituição e a partir dele desfia outros, que vão sendo apresentados e paulatinamente trabalhados ao longo do texto, para que, ao final, a peça seja (re)construída.

É assim que se faz seguir à instituição o discurso. A declarada filiação a Dominique Maingueneau, filósofo e linguista, aproxima a autora de uma linha de pensamento (ou um ramo de conhecimento) que, em linguística, se denomina Pragmática. Como o próprio Maingueneau caracteriza o (seu) ser linguista (ser como verbo) e, de quebra, uma certa pragmática: “Nesta obra de M. Guirado, porém, não é o lingüista do sistema da língua que está implicado: é o lingüista do discurso, da ação que se exerce através da língua em situações definidas institucionalmente” (Grifo do autor, Maingueneau in Guirado, 2010, p.17, sic). Nesse trecho, e ao longo de toda a obra de Guirado, o que se encontra é um discurso definido como ato, instituição, dispositivo, “que define para um determinado momento histórico e para uma região geográfica, as regras da enunciação. Nele e por ele, como dissemos acima, o jogo de forças poder/resistência se exerce e a produção de um saber ou verdade se faz concreta”, como diz Guirado (2010, p.46) baseada em Foucault (1990;1997).

Escorregamos, mais uma vez, desavisadamente para Michel Foucault; vínhamos falando de instituição com Albuquerque, de discurso com Maingueneau e, de repente, uma citação que tem suas bases em Foucault. E isso por que é, sobretudo, por e a partir de Foucault que a Análise Institucional do Discurso (lembrando, no entanto, que, antes, a Pragmática) ganha seu peso e seus traços característicos. Os três termos desse nome são caros e frequentes na obra desse autor (análise, instituição, discurso), só para ficarmos com os aspectos mais imediatos dessa filiação, mesmo por que, deve-se marcar, são trabalhos que guardam suas especificidades. Guirado, como não poderia deixar de ser, dedica um capítulo ao comentário e à apresentação interessados do trabalho e de parte da vida desse autor.

Contudo, mais do que uma apresentação pontual de Foucault, o livro de Guirado é impregnado desse autor, ainda que nem sempre se fale ou o cite. Mais exatamente, Foucault comparece como estratégia de pensamento, mais do que como conteúdo do pensamento(Guirado, 2010). Segundo a autora, é como se Michel Foucault, no capítulo método de A história da sexualidade-vol.1 (1990, p. 88-97), houvesse organizado um método de análise sobre e a partir de determinado conceito de poder, ou melhor, de relações de poder. Foucault inicia esse texto da seguinte maneira: “Portanto: analisar a formação de um certo tipo de saber sobre o sexo, não em termos de repressão ou de lei, mas em termos de poder” (Foucault, 1990, p.88). Assim iniciado o capítulo, Foucault parte à definição de poder. Grosso modo, o que esse autor propõe é que poder seja entendido como ação, como exercício, como relação entre pares. Não se pensaria algo como “O poder”, soberano e em si, mas o poder como algo que se exerce, ou melhor, como exercício, para retomarmos uma fórmula foucaultiana: é a ação de um sobre a ação do outro (Foucault, 1995). No texto Sujeito e Poder de Foucault (1995), mais algumas considerações:

Se provisoriamente atribuo um certo privilégio à questão do ‘como’ [se exerce o poder] não é que eu deseje eliminar a questão do quê e do porquê. É para colocá-las de outro modo; ou melhor: para saber se é legítimo imaginar um ‘poder’ que reúne um quê, um porquê, e um como. Grosso modo, eu diria que começar a análise pelo ‘como’ é introduzir a suspeita de que o ‘poder’ não existe; é perguntar-se, em todo caso, a que conteúdos significativos podemos visar quando usamos este termo majestoso, globalizantes e substantificador; (p.240)

É como se o trabalho de Guirado fosse herdeiro do pensamento de Foucault sobretudo por essa via, a da suspeita. Suspeita introduzida por essa maneira de pensar, que é quase como uma questão constante, enfim: o que é possível produzir, quando se parte deste determinado campo conceitual? Que, no limite, é pressuposto; afinal, questionar ‘como’, é introduzir essa suspeita. Foucault, portanto, como estratégia de pensamento, como maneira de pensar, e pensar analiticamente, nesse caso.

Destacamos, até agora, a forma do texto de Guirado, e associamos a isso certa filiação a Foucault. Contudo, ainda por outros meios pode-se marcar essa herança, por exemplo, a temática tão cara a esse autor da relação entre Verdade e Poder:

Por hipótese, bem como pelo que se tem constatado em diversas pesquisas desenvolvidas a partir do recorte da análise institucional do discurso, tanto a psicologia sacramentada pelo cânones da ciência, quanto aquela diretamente tecida no exercício profissional e de ensino, têm seus saberes produzidos em meio a relações de poder e jogos de verdade. E é isso que define seu âmbito e suas fronteiras com outras áreas do conhecimento, tal como sabemos hoje, multifacetadas, com seu objeto ora apontado para o comportamento, ora para a vida psíquica, ora para a capacidade de conhecer e se relacionar com o mundo, ora para a sexualidade, ora para o inconsciente e assim por diante. Cada um desses discursos exigiu, para se constituir, a inserção dos profissionais em práticas mais ou menos estruturadas, mas certamente, sempre o suficientemente endossada por estar no campo do verdadeiro e, produzindo verdades.(Guirado, 2010,p.83, sic)

O objetivo, ou a meta, do trabalho de Foucault, como ele próprio disse (1995), era estudar o sujeito. Guirado, se pretendesse o mesmo, e a partir dos mesmos método e conceitos, não teria escrito este livro que ora resenhamos. Guirado, com seu trabalho, pretende estudar (um)a subjetividade; pretende uma analítica da subjetividade. Contudo, há de, para isso, abandonar, não propriamente abandonando; há de trair, não propriamente traindo; há de subverter, de algum modo, esse(s) que serve(m) de base e inspiração.

