Artigos Originais

Sobre geração, cuidado e amor: uma compreensão de “Sonata de Outono”

 

About generation, care and love: an understanding of “Autumn Sonata”

Jéssica de Sousa1

Pontifícia Universidade de São Paulo


RESUMO

O presente trabalho pretende uma leitura do filme de Ingmar Bergman “Sonata de Outono” (1978), com foco na relação mãe-filha, tendo em vista que esta relação possui uma marca diferenciada: está referida a questão da origem. Através de uma compreensão da relação das personagens apresentadas no filme, deparamo-nos com considerações acerca da geração, do cuidado e do amor, temas concebidos como possibilidades de ser do homem.

Palavras-chave: relação mãe-filha; geração; cuidado; amor


ABSTRACT

ABSTRAT: The present study aims the comprehension of Ingmar Bergman’s film “Autumn Sonata” (1978), focusing on a distinguished aspect of the mother-daughter relationship, the origin. Through an understanding of the bounds of the characters featured in the film, we are faced with considerations about generation, care and love; the themes are conceived as man’s possibilities of being.

Key-words: mother-daughter relationship; generation; care; love


O existir humano se dá em diversas possibilidades. O cotidiano clínico aproxima o terapeuta da possibilidade de experimentar os mais diversos dilemas e questões que o existir traz à tona através da palavra alheia. Somos guiados por outros olhos, outras vozes. Porém, o que vemos, o que ouvimos não é, de fato, absolutamente desconhecido.
Augras (1986) pontua, usando a poesia como exemplo, que “o poeta oferece um arranjo de palavras que constitui uma mensagem nova, jamais encontrada antes pelo leitor, porém, logo reconhecida como a expressão de uma vivência que poderia ser dele mesmo” (p.91).

Dessa forma, o convite para estar junto à experiência humana está posto também fora das paredes da clínica: está na música, na literatura, no cinema. Tantos os convites para nos aproximarmos da realidade que o outro viveu e, que ainda assim, é nossa. Nesse contexto, o presente trabalho aborda uma questão constante no cotidiano clínico: a relação entre mãe e filha – levando em consideração a pertinência dos temas geração, cuidado e amor – através da interpretação compreensiva do filme “Sonata de Outono” (1978) de Ingmar Bergman.

 

Acompanhando o olhar de Bergman

No filme acima referido acompanhamos o reencontro de mãe e filha após sete anos de separação. Ao saber que sua mãe – Charlotte – uma famosa concertista de piano, acaba de perder seu companheiro de treze anos, Eva lhe escreve pedindo para que ela passe uma temporada em sua casa. Muita coisa se passou durante esse tempo em que estiveram afastadas. Eva perdeu seu filho, Eric, um dia antes de ele completar quatro anos.

A visita, aparentemente cordial e alegre, vai desnudando a complexa trama existente na relação entre a mãe e a filha. O primeiro indício da fragilidade que sustenta os laços entre elas aparece quando Eva conta a Charlotte que Helena, sua irmã portadora de uma doença nervosa degenerativa, está morando com a família, afim de que possa ser melhor assistida.

No meio da noite, um pesadelo. A porta do quarto de Charlotte se abre e Helena entra intempestivamente no aposento. Joga-se em cima da mãe, seu corpo está rígido. Charlotte é tomada por uma onda de pavor e acorda assustada. Quando Eva encontra a mãe acordada na sala, ambas iniciam um diálogo corajoso – na medida em que se disponibilizam a percorrer a escuridão de culpa e ódio que habita cada uma delas – porém, violento. Eva acusa a mãe de falta de amor, de abandono, de não a ver, de não a escutar e, por fim, acusa-a de ser a responsável pelo adoecimento de Helena. Assim, ao longo da noite, o pesadelo de Charlotte é trazido à realidade com uma lucidez apavorante. Charlotte a escuta, defende-se e surpreende-se com sentimentos que desconhecia em si. Não entende sua culpa, reconhece o ódio da filha e o próprio ódio. Diz que quer ajuda.

Um grito ecoa pela casa. É Helena, que chama pela mãe. Já está fora do seu quarto, caída no chão. Quando Eva e Charlotte a encontram, estica, com dificuldades, os braços em direção à mãe.

