Para uma genealogia do superego: contribuições da reflexão freudiana da cultura

For a genealogy of the superego: contribuitions of the freudian reflection of culture


Maria Vilela Pinto Nakasu

marianakasu@hotmail.com

Universidade de São Paulo



RESUMO

O objetivo da presente pesquisa foi oferecer respostas, sob a ótica de mulheres divorciadas ou que estão em processo de divórcio, à pergunta: quais motivos levaram à separação do casal? Para tanto, consideramos necessário saber também dos motivos que levaram ao casamento – em que circunstâncias se deu, quais foram seus frutos – e conhecer aspectos da história das entrevistadas. Estes dados foram colhidos por meio de entrevistas semi-estruturadas com quatro mulheres, gravadas com o consentimento das entrevistadas. Partimos da hipótese, baseada em literatura sobre o tema no campo da Psicanálise de Casal e Família, de que as motivações que levam as pessoas a se casarem e se divorciarem são, ao menos em parte, inconscientes. Por isto, é difícil apontar com clareza as causas de separação, mas identificamos, através das falas destas mulheres, dinâmicas no casal que parecem ter contribuído para o insucesso do matrimônio. Além das particularidades de cada história, todas as mulheres apresentaram-se como “batalhadoras”, “como as que fazem tudo”, enquanto os homens foram criticados por elas como sendo mais preocupados consigo mesmo do que com a família. Pretendemos continuar a pesquisa entrevistando homens divorciados ou em processo de divórcio.

Palavras-Chave: psicanálise; superego; culpa; cultura; metapsicologia.



ABSTRACT

In The Ego and the Id (Freud, 1923/1989) the superego is considered heir to the Oedipus complex and to the id. The analysis of culture holds that Freud seems to significantly expand this definition. The operations of personification of the superego in culture, exemplifying the critical instance in mythical figures, as merited by the new cultural phenomena to the concept of superego seem to result in expansion of its meaning. The cultural sphere is within the scope of this work, considered capital in the drafting of the Freudian superego. This ball and anticipates its major outlines mechanisms and serves as a magnifier of some invisible psychic operations from the perspective of individual psychological factors.

Key-Words: psychoanalysis; superego; guilt; culture; metapsychology.



Somos “vividos” por poderes ignotos {unbekannt}, ingovernáveis
(Groddeck, 1969).

A concepção de superego adquire com O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010) novos contornos. Da reflexão freudiana sobre o desenvolvimento da ciência e da técnica como formas de controlar a natureza resulta a opinião acerca do descontentamento do homem com o estado de cultura e do desenvolvimento cultural como um importante ingrediente na limitação da liberdade humana. Após assumir que a renúncia pulsional exigida pela cultura torna o homem infeliz, Freud (1930/2010) conclui ser a pulsão de morte o maior obstáculo enfrentado pela civilização. O superego é, com efeito, situado como o principal parceiro da civilização na luta contra a pulsão de morte e, nesse momento, tem-se a impressão de que Freud “aplica” o conceito metapsicológico de superego ao domínio da cultura. No entanto, a reflexão cultural apresentada em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010) parece contribuir com a reflexão metapsicológica, e a concepção de superego, com efeito, parece se alongar com as contribuições deste trabalho.

O conceito de superego é introduzido em  El yo y el ello (Freud, 1923/1989) e situado, ao lado do id e do ego, como a instância moral da personalidade, herdeiro do complexo de Édipo e representante das leis e dos ideais do sujeito. Na verdade, o superego, em sua face ideal, impõe ao eu modelos de conduta e, em sua face legisladora, obriga o eu a segui-los, podendo retaliá-lo mediante severas punições. Além de se originar da identificação com a instância parental e representar esta instância frente ao ego, o superego está em contato direto com as pulsões de morte, descende das primitivas identificações do id. O que confere ao superego seu caráter rígido e severo é justamente sua gênese, baseada nas identificações que, por implicarem a desfusão pulsional, liberam pulsões de morte sobre o superego. Além disso, para operar, o psiquismo precisa sujeitar as pulsões de morte e o saldo mortífero desta sujeição resulta no incremento da agressividade superegóica.

