Entre o gozo e a rememoração: sobre a (im)possibilidade de se tecer

uma memória na contemporaneidade


Between the enjoyment and the remembering: On the (im)possibility to
weave a memory in the contemporaneity


João Felipe Guimarães de Macedo Sales Domiciano1; Rafael Rodrigues2

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo



RESUMO

O presente artigo visa a caracterização das condições de (im)possibilidade e especificidades de uma memória constituída no cerne de uma ordem social como a contemporânea. Valendo-nos de um diagnóstico que entende a economia libidinal própria de uma sociedade de consumo como estruturada em prol de modalidades de gozo patentemente perversas, com implicações no próprio modo de se experienciar o tempo, traçamos, em um primeiro momento, a relação entre as especificidades da configuração do laço social contemporâneo e a impossibilidade de tessitura de uma memória. Entendendo tal conceito na articulação da experiência benjaminiana com os processos da rememoração como delineado pela psicanálise, realizamos ao fim alguns comentários sobre a pretensa memória presente numa “atração” televisiva. Termina-se por mostrar como essa memória objetivada realiza a exclusão do sujeito que dela participa pela sua configuração enquanto imagem interessada que apenas possibilita uma distensão da fugaz experiência própria à posição de telespectador.


Palavras-Chave:
memória; laço social; contemporaneidade (posição do pai); percepção de tempo e psicanálise e cultura.



ABSTRACT

This article aims to characterize the conditions of (im)possibility and specificities of a memory constituted in the core of a social order as the contemporary. Making use of a diagnosis that considers the proper libidinal economy of a consumption society as structured in favor of forms of enjoyment patently perverse, with implications for the very way of experiencing time, we delineate, at first, the relationship between the specificities of the configuration of contemporary social bond and the impossibility of setting up a memory. Understanding this concept in a articulation of the Benjamin’s “experience” and the processes of remembering as outlined by psychoanalysis, we weave, at least, some comments on the alleged memory present in a television’s “show”. It ends up by showing how this objectified memory performs the deletion of the subject who participates in it by its setting as an interested image that only allows a distension of the fleeting experience of the position of viewer.


Key-Words:
memory; social ties; contemporary (father’s position); time perception and psychoanalysis and culture.


Ao tratar da condição sine qua non para a emergência do sujeito do desejo, Maria Rita Kehl na esteira de toda uma tradição crítica da contemporaneidade, salienta a necessidade de uma duração, de um tempo não-lógico do qual dependeria o valor de verdade da certeza do sujeito sobre si. Indo de encontro a uma leitura do “sofisma dos prisioneiros” que tende a minimizar, ou até desconsiderar a importância de uma relação temporalmente diacrônica entre os elementos envolvidos, com sérias implicações no manejo clínico, a psicanalista mostra, em O tempo e o cão (Kehl, 2009), como a dois tempos propriamente lógicos, o instante de ver e o momento de concluir, interpõe-se outro, o tempo para compreensão, que demanda algo da ordem de um vivido.

O sofisma, deste modo, ao esclarecer a natureza da “relação necessária entre o saber possível do sujeito do inconsciente e a experiência subjetiva do tempo” (Kehl, 2009, p.113), fornece, ainda que indiretamente, um artifício teórico para se pensar a articulação entre a economia libidinal de uma sociedade, i.e., a regulação dos ritmos impostos às modalidades de gozo, com implicações nas formas de se experienciar o tempo; e os modos de subjetivação deste vivido que, a depender da configuração das injunções sociais, podem resultar na formação de sintomas sociais como, por exemplo, na obra citada, o expresso pelo aumento de casos de depressão frente à urgência “que a vida social imprime à experiência subjetiva do tempo” (Kehl, 2009, p.116).

