Professora Leila Salomão Tardivo (IP) e outros especialistas avaliam que no cenário da pandemia da covid-19, apontar irregularidades no emprego ficou em segundo plano – manter a vaga se tornou prioridade

Número de denúncias de assédio sexual caem no ano de 2020

Stand Up contra o assédio (Foto: Getty Images)

Júlia* trabalhou durante 10 meses, em 2019, em uma produtora como roteirista. De todo o tipo de importunação que os funcionários sofriam, ela destaca as piadas de cunho sexual, que todos precisavam ouvir “o dia inteiro”. A princípio seu chefe acreditou que ela pudesse ser uma mulher lésbica e constantemente a provocava a respeito disso, perguntando se ela dava em cima de uma colega de trabalho e se queria “colar velcro”. Com o tempo, tendo conquistado a confiança dele, a relação passou a ser mais próxima. Ela diz que o chefe assumiu um papel de “pai”, que brincava dizendo que a adotaria como filha, mas que daí para frente tudo degringolou. “Beijei um colega de trabalho e percebi que ele estava lendo as nossas conversas. Nos procurava na rua para saber se estávamos juntos. Num dia me amava, dizia que me daria tudo o que eu pedisse, até a roupa do corpo. Era constrangimento atrás de constrangimento na frente de todos.” Júlia* se lembra do dia em que passou mal de estresse durante uma gravação – ele esperou o trabalho terminar para conversar com ela.

“Ele me colocou sentada no colo dele. Eu estava tão acabada que não consegui entender como ele me puxou e fui. Nas semanas seguintes não correspondi, comecei a entender o que tinha sido aquilo e fui me afastando.” Quando decidiu se demitir, ela ouviu que aquilo não era nada, que ele cuidava dela como um pai cuida de sua ‘menininha’, que ela era uma traidora e que ele jamais sairia da sua cola, ameaçando “queimá-la” no mercado. “Me senti suja. Depois da demissão, ele ainda me ligou várias vezes dentro de uma hora. Bloqueei no mesmo dia. Passei um mês na minha cidade natal, no colo da minha mãe. Me culpei achando que correspondi, que me ofereci. Hoje ainda sinto medo dele, mas percebo que ele tem fama [de ser assediador] e tenho quem não duvide de mim.”

Relatos como o de Júlia são comuns no ambiente corporativo, sobretudo entre mulheres. A lei do Assédio Sexual (Lei 10.224/2001) completou 20 anos em março. Apesar do termo ser popularmente utilizado para caracterizar importunação de cunho sexual, a lei entende como assédio aquele que é praticado quando há relação de hierarquia entre as partes – ou seja, se dá nas relações trabalhistas. A pena é a detenção de 1 a 2 anos.

No ano de 2020, a pandemia da Covid-19 foi um divisor de águas no mundo, que mudou completamente por conta da doença. Só no Brasil já foram mais de 600 mil mortes. As relações de trabalho foram diretamente afetadas – primeiro, pelo fim dos vínculos de emprego em detrimento da crise econômica: são mais de 14 milhões de desempregados no país. Ao mesmo tempo, uma boa parte dos brasileiros passou a trabalhar remotamente, em um regime de teletrabalho (ou o chamado home office), já que muito antes do desenvolvimento das vacinas a forma mais eficaz de se evitar a transmissão do vírus era o distanciamento social. Em todo o mundo, pessoas passaram a exercer suas funções de casa, em um esquema que, inclusive, se tornará permanente em diversos setores.

Os reflexos que esse regime trabalho trouxe foram imensos, mas um dos principais a serem destacados é que o número de denúncias de assédio sexual recebidas pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) caiu 35% em relação ao ano de 2019. O movimento, contudo, é contrário ao que vinha acontecendo nos últimos anos, visto que o número estava crescendo gradualmente.

É possível destacar dois pontos que justifiquem essa diminuição: o primeiro deles é um cuidado maior por parte do agressor para praticar o crime, já que no ambiente virtual é mais fácil registrar provas. Um outro ponto, e possivelmente o principal, é que este foi um período em que as pessoas tiveram dificuldade de manter seus vínculos trabalhistas. “Existiu uma mobilização de trabalhadoras muito mais na busca por manter seus contratos de trabalho.

Elas foram impactadas de forma muito mais poderosa do que homens. Tiveram que suportar problemas de ordem do trabalho doméstico e ao mesmo tempo do home office. Ele já representa para essa trabalhadora uma sobrecarga, um estresse adicional porque é sabido que na distribuição das responsabilidades familiares, mulheres respondem muito mais que os homens. Então isso naturalmente vai inibir que essa trabalhadora se sinta confortável para apontar certas irregularidades”, aponta Valdirene Assis, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Thamíris Molitor, advogada trabalhista e doutoranda na Faculdade do Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP), destaca outro motivo para a diminuição das denúncias: a chamada precarização do trabalho, ao pontuar que o acesso ao direito, que deveria ser de todas as trabalhadoras, acaba sendo um privilégio de poucas. “O Brasil tem um grande histórico do trabalho informal precarizado, sem vínculo, em que o trabalhador não tem muita garantia. Isso é uma dificuldade. Estamos passando por uma crise econômica, às vezes aquele trabalho é a única fonte de renda da mulher”.

Um dos casos que mais ganharam repercussão em 2021 foi o da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O até então presidente da instituição, Rogério Caboclo, foi denunciado no dia 4 de junho por sua secretária por assediá-la sexualmente. Em um dos áudios revelados por uma reportagem do Fantástico no dia 6 de junho, Caboclo perguntava à funcionária se ela se “masturbava”. Em outro episódio, lhe ofereceu biscoito de cachorro, ao chamá-la de “cadela”. Mais dois outros casos foram revelados após a primeira denúncia. Ele nega todas as acusações, mas a justiça do Trabalho decidiu pelo afastamento do cartola por um ano. Em caso de descumprimento, a multa diária será de 500 mil reais.

Apesar das mudanças trazidas pela pandemia e da queda no número de denúncias, o número de ações na Justiça comum aumentou. Segundo o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), até agosto deste ano foram 274. O número deve ultrapassar todo o ano de 2020, quando foram registradas 279 ações, uma média de quase seis por semana. Valdirene avalia que o tema tem sido encarado com seriedade por grande parte das instituições, que possuem hoje uma agenda de equidade de gênero e, portanto, de combate aos assédios. “O mundo viu valores básicos serem ameaçados. Com o avanço da vacinação e a retomada das atividades presenciais, vamos conseguir voltar a mensurar essas macro e micro violências do mundo do trabalho, já que a pandemia também trouxe um aumento da subnotificação.”

Especialistas apontam que o trato com o assunto deve ser multidisciplinar, visto que ele é multifatorial: Leila Salomão Tardivo, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, aponta que existe atualmente uma maior consciência por parte da sociedade a respeito do tema. “Hoje uma colega não vai aceitar um chefe assediando uma funcionária. As pessoas começam a ter uma consciência, até porque você não muda atitude só com lei, que é o campo do saber do direito. Prevenir, educar, criar uma cultura de paz e harmonia… É muito importante que a gente consiga ir atuando em várias direções”.

*O nome da vítima foi modificado por questões de segurança.

Fonte: Revista  Glamour, 8 out 2021 – 12h. Atualizado em 11 out 2021 – 14h36

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