O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010) confere ao superego um alcance muito maior do que aquele conferido pelos textos anteriores. Freud reconhece que a cultura exige que a agressão seja introjetada e interiorizada, agressão que, por sua vez, é enviada ao superego, produzindo o sentimento de culpa. O sentimento de culpa, considerado responsável pelo controle que a cultura exerce sobre o indivíduo, une a discussão cultural à discussão metapsicológica. A passagem de uma discussão à outra se dá, mais precisamente, no momento em que Freud se interroga sobre a gênese desse sentimento. Daí em diante, o autor empreende uma longa discussão que atravessa de ponta a ponta a teoria do Édipo e a teoria das pulsões e na qual dois tempos são pensados: antes e depois do complexo edipiano, antes e depois da edificação do superego ( Freud, 1930/2010).

No texto sobre o mal-estar do homem moderno Freud introduz uma nova explicação para a gênese do superego baseando-se na relação de dependência da criança com os pais, relação que seria, após o declínio do Édipo, transposta para a relação de dependência do ego junto ao superego 1. Em seguida, Freud diferencia consciência moral, de sentimento de culpa, de necessidade de castigo e de arrependimento de maneira sucinta. Ele atribui à consciência moral a face agressiva e rude do superego. Sentimento de culpa é a tensão vivida pelo ego diante das exigências superegóicas e necessidade de castigo é a forma pela qual o sentimento de culpa é exteriorizado ( Freud, 1930/2010).Esse momento do texto marca, por assim dizer, o ponto alto da discussão metapsicológica em torno da noção de superego. A discussão é francamente teórica em um texto que parte, inicialmente, de teses a respeito da sustentabilidade da cultura diante das ameaças das pulsões de morte. O movimento ao qual chamamos atenção é, precisamente, este: da teoria da cultura para a metapsicologia.

Tal movimento, da análise da cultura para a elaboração da concepção metapsicológica de superego, aqui identificado em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), não revela somente um aspecto retórico ou estilístico da obra de Freud, mas aponta para uma questão de ordem epistemológica extremamente relevante, que diz respeito às contribuições da reflexão cultural para a elaboração das concepções metapsicógicas. Não há dúvidas de que a clínica é o terreno privilegiado para o desenvolvimento da metapsicologia, no entanto, ela não é o único campo indutor e produtor de conceitos. As reflexões metapsicológica e cultural parecem caminhar juntas e se influenciar mutuamente. A discussão aqui realizada a respeito da concepção de superego se propõe a valorizar a concepção freudiana de cultura e retirá-la do lugar de mera aplicação das teses metapsicológicas ou da “psicanálise aplicada”. As formulações sobre a cultura parecem portar a mesma legitimidade das construções clínicas como fornecedoras de material concreto ao empenho de Freud em tornar verossímeis suas construções teóricas. Por isso, parecem participar significativamente do processo de elaboração da concepção de superego.

Isto dito, este trabalho se propõe a sustentar a ideia segundo a qual a noção metapsicológica de superego é tributária da reflexão freudiana sobre a cultura. Três textos serão trabalhados  Tótem y tabú.  (Freud, 1913/1989),  El humor (Freud, 1927/1989) e O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010). No primeiro texto serão apontados os germes do conceito de superego por meio da análise do tabu. Na discussão de  El humor (Freud, 19271989) serão examinadas as teses que evidenciam um lado amável do superego junto ao ego e, finalmente, em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010) serão apontados os acréscimos que tornam o conceito de superego mais amplo e rico. Ao fim e ao cabo, acredita-se ter elementos para sustentar que, em se tratando da concepção de superego, a reflexão freudiana da cultura parece agregar sentidos.