Inserimos o presente estudo, fruto da confluência dos percursos de pesquisa dos autores, em que se incluem atividades de iniciação científica e participação em grupos de estudo, no interior desta via reflexiva, entre as configurações do laço social e seus efeitos sobre a subjetividade, mais especificamente no que diz respeito à possibilidade de formação de uma memória numa ordem social como a dominante na contemporaneidade.


O experienciar de um tempo sem duração

Cada vez mais cercados de inovações tecnológicas que trazem consigo a promessa de uma valorização de nosso tempo, tão precioso numa era em que se equivale a dinheiro, encontramo-nos constantemente incitados a responder a uma miríade de estímulos que pululam à nossa frente. Celular, computador, internet, televisão, cada qual à sua maneira nos convoca a fruir de seus conteúdos, de seus “encantos”, quase sempre potencializados quanto mais sincronicamente possam ser articulados seus usos, haja vista, p.ex., a valorização da função multitasking3 nos novos artefatos tecnológicos.

Imersos numa temporalidade predominantemente restrita à premência do fazer, os sujeitos são logrados pelo discurso dominante, de vez que a experiência subjetiva de um tempo limitado a instantes de ação, ao invés de plena, é absolutamente vazia, onde “nada se cria e não se conserva lembranças significativas capazes de conferir valor ao vivido” (Kehl, 2009, p.116). Com a necessidade de uma intensa mobilização do sistema de atenção para reagir a tais fluxos de estímulos, a função de rememoração, responsável pela ligação destes com as marcas mnêmicas, assim propiciadora de uma inscrição duradoura, encontra-se bloqueada. Uma das condições para a articulação significante e registro dos perceptos, i.e., para a formação de uma memória, é justamente a entrega a uma temporalidade não regrada pela necessidade, como bem delimitado, em Bergson, pela noção de durée4.

Para tratarmos do estatuto da inscrição de um dado vivido e sua relação com o modo de inserção no laço social possibilitado pelo discurso social dominante, a referência à conceituação da diferença entre vivência e experiência, realizada por Walter Benjamin, faz-se imprescindível. Em “O narrador”, Benjamin (1936/1985) compõe um argumento sobre a articulação entre o desenvolvimento das forças produtivas, da técnica e a decadência da faculdade, aparentemente inalienável, de intercâmbio de experiências, ou simplesmente, do narrar. O narrador encontra-se em vias de extinção, e com ele a tessitura de uma trama coletiva, possibilitada pela troca, constitutiva do próprio experienciar. Pode-se, desta guisa, tratar a vivência (Erlebnis), como o conjunto de ações que trazem a marca de um vivido imediato, automático, volátil, ou melhor, de ações que por não serem tomadas como objeto de reflexão, transmissão, não se registram no psiquismo, não sendo, assim, transformadoras dos sujeitos nelas envolvidos. A experiência (Erfahung) é aqui concebida como uma vivência que tem seu estatuto alterado na sua passagem à articulação linguística, no ato próprio da transmissão (Kehl, 2009). Enquanto a primeira define-se por momentos que não se ligam a um saber coletivo constituído pela troca, portanto, confinadas na eterna recorrência do mesmo, a segunda, por esta propriedade de se remeter a uma sabedoria constituída, se define por possibilitar a dotação de um sentido imaginário, que dá o aspecto de uma continuidade ao vivido e, concomitantemente, permite a inscrição de um registro mnêmico.

Pode-se notar por esta senda como a dimensão da troca, do pensamento e do diálogo encontra-se articulada com a formação de uma memória, entendida, no sentido benjaminiano, como este saber tecido no incessante fluxo das narrativas. Deste modo, ao nos questionarmos sobre uma possível memória na contemporaneidade, acabamos remetidos ao seio da questão da configuração do laço social.

