O corpo que dança: a linguagem artística como forma de expressão e tomada de consciência, uma leitura da abordagem fenomenológica

The dancing body: the artistic language as a form of expression and awareness, a reading of the phenomenological approach.


Mariana Soares

mariana.siham@bol.com.br

Universidade São Marcos

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é abordar a questão da dança como forma de linguagem e expressão do ser, discutindo-a por meio de uma visão fenomenológica baseada no conceito de corpo desenvolvido na obra Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, bem como outros estudiosos do tema. Por esta forma artística de linguagem, pode-se experienciar e expressar conteúdos referentes a questões existenciais. Para realizar tal discussão, se faz necessário pensar para além da própria dança, mas também nas noções de corpo, de movimento, de expressão e de significação.

Palavras-Chave: dança; corpo; movimento; significação; expressão.


ABSTRACT

The purpose of this article is to approach the question of dance as a form of language and expression of self, discussing it through a phenomenological vision based on the concept of body developed in the work Phenomenology of Perception of Merleau-Ponty, as well as other scholars of the theme. Through this artistic form of language, one can experience and express content, referring to existential questions. To accomplish this discussion, it is necessary to think beyond the dance itself, the notions of body, movement, expression and meaning.

Key-Words: dance; body; movement; meaning; expression.


A dança é uma forma de expressão artística, que compreende um processo que vai para além da mera repetição de passos, gestos e movimentos aprendidos, que serão discutidos neste artigo. A dança pode ser executada com diferentes objetivos: o de produzir ou reproduzir uma coreografia ou o de executar uma dança livre. Há ainda uma variação nesses passos, gestos e movimentos que variam de acordo com o estilo da dança e da cultura, compreendendo os hábitos, os gestuais, os costumes, a qual ela representa. Neste artigo será dada atenção ao desenvolvimento da dança livre, independentemente do estilo ou da cultura que ela represente, à criação, à expressão de uma ideia, de um sentimento, de uma emoção, de uma intenção, de uma experiência e de uma percepção individual e única de um ser e de seu corpo que se comunica e se expressa através dessa linguagem.

Partindo do desenvolvimento de conceitos e ideias levantados pela Fenomenologia, o filósofo Merleau-Ponty, em “€œFenomenologia da Percepção”€ (1945/1999), busca desenvolver o estudo da percepção propondo uma volta às próprias experiências, para que se possa, enfim, redefini-las. Ele trata das relações de união existentes entre sujeito, seu corpo e o mundo, considerando o corpo, como o “œveículo do ser no mundo”€ (p. 122), como mediador e expressão do ser no mundo e é no corpo que aprendemos a conhecer o nó que se dá entre a essência e a existência do ser. Sendo assim, é desenvolvendo uma ideia de unidade, que Merleau-Ponty (1945/1999) discute os dualismos de conceitos como os de consciência e corpo, de sujeito e objeto e de sujeito da sensação e sensível. É por entender a experiência do ser através dessa noção de unidade, que não se pode separar o corpo da consciência, já que um não se limita ao outro, estando todo movimento corporal entrelaçado na consciência, conforme suas palavras:

Porque não há um só movimento em um corpo vivo que seja um acaso absoluto em relação às intenções psíquicas, nem um só ato psíquico que não tenha encontrado pelo menos seu germe ou seu esboço geral nas disposições fisiológicas. (p. 130)

Pensando na questão da existência e da historicidade do ser como intrincada ao corpo, percebe-se, então, que deve haver uma relação entre o corpo e a memória do sujeito, pois sua existência foi vivida e apreendida por intermédio do corpo, é preciso, então, compreender o papel do corpo na memória, como aponta Merleau-Ponty (1945/1999):

Só se compreende o papel do corpo na memória se a memória é não a consciência constituinte do passado, mas um esforço para reabrir o tempo a partir das implicações do presente, e se o corpo, sendo nosso meio permanente de “tomar atitudes” e de fabricar-nos assim pseudopresentes, é o meio de nossa comunicação com o tempo, assim como com o espaço (p. 246).