Charlotte deixa a casa na manhã seguinte. Já no trem, junto com um velho amigo, fala de seus concertos, das discussões que tem com alguns violinistas e de uma saudade persistente, mas ela não sabe dizer do que tem saudade.

Ao mesmo tempo, Eva está andando pelo quintal de sua casa. Está muito triste e abatida. Pensa na mãe e em como esta de repente lhe pareceu velha e cansada. Tem medo de cometer suicídio. Sente que o filho está a seu lado. Olha para uma janela acesa: é o quarto de Helena. Imagina que Viktor, seu marido, está lhe contando que Charlotte foi embora.

O filme termina com Viktor lendo uma carta que Eva escreveu para a mãe, depois de sua partida:

Cheguei à conclusão de que errei em relação a você. (…) Não sei se esta carta vai chegar em suas mãos (sic), e muito menos se você vai lê-la. (…) você precisa entender que nunca mais vou deixá-la ou deixar que desapareça da minha vida. Não desistirei mesmo que seja tarde demais. Não acho que seja tarde demais. Não pode ser tarde demais… (Bergman, 1978, p.127 – grifos do autor)

 

O ser filha

Eva: Mãe e filha, que terrível combinação de sentimentos, confusões e destruições. Tudo é possível e tudo acontece em nome do amor e da consideração. Os efeitos da mãe devem ser herdados pela filha, os cálculos falsos da mãe devem ser regularizados pela filha, a infelicidade da mãe deve ser felicidade da filha, – é como se o cordão umbilical jamais tivesse sido cortado. A infelicidade da filha é triunfo da mãe, o luto da filha é o prazer secreto da mãe. (Bergman, 1978, p. 98/99)

A relação entre mãe e filha possui uma marca diferenciada de todas as outras: é uma relação referida à origem. Do ponto de vista existencial, origem é diferente de começo. O começo das coisas possui um marco cronológico; responde a essa lógica. A origem está para além do começo, está no campo da atualização, do instante; é o sentido de uma vivência que permanece no presente.

A mãe é ‘de onde viemos’ e a quem estamos intrinsecamente ligados, primeiramente, pelo cordão umbilical. Tanto do ponto de vista biológico, quanto do psicológico, o cordão umbilical marca uma relação de dependência.

Durante as 38 semanas de gestação2, é essa ligação entre mãe e filho que garante a sobrevivência e o desenvolvimento do filho. Poucos dias depois do nascimento do bebê, o cordão murcha, seca e caí, mas, em termos afetivos, ele pode nunca deixar de existir. Isso significa que o sentido da ligação afetiva que o cordão umbilical expressa é constantemente atualizado no decorrer da vida, na forma de dependência ou independência.

No caso do filme, vemos uma relação em que o cordão umbilical psicológico não foi rompido. A constatação de Eva de que é na sua infelicidade que a mãe encontra seu triunfo não deixa de ser terrível e verdadeira: denuncia a competição colocada à prova na relação entre elas.

A competição pode ser entendida como uma saída mais cômoda para Charlotte, pois mantendo o relacionamento com a filha numa certa superficialidade, ela se isenta de colocar seus verdadeiros sentimentos e temores em questão. Assim, a competição é uma saída mais fácil do que caminhar pelo árduo terreno de se relacionar verdadeiramente: de estar afetivamente implicada nas situações vividas e de se responsabilizar pelos atos cometidos.

Quando Eva conta a Charlotte sobre as aulas que leciona na paróquia, esta imediatamente lhe descreve a turnê de sucesso que obteve nos Estados Unidos, evidenciando o jogo competitivo, no qual o fracasso de uma é o sucesso da outra.

Eva: (…) Não entendia tuas palavras. Elas não condiziam com a expressão dos teus olhos e com o tom da tua voz. O pior, ainda, era ver você sorrir quando estava com raiva. Odiar papai e dizer pra ele ‘meu querido amor’. Estar cansada de mim e me tratar de ‘minha amada filhinha’. Não batia certo. (Bergman, 1978, p. 85)

A relação humana só existe no contato. O contato, no entanto, pode se dar de diversas maneiras, e, considerando a relação mãe-filho, é comum a pensarmos imediatamente como uma relação amorosa.