Guy Debord (1967), no fim dos anos 60, ao definir a sociedade do espetáculo como a onipresença da mediação da imagem, ou melhor, da imagem espetacular, na relação entre os sujeitos, colocava em questão a própria possibilidade de constituição de um espaço de trocas que não fosse perpassado pela lógica do capital. Ao pensarmos na sociedade brasileira de hoje, podemos tratar, ainda, a televisão como a encarnação imaginária do Outro de maior pregnância na intermediação das trocas. Como freqüentemente escreve Bucci (citado por Kehl, 2004, p.155) em suas análises na Folha de São Paulo, a televisão realiza a substituição de um espaço comum como o “público pelo espaço virtual do espetáculo”, fazendo com que, numa sociedade como a brasileira, a própria possibilidade de intercâmbio passe pelo filtro fetichista deste meio que tão bem representa a especificidade do laço social dominante.

Por mais indissociáveis que sejam as questões, quer tomemos a televisão pela sua lógica de oferta incessante de imagens ao gozo dos sujeitos, quer a tomemos pelo seu caráter fetichista de denegar-se enquanto meio, fazendo-se espelho de uma realidade, quer ainda tomemos as influências de um discurso que desvalorize a dimensão trans-individual dos sujeitos, ou mesmo a urgência impressa pela ordem social de maior eficácia na experiência subjetiva do tempo, nos defrontaremos com um ponto convergente como o do apagamento do engendro de uma história, da falta de meios para a formação daquilo que tratamos como memória.

Cientes da dificuldade de pensar tal conceito na sociedade contemporânea do capitalismo de consumo, buscaremos traçar as condições de possibilidade e especificidade de uma memória possível. Das múltiplas configurações que dão conta de tal função, dotaremos de valor exemplar, neste estudo, uma que se define por se encontrar inserida na própria lógica que a denega. No interior da programação televisiva, trataremos de tecer alguns comentários sobre uma memória como a presente numa “atração” nos moldes de um “Vídeo-show”.

Manifestamente voltada para a cobertura dos bastidores das produções realizadas pela Rede Globo, emissora que continua reinando hegemônica nos lares brasileiros, encontra-se em tal programa um esforço para a construção de uma rede de conteúdos que dêem uma pretensa perspectiva histórica às demais atrações da estação televisiva. Como trataremos à frente, a suposta memória aí engendrada tem certas peculiaridades ao menos dignas de nota, como a exatidão de sua transmissão pelo papel que aí tem a imagem, sua posição de “atração” dada ao gozo dos sujeitos e os efeitos enunciativos de um produto com interesses maiores que a mera distensão do presente vivido. Mas qual a especificidade da ordem social que possibilita uma memória como a aqui esboçada?

Goza!”: entre a imagem espetacular e o enlace perverso.

Ao pensarmos nas configurações contemporâneas da organização do laço social, ou seja, nas condições estruturais dos processos de socialização, faz-se necessária a referência a um conceito como o de supereu, que tem sua gênese situada nestes processos e que realiza a costura entre o discurso do Outro, matriz regulatória do acesso ao gozo, e a constituição do sujeito. Vladimir Safatle (2004), ao analisar as reconfigurações do supereu, traçou de maneira precisa a passagem da injunção própria de uma sociedade de produção, tal como a que se achava inserido o pai da psicanálise, à injunção característica de um capitalismo de consumo, no interior da qual Lacan se encontrava e que bem serve de parâmetro teórico para pensarmos a sociedade hodierna.

Coetânea e objeto do diagnóstico realizado em “Mal-estar na cultura”, a primeira dessas duas fases do capitalismo foi, por Freud, precisamente caracterizada como uma sociedade neurótica5. A economia libidinal de uma sociedade em franca expansão material demandava maciças moções de energia para a realização do trabalho próprio para tais objetivos. A subsistência de uma sociedade pautada nesses ideais seria, como nos coloca Safatle (2004, p.125), “impensável sem o desenvolvimento de uma civilização neurótica, que só poderia pensar seus processos de socialização através da instrumentalização do sentimento de culpa”. Torna-se inteligível, desta forma, a condição estrutural da prevalência de um supereu opressor que, representado pela versão imaginária do Pai, demanda dos sujeitos o adiamento máximo de qualquer modalidade de gozo.