A explicação de Merleau-Ponty (1945/1999) para a sustentação da unidade, que se dá entre os sentidos e a inteligência, assim como, entre a sensibilidade e a motricidade, é de que é feita por um “arco intencional”€ (p. 190) que projeta em torno de nós os aspectos sob os quais estamos situados, como nosso passado, nosso futuro e nosso meio humano. O corpo é entendido como mediador de um mundo, e sua experiência motora nos dá uma forma de acessá-lo. Movê-lo significa visar este mundo através do corpo, dessa forma, um movimento aprendido é compreendido e incorporado pelo corpo ao seu “mundo”. O autor procura compreender e explicar a noção do corpo e a partir dela, a de movimento, diferenciando-o em concreto e abstrato. A cada momento do movimento experimenta-se a realização de uma intenção. Segundo Merleau-Ponty (1945/1999):

Cada momento do movimento abarca toda a sua extensão, e em particular o primeiro momento, a iniciação cinética, inaugura a ligação entre um aqui e um ali, entre um agora e um futuro, que os outros momentos se limitarão a desenvolver. (p. 195)

Apoiado na noção da Gestalt de figura e fundo, o autor diz que todo o movimento tem um fundo e que ambos são “momentos de uma totalidade única” (Merlau-Ponty, 1945/1999, p. 159). Dessa forma, temos que todo movimento tem seu fundo imanente, que “€œo anima e o mantém a cada momento”€ (Merlau-Ponty, 1945/1999, p. 159). O autor compreende os movimentos corporais como concretos ou abstratos. A distinção entre ambos se dá no sentido de que o movimento concreto ocorre no ser ou no atual, aderindo a um fundo que é o mundo dado. O movimento abstrato acontece no possível ou no não-ser. Ao contrário do movimento concreto, seu fundo é construído, sendo que ele mesmo o desdobra. A função de “projeção” é o que o torna possível. Por meio dessa, o corpo projeta no exterior as suas significações dando a elas um lugar, portanto, o “€œsujeito do movimento prepara diante de si um espaço livre onde aquilo que não existe naturalmente possa adquirir um semblante de existência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 161).

Assim, acenar o braço a um amigo é um movimento concreto, o movimento é a figura desta situação, ou seja, de um fundo, que é o mundo dado. Porém, pode-se acenar o braço, por brincar, ou por imaginar uma situação, sem que esta exista de fato, o que faz desse, um movimento abstrato. Neste caso, é o próprio corpo que se volta para si mesmo. Quando se executa um movimento abstrato, esse busca uma zona de reflexão e de subjetividade, na profundidade do mundo onde se desenrolava o movimento concreto, sobrepondo ao espaço físico um espaço virtual ou humano. No caso da dança, os movimentos são abstratos.

A dança se dá a partir de movimentos, de passos, de gestos aprendidos, que são primeiramente compreendidos pelo artista através de seu corpo, pela experimentação e repetição dos mesmos. Tais movimentos são baseados em uma técnica, que é influenciada por uma cultura à qual está ligada, utilizando-se geralmente da música para a sua execução.

Merleau-Ponty (1945/1999) descreve a dança como um hábito motor. Sobre todo hábito, coloca que nessa aquisição é o corpo que “€œcompreende”€. É preciso pensar nessa compreensão, sem dissociar o corpo do pensamento, de forma que ela se dá através do corpo. Segundo o autor, “€œo hábito não reside nem no pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo como mediador de um mundo”€ (p. 201). O autor traz para ilustrar essa afirmação o exemplo de um organista que utiliza um órgão desconhecido por ele. A fim de cumprir seu programa, o músico realiza um ensaio. “O que ele aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo, e não é à sua ‘€˜memória’€™ que ele os confia” (p. 201). É experimentando o instrumento com seu corpo, que ele vai apreender a distância e posições entre teclas e pedais, que “€œsó lhe são dados como as potências de tal valor emocional ou musical, e suas posições só lhe são dadas como os lugares onde esse valor aparece no mundo”€ (p. 201). De tal forma que se estabelece, segundo o autor, uma relação tão direta entre música, instrumento e músico, que seu corpo e instrumento, são considerados apenas como o lugar de passagem dessa relação. É possível referir-se à dança da mesma maneira, observando-se a relação direta entre música e execução de passos que correspondam a essa. Sendo os movimentos a expressão da apreensão de valores emocionais, musicais do ser através de seu corpo.