O contato amoroso promove a disponibilidade de estar com o outro. Na fala de Eva, entretanto, podemos inferir que Charlotte experimentava um modo de ser indiferente em relação à filha. Isso nos leva a pensar que uma relação amorosa se dá além do âmbito biológico, ser mãe não é suficiente para nutrir amor pela própria filha; e que o amor não é, em nenhuma circunstância, uma relação simplesmente dada, e sim construída, como veremos adiante.

Segundo Winnicott (1956), “a falha materna provoca fases de reação à intrusão e as reações interrompem o ‘continuar a ser’ do bebê. O excesso de reações não provoca frustração, mas uma ameaça de aniquilação” (p. 403). Pode haver, portanto, para o humano, um comprometimento psíquico advindo da falta do contato amoroso. O próprio existir entra em questão quando não assegurado pelo amor primordial.

No fim das contas, é essa a acusação de Eva à mãe: a falta de amor. Sua fala denuncia o desamparo a que era lançada diante das mensagens ambíguas da mãe; não sabia se era amada ou odiada e, assim sendo, não sabia se deveria amar ou odiar.

Para Rollo May (1999), “(…) o processo de nascer do ventre materno, diferenciar-se da massa, substituir a dependência pela escolha existe em todas as decisões de nossa vida e é o que encontramos mesmo diante da morte” (p.99). Este processo assegura a realização da individualidade e é garantido quando a criança experimenta no ambiente materno uma segurança para vir a ser.

Na primeira cena do filme, Eva nos é apresentada por Viktor, seu marido, que lê uma passagem de um dos livros publicados por ela:

Todos precisam aprender a viver. A cada dia, me esforço um pouquinho. A dificuldade principal está em saber quem eu sou e onde estou. É como procurar na escuridão. Se alguém me amasse como sou, talvez, finalmente, me pudesse encontrar. (Bergman, 1978, p. 12)

Na obra de Winnicott o cuidado é um tema central. Segundo o autor, é a partir dos cuidados (contato, manejo corporal etc.) que as experiências sensoriais do bebê são gradualmente integradas à sua constituição psíquica (Winnicott, 1945, p. 224).

Para Eva, que teve uma infância marcada pela indiferença e ausência materna, a sua existência, ou seja, seu poder ser, está constantemente ameaçado. A fala da personagem marca a falta em que vive e na qual, provavelmente, sempre viveu: a falta do amor.

 

O ser mãe

Charlotte: Eva! (…) Você gosta de mim, não gosta?

Eva: É evidente que sim, você é minha mãe.

Charlotte: Essa não foi uma resposta direta.

Eva: Então, vou lhe responder com uma outra pergunta: você gosta de mim?

Charlotte: Eu te amo.

Eva: Não é verdade. (sorri)

Charlotte: Você me acusa de falta de amor.

Eva (não lhe responde, olha para ela.)

Charlotte: Mas você não vê o que há de inconcebível numa acusação dessas?

Eva (olha para ela): Não foi acusação nenhuma.

Charlotte: Você se acusa a você mesma por falta de amor em relação a Viktor?

Eva: Eu disse a Viktor que não o amava. Você finge que ama. Essa é a diferença.

Charlotte: E se eu o fizesse de boa fé? (…) E se eu estivesse realmente convencida de que amei, à você e à Helena?

Eva: Não é possível. (Bergman, 1978, p. 73/74)

Charlotte é uma mãe afetivamente ausente. Dedica-se à carreira e não ao exercício da maternagem. Em Orestia (apud May, 1999, p. 103), Ésquilo narra a tragédia Orestes e Electra, irmãos renegados pela mãe, Clitemnera, que lança o filho ao exílio e conserva a filha como serviçal. Para Rollo May (1999), “o mais chocante do drama, quando relacionado aos problemas de hoje (…) é a sugestão de que existem mães como Clitemnera” (p. 105).

A acusação de falta de amor da mãe em relação à filha é inconcebível, segundo Charlotte. Porém, do mesmo modo que o cordão umbilical marca uma relação para além do campo biológico, ser mãe também não se restringe a esse âmbito: a maternagem não é somente biológica; é um modo do homem ser e se relacionar com os outros, se dá na presença do cuidado. Ser mãe não exige apenas a capacidade de parir uma criança, diz respeito à capacidade de gerar.