Outros são os termos quando tratamos da delimitação da ordem do capitalismo enquanto sociedade de consumo. A renúncia ao gozo não mais se configura como palavra de ordem, doravante, cada vez mais reduzida a um simples verbo. O imperativo próprio desta ordem social exige insistentemente que os sujeitos apenas gozem, que fruam o máximo possível das suas relações com os outros e com o mundo, que se curvem à injunção mantenedora da coesão social numa sociedade de consumo, expressa, então, por um mero “Goza!”. Facilmente vislumbramos o quanto um imperativo assim estruturado impulsiona uma sociedade a uma “plasticidade infinita da produção das possibilidades de escolha” (Safatle, 2004, p.127), pois, como próprio de uma lei sádica, toda e qualquer fixação a um objeto privilegiado é rejeitada. No entanto, como qualquer ordem social, esta injunção, caracteristicamente perversa, depende de uma encarnação imaginária que transmita as coordenadas para a inclusão do sujeito no laço. Eis aqui uma questão fulcral para nosso estudo.

Se no capitalismo de produção encontrávamos como representantes desta Lei, figuras socialmente reconhecidas como a do pai, do chefe, do líder e do ditador, por exemplo, na ordem contemporânea sofremos da “falta” desses suportes imaginários, com nefastos efeitos, a despeito do que se poderia pensar, para potência de tal imperativo, como bem analisado por Christopher Lasch6 (1983).

Recorrendo àquele que primeiro esboçou uma sistematização dos processos de individualização baseado em identificações secundárias, a saber, Hegel, Zizek (2004) analisa a ideologia do multiculturalismo sob a ótica de uma expansão da dominação do capital. O valor de tal reflexão para a presente empreitada está na deflagração do lugar deste Outro imaginário enquanto assumido pelo próprio Capital, universal morto, vazio de substância, formal, que se configura numa instância não vinculante. Escamoteando a falta de um significante que organize o discurso social, os sujeitos passam a identificar-se com o que de mais primordial encontram em si, sejam suas raízes étnicas, seja, no caso da experiência propiciada pela tela do cinema ou da TV, sua imagem corporal7.

De um laço social perverso como o aqui caracterizado, decorrem diversas conseqüências para a (im)possibilidade de um intercâmbio legítimo entre os sujeitos, este, condição essencial para a formação de uma memória. A primeira a ser vislumbrada diz respeito a um corolário extraído da noção de perversão, ou melhor, de fetichismo. Convocados a gozarem com cada produto, ou com suas imagens, que se intercalam a cada meio minuto na publicidade espetacular, os sujeitos, através de toda uma naturalização das significações, ou simplesmente de uma ideologia, levam consigo a crença de que, de alguma forma, possuem ali um meio de dominar o objeto causa de seu desejo. Esta crença tem sua gênese num processo denegatório da sua dependência em relação a um outro, em outros termos, da sua castração. Não há aí o reconhecimento de uma falta, de uma ausência, de algo que estabeleça uma diferenciação mínima propiciadora da possibilidade de se subjetivar toda e qualquer diferença. O apagamento desta dimensão inviabiliza uma potencial troca, de vez que o próprio interesse no outro não se efetiva sem a consideração da existência de uma semelhança na diferença. Na horizontalidade absoluta dos fluxos imagéticos da sociedade espetacular não se criam as condições do estabelecimento de uma troca, seja na forma de diálogo, seja na própria simbolização inerente ao processo de pensamento.

Faz-se aqui necessária uma primeira articulação entre uma ordem como a aqui caracterizada e o fenômeno mesmo da memória.