Assim, teoricamente, o conceito que permite a Guirado falar de subjetividade falando (interessadamente, a bem saber), ao mesmo tempo, de instituição, discurso e poder é o conceito de transferência em psicanálise. No entanto, é necessário trabalho e muitos vai-e-vem para que se possa articular esses conceitos em algo como uma Análise Institucional do Discurso. E é esse e nesse esforço que (se) constitui este livro.

O texto Observações sobre o amor transferencial, segundo Guirado, “traz a transferência pensada como uma espécie de recordação” (2010, p.150), que o paciente atua na relação com o médico. Não acompanharemos, aqui, o passo a passo de Guirado no trabalho com esse conceito, no entanto, indicamos que a autora aponta para a ideia de que uma cena se reedita. E, considerando o conceito de instituição que utiliza e da afirmação (conclusão) de que a clínica psicanalítica é também uma instituição, Guirado caracteriza a situação clínica como um quadro pragmático2 que configura certa cena enunciativa, que especifica e é especificada por certo contexto discursivo e que é situação de um acerto entre os atores em cena. Nas palavras da autora (2010):

O que fica da definição de Freud é a idéia de que uma cena se reedita. E é aqui que reconhecemos o que permite deslizar para a noção de instituição e de cena enunciativa, ou melhor, de cenografia. A cena diz da possibilidade de uma acerto básico em que os parceiros se identificam e identificam o outro com uma certa estabilidade de posições. Como diz Dominique, ao colocar a cenografia como o nível mais imediato da relação de enunciação ou de gênero discursivo, os parceiros de tranquilizam quando se estabelecem expectativas de ação/reação por parte de um e de outro (p. 157)

É recompensador, para o leitor, se deparar com períodos como o citado acima depois de um considerável número de páginas lido. Nele, encontram-se articulados todos os elementos até então trabalhados pela autora, melhor dizendo, ele é a penúltima parada de um caminho que tem como destino a analítica da subjetividade.

Por tudo que se disse até agora, já é possível respondermos à pergunta inicial: Não, esta subjetividade não é uma subjetividade de interiores. Ela se configura nos cruzamentos entre História e Contexto, no Acaso pressuposto nas relações de poder (lembremos o título da introdução desse texto). A metáfora é a do sujeito-dobradiça, um operador conceitual que permite dizer de um sujeito psíquico por que institucional, ou ainda, matriciado em relações institucionais (Guirado, 2010).

Com o movimento que as metáforas nos permitem, podemos dizer que o sujeito das práticas psicológicas é esse singularmente constituído nas relações que faz, nos diferentes contextos que, por sua vez fazem sua história desde o berço das (e nas) relações com as figuras que se lhe apresentam como significativas, até estas que, nas diferentes situações exemplares aqui retratadas, procuramos configurar (Guirado, 2010, p. 52-53)

Ainda, e com ar de encerramento, esse operador conceitual “enuncia simultaneamente as condições de produção do discurso e os efeitos de subjetivação e, com isso, viabiliza uma analítica da subjetividade. Cria-se com ele a condição e a possibilidade de escuta de um falar de si” (Guirado, 2010, p.139).


Curiosamente, o texto de Guirado, talvez não muito desavisadamente, reúne, em forma e conteúdo, uma fala e um fazer que dizem/mostram, também, de um
si. Um sujeito-psicólogo, docente, analista institucional do discurso, pesquisador, e tantos outros, que uma leitura atenta talvez permita ao leitor configurar. Para além (ou aquém), é claro, de todo o material, fruto de anos de trabalho e pensamento, que se reúne sob o título de Análise Institucional do Discurso.

 

Referências

FOUCAULT, M. (1997) Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Ed. Forense.

FOUCAULT, M. (1990) História da sexualidade I: vontade de saber. (10. ed.) Rio de Janeiro: Graal.

FOUCAULT, M.(1995) O Sujeito e o Poder. In: Dreyfus, H. e Rabinow, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, pp. 231-249.

GUIRADO, M.(2010) A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade.(1 ed.) São Paulo: Annablume editora.

GUIRADO, M. (2000) A clínica psicanalítica na sombra do discurso. São Paulo: Casa do Psicólogo.

 

(1) Aluno de Graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

(2) Maingueneau falando de gênero de discurso: “cada enunciado se apresenta por meio de um quadro que permite apreendê-lo e, sobretudo, daí deriva-se um comportamento adequado a uma determinada situação” (Maingueneau in Guirado, 2000, p. 91).