Charlotte não pode apreciar novas qualidades que a experiência da vida traz, não pode gerar, não pode ser mãe; é engolida pela concertista. Diante da cobrança da filha, vislumbra o que poderia ser um arrependimento, arrependimento do que não realizou.

A capacidade de gerar, de criar com o outro, exige a disponibilidade para se relacionar – não de forma precária, indiferente, e sim, de forma amorosa –, barreira quase intransponível para Charlotte. Ela nunca conseguiu retribuir as ofertas de amor e carinho de seu marido e suas filhas, nunca se lançou à construção de um modo de ser amoroso.

Charlotte: eu sempre tive medo de você. (surpreendida)

(…) eu queria mesmo é que você tomasse conta de mim, que me abraçasse, me consolasse. Eu vi que você me amava e eu queria te amar, mas não podia porque tinha medo das tuas exigências. (Bergman, 1978, p. 104)

Charlotte reconhece a necessidade de sentir-se amada e de controlar os sentimentos de todos à sua volta. Reconhece a incapacidade de retribuir, de entrar em contato com o desamparo e com a fragilidade inerentes à condição de relacionar-se, de estar com o outro.

Werther, personagem trágico de Goethe, quando experimenta o amor, o descreve para seu amigo dessa forma: “eu a encontrei, senti seu coração, a grande alma, em cuja presença eu parecia crescer para além de mim mesmo, por que eu era tudo que podia ser” (Goethe, 2002, p. 13).

A experiência descrita pelo personagem está relacionada ao que poderia significar “crescer para além de si mesmo” e se tornar “tudo que podia ser”, sensações que o sentimento amoroso nos remete, e que estão relacionadas com a plena satisfação que a existência de um outro pode trazer à nossa vida. O amor pode ser experimentado como uma sensação de que se é “tudo que se pode ser”, de satisfação plena. Mas ser “tudo que se pode ser” por um outro – ou, na presença dele – concomitantemente traz à tona a impotência frente ao fato dessa satisfação depender da correspondência desse outro. Isso significa que quem ama dá ao amado o poder lhe satisfazer – plenamente – e lhe fazer crescer para além de si mesmo; e, ao mesmo tempo, dá a possibilidade de lhe magoar. Saint-Exupéry (2009) escreve à amada:

Descubro com melancolia que meu egoísmo não é tão grande assim, pois dei ao outro o poder de me magoar. Menininha, foi com carinho que lhe dei esse poder. É com melancolia que a vejo usá-lo. (p. 21)

A constatação do autor demonstra que amar é, então, poder entrar em contato com a vulnerabilidade das relações humanas. A figura de Charlotte, entretanto, é a representação dolorida da indiferença e insensibilidade que uma mãe pode nutrir em relação à própria filha.

Diante disso Eva e Charlotte são levadas a perder a ingenuidade que atravessa a “acusação inconcebível” de Eva: de que o amor materno é incondicional e absoluto. Afirmação também colocada em questão na tragédia de Ésquilo. A esse respeito, Winnicott (1999) escreve:

Vocês sabem que um grande número de mães não amam os seus bebês quando os dão à luz? (…) Seria tão mais fácil para elas se lhes tivessem dito de antemão que o amor é uma coisa pode chegar mas não é botão que se liga. Geralmente, a mãe não tarda em sentir amor pelo seu bebê durante a gravidez, mas isso é uma questão de experiência e não uma expectativa convencional. (p. 14)

O amor, o contato amoroso, não pode ser reduzido a gestos ou palavras – como “minha amada filhinha” – só pode ser concebido como construção, como um esforço de ser de modo amoroso, que se realiza através do cuidado. Também Safra (2006, p. 33) aponta que o amor, mais do que um sentimento destinado a outra pessoa, é um acolhimento do outro, um sair de si.

No entanto, a mãe, antes de tudo, é humana. É capaz de exigir sem nunca doar, de fazer doer na filha a dor que nunca pôde admitir em si. Assim, o amor é o ponto central do diálogo entre filha e mãe, o amor que Charlotte exigia e que Eva buscava sem sucesso.