Da (im)possibilidade de uma memória

Pode-se dizer que a memória é o registro no qual se permite retomar uma série de situações presenciadas ou ouvidas com grande interesse, objetos que nos foram caros em algum momento da vida ou que ainda são, ou mesmo, conforme Laplanche (1985), o enigma de alguma coisa cuja resposta acertamos ou permanece desconhecida. Os exemplos não param por aí. A memória nos remete a um tempo passado, “é ela quem nos dá alguma medida, tanto individual quanto coletiva, do fio do tempo, e estabelece uma consistente impressão de continuidade entre os infinitos instantes que compõem uma vida” (Kehl, 2009, p.127), é ela quem dá consistência imaginária ao tempo, sendo essencial para manter nosso sentimento de identidade ao longo da vida.

Quando lembramos, freqüentamos acontecimentos que já transcorreram no tempo e nos provocaram algum traço ou marca. O recurso à memória não se dá apenas quando deliberadamente nos esforçamos por recordar, ele se faz presente no próprio processo perceptivo em que os traços são misturados às percepções, momento em que há o reencontro com um objeto (Freud, 1925/2007). Mas não só. Pode ocorrer das lembranças invadirem o espaço de nossa consciência sem que nos demos por isso, o caso paradigmático é o de Proust quando saboreia as madeleines e é atravessado pelas reminiscências de um tempo perdido e singular. A essa modalidade de manifestação chamamos rememoração, sempre traz consigo uma situação definida e pessoalizada, nesse sentido são imagens menos socializadas, menos presas à ação presente e, portanto, mais distantes da atualização pela consciência, imagens semelhantes àquelas encontradas em nossas produções oníricas (Bosi, 1979/2006).

Para avançarmos frisemos novamente essa idéia: a rememoração só ocorre numa temporalidade distendida, quando o tempo em que ela dura não é mensurável e nem guiado por premências do campo da necessidade (Silva, 2009), quando, enfim, há duração. Voltamos a nos deparar com o modo de regulação do tempo na contemporaneidade como o destacamos mais acima.

Freud relaciona a percepção à memória antes mesmo de sua obra magna, “A interpretação dos sonhos”, e também nela. Podemos notar sempre um argumento que visa separar os registros de um e de outro. Para o autor, o sistema percepto-consciente (P-Cc) não poderia guardar traços mnêmicos independente de quais fossem, embora sua entrada se faça por aí, eles pertencem a outro registro psíquico. Maria Rita Kehl (2009) aponta que o papel do sistema P-Cc seria o de dirigir a atenção para os estímulos atuais, sendo assim, a atenção consciente bloquearia as funções da rememoração, vigiando constantemente seu próprio funcionamento, ou seja, não só o recalque, mas a própria consciência quando extremamente solicitada impede a ligação com as marcas mnêmicas, servindo-se delas apenas na medida em que são úteis ao reconhecimento dos objetos percebidos e só. Neste registro, da consciência, a temporalidade é, no limite, a do puro instante presente, momento em que aparato psíquico não repousa, em que o que se dá é da ordem da vivência. Assim, não há formação de uma memória, a história de vida vai sendo formada por índices demasiadamente dessubjetivados.

Quando a memória influi ativamente no processo perceptivo, esse deixa de ser um mero contato com o mundo externo e “se torna tingido pelo desejo” (Mezan, 1998, p.272), isso porque o que está em jogo é o reencontro de um objeto que já provocou satisfações (Freud, 1925/2007). As ofertas de imagem de gozo junto ao imperativo para que se “goze neste instante” impedem esse atravessamento do desejo. A atenção é capturada pelos movimentos, cores e rapidez das mensagens publicitárias, não há experiência a se comunicar a um outro, não há uma temporalidade alargada; fica-se com uma determinada marca de produto, uma ilusão de domínio do objeto e, eventualmente, um slogan.