A aquisição do hábito deve-se, então, a uma “apreensão motora de uma significação motora”€ (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 198), através da qual, o corpo manifesta através de gestos um novo núcleo de significação compreendido por ele e passa dos sentidos próprios dos gestos, a um sentido figurado dos mesmos. O corpo como núcleo significativo deixa-se penetrar por uma nova significação, assimilando a si um novo núcleo significativo. O ato de expressão realiza a significação, e não se limita a traduzi-la. Segundo o autor, também a fala vem consumar um pensamento, e não traduzi-lo “€œa palavra, longe de ser o simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as significações”€ (p. 242).

A significação motora possibilita o desdobramento do pensamento de um movimento em movimento efetivo e segundo Merleau-Ponty (1945/1999) existe entre eles uma antecipação ou uma apreensão do resultado assegurada pelo próprio corpo como potência motora, um “projeto motor”, uma “intencionalidade motora”. Segundo o autor, “€œadquirir o hábito da dança é encontrar por análise a fórmula do movimento e recompô-lo, guiando-se por esse traçado ideal, com o auxílio dos movimentos já adquiridos”€ (Merleau-Ponty 1945/1999, p. 198).

Essa questão da significação e transformação dos gestos é também descrita por Dantas (1996, citado por Diniz, Araujo, Antônio, Castro & Oliveira, 2009) que considera que a especificidade da dança está na transformação de movimentos comuns em gestos de dança, sendo que estes adquirem assim características extraordinárias, tornando diferentes seus fatores espaciais, temporais e rítmicos.

Em alguns tipos de dança, o dançarino pode dar uma tonalidade totalmente diferente ao mesmo passo. Pode-se partir de uma ideia pré-definida de se trabalhar sobre um tema escolhido, podendo transmitir com o mesmo movimento uma infinidade de emoções e sensações que se tenha a intenção de comunicar. Tais sensações podem ser de amor, de alegria, suavidade, ou sensualidade, sendo essas, apenas algumas, entre tantas possibilidades que vão variar de acordo com o humor da música, da percepção e interpretação que o artista tem da mesma. Assim, a dança é a expressão de um corpo que se direciona em um sentido, habita um mundo e se relaciona com ele. Porém, alguns exercícios utilizados no estudo da improvisação e da busca da expressão através da dança não possuem uma definição anterior de tema, ou por vezes, nem mesmo o conhecimento anterior de qual música será utilizada. Observa-se neste caso o surgimento espontâneo de movimentos, que são a expressão espontânea através do corpo, das sensações percebidas pelo sujeito que dança e vivencia a experiência em sua totalidade, conforme o descreve Fernandes:

Os passos têm vindo sempre de algum outro lugar- nunca das pernas […] É simplesmente uma questão de quando é dança e quando não é. Onde começa? Quando chamamos de dança? Tem de fato algo a ver com consciência, com consciência corporal, e a maneira pela qual formamos as coisas (Fernandes, 2006, p. 191, citado por Diniz, Araujo, Antônio, Castro & Oliveira, 2009).

Ao realizar uma improvisação de dança, o sujeito percebe através de seu corpo e sentidos as qualidades oferecidas pela música, seus ritmos, suas pausas, sua melodia. É por meio dessa troca que acontece na percepção do sensível, no caso a música, que vem de encontro a ele, sujeito da sensação, que irá a interpretar. Tal interpretação está repleta de significação, a música quer dizer algo, ela comunica algo ao sujeito, que responde a ela, expressando-se através de seu corpo pela dança, combinando os passos, os gestos, e movimentos que percebe e sente como sendo os correspondentes às sensações despertadas em seu ser, pela música percebida. Trata-se, portanto, de uma relação de troca entre o sujeito da relação e o sensível. Entendendo, então, as diferenças entre as subjetividades dos sujeitos e considerando que no momento da dança acessa-se, através da expressão dos movimentos do corpo, a totalidade do ser, pode-se considerar, que no caso da improvisação em dança, a escolha momentânea de um movimento entre todos que estão disponíveis e que fazem parte de seu repertório, é também uma escolha afetiva, que diz da totalidade do ser. Tal escolha abarca a sua existência, sua história de vida, suas emoções, intenções e sua consciência, que são partes indissociáveis da totalidade de seu ser e que acontecem e se expressam através de seu corpo.