 

Culpa e perdão

Eva: Olha para mim, mamãe. Olhe para Helena. Não tem desculpa, não, mamãe. Existe apenas uma verdade e uma mentira, e razão nenhuma para perdoar. (Bergman, 1978, p. 111)

Eva é categórica: Charlotte é culpada. É culpada pela doença de Helena, culpada pela dor irreparável e pela incapacidade de viver o amor a que Eva foi lançada.

No filme, Charlotte nos intriga. Diante do ódio da filha, seria ela capaz de experimentar a culpa que lhe é atribuída?

Ser enquanto existência é escolha: o homem decide pela própria vida e é responsável por suas decisões; assim, a possibilidade de viver a culpa sempre está presente. Porém, o modo como Charlotte se relaciona com as filhas é também o modo como vive a própria vida; relaciona-se com o mundo de forma superficial, indiferente. Não toma para si a responsabilidade por suas próprias escolhas, não consegue enxergar as próprias limitações afetivas. Acreditava que amava as filhas.

E, neste contexto, não, não pode se sentir culpada. No entanto Charlotte é culpada por selar um destino em sua escolha: o destino de ser só. Quando foi incapaz de entregar amor às filhas, negligenciou a pureza do amor que lhes tinham. Sente falta de estar em casa, de ter uma família, mas quando chega ao lar, percebe que é de outra coisa que sente falta. Algo de que não consegue ter precisão.

Charlotte (sozinha): Por que razão estou me sentindo como se estivesse com febre. Por que razão sinto vontade de chorar? Idiotice, idiotice pura. Sentir vergonha. É isso. É ter a consciência pesada. Sempre, sempre a consciência pesada. (…) Já são mais de quatro horas da tarde. Com os diabos! Putz, e ela lá, olhando para mim, com seus olhos grandes. E eu, segurando sua cabeça entre as mãos, sentindo como a doença contraía seus músculos. Esse corpo, estraçalhado, mas doce, é o da minha Lena… Nada de choro agora. Pro inferno com as lágrimas. Já são quatro e quinze. O melhor é tomar a ducha, pra mudar as idéias. E encurtar a visita, também. (…) Mas dói. Dor. Dor. Espera. Dói sim, como dói no segundo andamento da sonata de Bartok. (murmura e resmunga alguma coisa pra si mesma). É isso, claro. Acelerei demais o compasso, evidente. (Bergman, 1978, p. 34/35)

A culpa de Charlotte não anularia toda a dor infringida à Eva e Helena, por sua invalidez afetiva. Mas podemos pensar o que esse reconhecimento traria à tona no relacionamento com a filha. Eva poderia perdoar-lhe diante da redenção e do reconhecimento da culpa: um outro panorama abrir-se-ia para o relacionamento delas.

Eva reconhece a impossibilidade materna. A culpa permanece nela, que pode compreender. Então, culpa-se por fazer a mãe se deparar com o que não podia suportar. Culpa-se por fazer a mãe “fugir”, mais uma vez, tomando a saída menos implicada.

Não pode perceber que é a mãe que escolhe viver a vida isentando-se de experimentar um contato amoroso, que por um lado é arriscado, mas por outro, garante a possibilidade de estar com o outro. A escolha de Charlotte é não se responsabilizar; é, mais uma vez, dizer não a uma possibilidade amorosa de contato. Mas Eva não pode deixar de ter esperança, mesmo dizendo-se incapaz de perdoar a mãe.

Charlotte exige o perdão de Eva – da mesma forma como exigia seu amor – sem se redimir. Não busca efetivamente uma tentativa de reparar o sofrimento que causou à filha, não se arrepende. Diante do ódio da filha, não pode mais, assusta-se com a própria insensibilidade, desespera-se. Charlotte, amedrontada pelo ódio monstruoso e insuportável de Eva, vive a constatação de que é tudo que realizou.

Não há desculpas, não há perdão. Há esperança?