Ponto interessante apresentado por Kehl é de que o fluxo de imagens apresentadas promovem ao expectador microfragmentos de gozo e com eles cessa o pensamento. Ela segue destacando que (Bucci & Kehl, 2004, p. 101) “a proposta platônica é de que o pensamento se dá num diálogo interno com o outro, ou seja: se dá no contato com a diferença representada pelo outro, que evidencia a falta no sujeito e instaura a dúvida”. A sociedade de consumo contemporânea aplaina as diferenças, ou melhor, cria dispositivos para negá-las. O outro não possui estatuto de alteridade, não é um interlocutor porque não há o que possa me oferecer. Eu também não nada quero, pois o gozo não incide apenas no pensamento, ele estabelece uma cessação do desejo quando promove descargas sem que haja tensão.

Assim, a possibilidade de que experiências sejam transmitidas, e possam ser assim consideradas, é escassa. Os segundos vão passando, vão se somando em minutos e é mister aproveitar o tempo com alguma forma de lazer, nada de tédio. Essa lógica da regulação do tempo que já nos espoliou alguns momentos que seriam dignos de se lembrar, porque privilegiou o instante da percepção e o registro da vivência, é avessa também à narrativa e, nesse sentido, a troca com um outro. Éclea Bosi (1979/ 2006) nos traz um exemplo importante, ela argumenta que os idosos têm coisas a serem contadas e compartilhadas, mas que seus conselhos não são ouvidos pelos mais novos, eles se aborrecem com a lentidão, pedem que eles se apressem, acertem o passo com os seus, mas ao tentar sincronizar o ritmo a voz fica ofegante e o velho se vê privado de sua função social e da experiência de narrar uma história. Benjamim já notava que o tédio era necessário para que houvesse disposição psíquica para a narrativa, assim como percebia que dar conselhos se tornava cada vez mais antiquado, porque as experiências estavam deixando de ser comunicáveis. A relação entre narrador e ouvinte que se pauta por um interesse em conservar o que é narrado dificilmente se estabelece hoje em dia. É preciso que tenhamos tempo para isso.


Uma memória
prêt-à-porter

Configuradas as condições e (im)possiblidades para a tessitura de uma memória numa ordem social como a contemporânea, encontra-se aberta a senda em direção à consideração de alguns comentários sobre o estatuto de uma memória presente numa atração como o “Vídeo-show”.

Imersa, como já dito, no cerne de um meio denegador de qualquer traço referente a uma relativização histórica de sua expressão, a saber, a televisão, tal programa, como o entendemos, traz em seu projeto a tentativa de arranjo de uma constelação de saberes que teriam como efeito algo muito próximo ao encontrado na memória benjaminiana, ou seja, a inserção de sentido, de ‘colorido’ a uma experiência, que, no entanto, seria aqui restrita àquela própria da posição de espectador.

Uma primeira consideração poderia ser levada em direção ao paradoxo existente em uma “atração” televisiva, portanto, dada ao gozo dos sujeitos, almejar a formação de uma rede de registros mnêmicos. Embora seja uma via digna de reconhecimento, precisaríamos de uma série de articulações, que extrapolam a intenção deste estudo, para a expansão da lógica do desejo para além das imagens publicitárias. E mesmo que esta expansão se desse, a forma indireta como se coloca a questão do consumo da imagem neste âmbito, não excluiria, a nosso ver, a possibilidade de certo registro de experiência.

A rememoração, como já tratado, implica um processo no qual há a entrega do sujeito a séries de fluxos associativos que dotam, assim, sua experiência presente de maior amplitude de sentido. Encontra-se aqui, portanto, um papel central do sujeito na configuração de tal processo. E é justamente por este fato que não podemos tratar seja a narrativa, seja a rememoração hipnótica, como meras reproduções do passado, de vez que há toda sorte de presenças no momento de sua verbalização (Lacan, 1953/1998). Se Benjamin é categórico ao afirmar a não existência de um autor no momento da narrativa, é justamente por esta ser uma reatualização deste saber coletivo que é a tradição, que vem à luz no próprio momento da fala. Dois deslocamentos aqui premem por serem realizados ao tratarmos do programa Global.