Para Merleau-Ponty, o sentido enraíza-se na fala, sendo ela mesma a existência exterior do sentido. Pode-se notar que se estabelece, assim, uma relação entre dança e fala como gestos, como linguagens, que se referem ao sentido, às significações:

Portanto o pensamento e a expressão constituem-se simultaneamente… assim como nosso corpo repentinamente se presta a um gesto novo na aquisição do hábito. A fala é um verdadeiro gesto e contém seu sentido, assim como o gesto contém o seu. É isso que torna possível a comunicação (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 249).

Frequentemente, ouve-se falar tanto de espectadores como dos próprios dançarinos, sobre a sensação de que alguns desses artistas dançam com a alma. Esta é a percepção da existência de uma união entre alma e corpo, não se tratando enfim de “€œdois termos exteriores, um objeto, outro sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência”€ (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 131), já que o ser é através do corpo. O que se dá pela sensibilidade do artista que dança e vivencia através da experiência vivida, uma percepção direta de sua totalidade. A dança é a expressão do ser por intermédio do corpo, este, que como veículo do ser no mundo, realiza movimentos carregados de intencionalidade, significação, consciência e sentimentos que dizem da sua maneira de perceber e de estar no mundo.

Quando essa sensação é percebida e despertada no espectador, pode-se pensar na relação de troca estabelecida, existente através da observação da dança. Quando se refere ao corpo como expressão, Merleau-Ponty (1945/1999) aponta que “obtém-se a comunicação ou a compreensão dos gestos pela reciprocidade entre minhas intenções e os gestos do outro”€ (p. 251).  Sendo assim, quando estou no lugar de espectador:

O gesto está diante de mim como uma questão, ele me indica certos pontos sensíveis do mundo, convida-me a encontrá-lo ali. A comunicação realiza-se quando minha conduta encontra neste caminho o seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 251-252).

Sobre esta comunicação, referindo-se tanto à música quanto à pintura, o Merleau-Ponty (1945/1999) diz que “€œtoda linguagem se ensina por si mesma e introduz seu sentido no espírito do ouvinte” (p. 244) criando desta forma a seu público, “€œpor secretar ela mesma sua significação”€ (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 244).

Quanto maior é a entrega, o comprometimento do sujeito na execução dos movimentos da dança, maior é a percepção desta totalidade, igualmente, quanto mais se está engajado no projeto de realizar o movimento, maior será o primor na execução técnica do movimento de dança, observa-se um direcionamento em toda a musculatura e articulações, uma intenção, que se volta para o sentido ao qual se destina o movimento. Em relação a essa questão, observa-se acontecer no corpo e por intermédio dele, um momento de percepção do ser no mundo.  Quando se realiza um movimento, o sujeito que dança sente o despertar de diferentes sensações e emoções ligadas não só à experiência corporal da dança, mas que, partindo da concepção de unidade entre o corpo e o ser, diz respeito à experiência de todo o ser. Sendo que essas foram primeiramente vivenciadas, mas que, podem ser reelaboradas, se trazidas à simbolização e à reflexão através de outro exercício de simbolização e nomeação de tais sensações percebidas. Sendo assim, alguns exercícios de dança podem servir para trazer estas questões à reflexão do sujeito, fazendo com que este compreenda a si mesmo. Verifica-se, então, que a dança representa uma forma de percepção da totalidade do ser por intermédio de seu corpo, e, com ela, surge a possibilidade de utilizar-se da dança como um instrumento de tomada de consciência, de percepção e reflexão de si mesmo, podendo o sujeito, através desta experiência, vir a pensar sobre seu projeto, sua existência e seu acontecer no mundo.

Referências

Diniz, I. C. V. C., Araujo, S. P., Antônio, C.Q. , Castro, C. K. e Oliveira, A.C.P.(2009, abril). A Dança Experimental e a Dança Teatro. Anais do I Seminário e Mostra Nacional de Dança-Teatro, Caminhos da Dança-Teatro no Brasil,Viçosa, MG, Brasil.

Merleau-Ponty, M. (1999) Fenomenologia da Percepção (2ª Ed.)São Paulo: Martins Fontes. (Originalmente publicado em 1945).