 

Estação para a esperança

Eva: Mãe estranha e incompreensível está aí, sem dúvida! Você devia ter visto quando lhe contei que Lena estava vivendo aqui conosco. Devia ter visto o sorriso dela. Como é possível? Pode imaginar como é que ela conseguiu arrumar um sorriso para aquela hora, apesar de toda surpresa e do medo? E depois, diante do quarto da Lena, como ela se recompôs: uma atriz antes de entrar em cena, com um medo diabólico, mas composta, controlada. O espetáculo foi magnífico. Acho que minha mãe é totalmente fria, não tem sentimentos. Afinal, o que ela veio fazer aqui? O que ela esperava depois de sete anos sem nos vermos? Sim, o que é que ela esperava? Aliás, o que é que eu esperava? Será que a gente nunca chega mesmo a perder as esperanças? (…) será que a gente nunca vai deixar de ser mãe e filha? (Bergman, 1978, p. 37/38)

O outono, assim como a primavera, é uma estação de transição. Nelas ocorrem as transformações necessárias para o solstício de inverno e o de verão. O outono é o anúncio da escassez que virá com o inverno: as folhas secam e caem das copas das árvores, os dias ficam mais curtos, as cores perdem a vivacidade.

Neste cenário encontram-se Charlotte e Eva; no outono afetivo. Reside aí a coragem de seu encontro; coragem de encarar a feiúra expressa nos sentimentos secos e sem cor, de encarar a morte daquilo que se almejava e, ainda assim, poder conservar a esperança de uma redenção, a promessa do perdão.

Há a esperança de que nem tudo está perdido, de que “não pode ser tarde demais” (Bergman, 1978, p.127), de que depois do inverno, chegará, novamente, a primavera, com a renovação da vida.

Eva: Quando era criança te admirava demais, uma loucura. Depois fiquei cansada, cansada de você e de seu piano, uma porção de anos. Agora estou sentindo que a admiração por você começa a voltar, ainda que de maneira diferente.

Charlotte (sarcástica): A esperança é a última a morrer.

Eva (séria): É isso. É isso mesmo… (Bergman, 1978, p. 52)

Eva, diante de muitas tentativas fracassadas de manter uma relação amorosa com a mãe, não deixa de conservar a esperança. Uma esperança incerta, porém, inabalável. Ela aceita a escolha da mãe – constata que independente de seu esforço e sua vontade, a escolha do outro é livre. Resta-lhe apenas a possibilidade aceitar essa prerrogativa.

Nesse sentido, sua esperança retrata o amor que nutre em relação à mãe, apesar de saber que não há retribuição, reconhecimento ou acolhimento para esse sentimento, ele, ainda assim, resiste. A esperança deve ser intacta: é a expressão de um amor que sobreviveu e a promessa de que o perdão é possível.

 

Referências

Augras, M. (1986). O ser da compreensão/fenomenologia da situação de diagnóstico. Editora Vozes. Petrópolis.

Bergman, I.(1978). Sonata de outono. 2ª. Edição, tradução de Jaime Bernardes. Editora Nórdica, Rio de Janeiro.

Bergman, I. (Diretor). (1978). Sonata de outono (Höstsonaten) [DVD]. Alemanha, França, Suécia.

Goethe, J. W. V. (2002). Os sofrimentos do jovem Werther. Tradução: Marion Fleischer. 2ª. Edição, São Paulo: Martins Fontes.

May, R. (1999). O homem a procura de si mesmo. 26ª. Edição, tradução de Áurea Brito Weissenberg. Editora Vozes. Petrópolis.

Newcombe, N. (1999). Desenvolvimento Infantil: a abordagem de Mussen. Artes médicas sul, 8ª. Edição, Porto Alegre.

Safra, G. (2006). A hermenêutica na situação clínica: o desvelar da singularidade pelo idioma pessoal. São Paulo: Edições Sobornost.

Saint-Exupéry, A. (2009). O amor do pequeno príncipe, cartas a uma desconhecida. Tradução de Alcilda Barbosa Caldeira Brant – Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Winnicott, D. W. (1999). Conversando com os pais. 2ª. Edição, tradução de Álvaro Cabral, São Paulo: Martins Fontes.

__________. (2000a). Desenvolvimento emocional primitivo. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Tradução de Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago. (original publicado em 1945)

__________. (2000b). A preocupação materna primária. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Tradução de Davy Bogomoletz. Rio de Janeiro: Imago. (original publicado em 1956)

1 Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP – Jessica.sousa84@gmail.com

2 Segundo Newcombe (1999) o período de gestação completa é de 38 a 42 semanas após o último período menstrual da gestante (p.80).