Em se tratando de uma memória articulada sob a lógica da imagem, pode-se questionar a possibilidade de inscrição enquanto memória, pela absoluta falta de valor dialético deste meio, em outras palavras, pelo valor de verdade consagrado aos perceptos visuais em nossa sociedade. Como Benjamin (1936/1985) bem pontua, a experiência em sua articulação narrativa sofre um grave revés com o advento da noção de informação, que, como fato, dado, não propicia a inserção do sujeito na sua veiculação. O verbalizer se encontraria aqui despojado de qualquer traço polissêmico8.

Diferentemente do que acontece com a narrativa, onde aquele que ouve experiencia o narrado, encontrando-se, deste modo, apto a dar continuidade a tais fluxos narrativos, a memória dada a um telespectador não tem outra finalidade que não o de torná-lo um receptor mais dócil das imagens veiculadas em outras atrações da programação desta rede. Exterior ao sujeito, uma memória, que bem podemos definir como prêt-à-porter, não incrusta marcas duradouras naqueles que dela usufruem. Tão certa de seu prazo final quanto das atrações por ela tratadas, uma memória regida pelos ditames de uma sociedade de consumo não pode configurar-se senão em um meio de dominação, de alienação dos sujeitos da possibilidade de criação de estratégias transformadoras da ordem social existente.


Certos da necessidade de uma empreitada mais detida para a melhor delimitação dos fenômenos aqui tratados, limitamo-nos ao reconhecimento de que uma memória entregue à lógica imagética espetacular certamente se constituirá, para aqueles que de certa forma “participam” dela, e com profundos efeitos no experienciar de suas vidas, em uma memória in-significante.

Referências

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1Aluno do curso de Licenciatura do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – joaofelipetc@hotmail.com
2Aluno do curso de Licenciatura do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – rafaelr@usp.br
3Traduzido por “multi-tarefas”, esta função, oriunda do universo dos computadores, tem ganhado cada vez mais lugar em outros aparatos tecnológicos (p.ex. celular e televisão), assim como relevância para o uso destes.
4A durée, ou duração, é a propriedade “que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantemente” (BERGSON, 2006, p.51) No entanto, no registro do mero instantâneo, da necessidade, da matéria, tal processo fica inativo.
5Um diagnóstico como este não quer, de modo algum, dizer que todos aqueles que constituem uma dada sociedade terão sua estrutura subjetiva determinada reflexivamente pela estrutura social, e sim, no caso presente, que as “idéias sócio-culturais responsáveis por processos de socialização baseados em identificações tenderão a produzir estruturas libidinais neuróticas” (SAFATLE, 2004, p.125)
6Em “A cultura do narcisismo”, Lasch (1983) lança mão da idéia de que numa sociedade onde as bases da instituição familiar se encontram cada vez mais instáveis, os sujeitos, carentes de modelos de identificação secundária, ficam à mercê de suas fantasias primordiais. A despeito das potenciais críticas à obra, apenas salientamos este ponto que pode bem ser traduzido em “lacanês” por: numa sociedade onde não há posição para a versão imaginária do Pai, encontra-se à mercê desta entidade aterrorizante, numinosa em que se configura sua versão Real.
7Acerca deste processo na esfera da TV, podemos citar Marilena Chauí (2004, p.8), que comentando Kehl nos escreve: “a tela da televisão não oferece modelos a imitar, mas se oferece como espelho no qual acreditamos estar refletida nossa própria imagem.”. Na esfera do cinema remetemos às análises de Jean Baudry (1970) e Christian Metz (1979), presentes em “A experiência do cinema” (Xavier, 2003).
8Ao comentar a fala como o meio próprio em que se insere o trabalho analítico, Lacan (1953/1998), após criticar a concepção de fala tributária de uma tradição que a entende como mero flatus vocis, se utiliza de uma ambigüidade presente na língua francesa para especificar sua posição. Verbalizer pode tanto significar verbalizar quanto autuar.