Análise do tabu: germes do superego

Uma visão panorâmica da história do superego mostra que, aos poucos, o conceito metapsicológico sai do campo dos efeitos patológicos que a esfera clínica põe em evidência para entrar, com O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), definitivamente no campo da cultura; definitivamente, pois parte do esforço de  Psicología de las massas y análisis del yo (Freud, 1921/1989) consiste justamente em esclarecer de que forma o ideal de ego pode ser pensado no estabelecimento do laço social. Ora, com O mal-estar na civilização (Freud, 1930/ 2010) o superego deixa de ser apenas uma formação herdeira do complexo de Édipo e responsável pela renúncia que o ego deve fazer das pulsões, ele se torna um dos principais agentes responsáveis pelo equilíbrio energético/pulsional do homem em estado de civilização. Mais precisamente, a instância crítica torna-se a condição de possibilidade para que o “caos” não se instale na sociedade, para que a pulsão de morte não seja exteriorizada de forma irrestrita, colocando em risco as instituições e os vínculos recíprocos entre os homens. Entre a publicação de  El yo y el ello (Freud, 1923/1989),  El problema económico del masoquismo (Freud, 1924/1989) e O mal-estar na civilização(Freud, 1930/2010) parece haver um certo deslocamento do conceito, antes restrito à relação entre aparelho psíquico e produção sintomática, para a relação entre aparelhos psíquicos e equilíbrio pulsional da cultura. O superego desloca-se para um plano macro no qual é pensado como um dispositivo regulador da destrutividade humana.

Uma objeção poderia ser feita nesse sentido:  Tótem y tabú.(Freud, 1913/1989)não anuncia justamente isso? Que a consciência moral impõe as restrições ao sujeito e o obriga a seguir as normas? Que dela depende a ordem? Que ela institui a lei? De certo modo sim.  Tótem y tabú.inaugura um movimento no processo de teorização do superego no qual o nascimento da moral está vinculado a um acontecimento histórico.

Em  Tótem y tabú.(Freud, 1913/1989), a instância interna ao sujeito deve ser responsável pela renúncia que este deve fazer de sua agressividade. Os alicerces da noção de superego encontram-se no texto antropológico na medida em que lançar luz sobre o tabu resulta no esclarecimento da consciência moral. A afirmação de Freud (1913/1989) que a análise do tabu pode esclarecer o “imperativo categórico”, isto é, a consciência moral, aponta justamente para um traço da investigação freudiana que insistimos em sublinhar, a saber, a utilização da análise de fatos da cultura como matéria-prima na elaboração e fundamentação de alguns conceitos metapsicológicos. Aqui, um conceito extraído da esfera cultural – o tabu – é pensado como meio para a elucidação de um fenômeno psíquico. É nesse sentido que compreendemos a afirmação de Mezan (1997, p. 546): “Comparar a Psicologia dos Povos, segundo a antropologia social, com a psicologia dos neuróticos, revelada pela psicanálise para lançar luz em pontos obscuros das duas ciências; esta é a meta de  Tótem y tabú.(1913)”.

Com relação ao “imperativo categórico”, termo utilizado por Freud para designar a consciência moral, parece estar implícita a ideia de um dever que vale para todas as ações morais, que é imperativo e, portanto, não admite dúvidas. O “imperativo categórico” kantiano designa uma lei moral interiorizada que se submete às máximas morais 2. Não se trata, aqui, de aprofundar a discussão a respeito das máximas morais, mas apenas sublinhar que o que é interiorizado é um dever em que toda ação deve estar em conformidade com fins morais. Poderíamos supor que, da mesma forma que o tabu se baseia em leis internas e utiliza meios internos de punição, o “imperativo categórico”, no sentido anunciado por Freud, existiria fundamentalmente no registro interno como dever imperativo, como dever diante de certas leis internas que, uma vez violadas, resultam em uma punição, mais uma vez no registro interno 3. Nas palavras de Freud, existiria “algo interno assegurador” que faria o homem prescindir da ameaça externa de castigo. Ele diz: “Não há ameaça externa de castigo porque existe algo interno assegurador – uma consciência moral; é que a violação levaria a uma desgraça insuportável” (Freud, 1913, p. 37). Entre os obsessivos, estaria presente uma certeza interna de que a violação de uma ordem emitida pela consciência levaria a uma desgraça insuportável. Tanto no caso do tabu como no caso da neurose obsessiva, violar seria equivalente a realizar impulsos tidos como proibidos.

De que impulsos se trata? Sobretudo dos impulsos marcados pelo signo da destrutividade. Como sugere Gabbi Jr. (1991), Freud situa o desejo de morte no cerne da produção do sentimento de culpa.

A realização ou não de desejo é acompanhada de um sentimento de culpa como se, em algum sentido, fôssemos sempre responsáveis pela sua realização. O que também testemunharia a favor da presença da ambivalência emocional, ou seja, haveria um desejo consciente que se opõe a outro, inconsciente. …  Ora, que desejo é esse? O texto mais uma vez insinuou que ele é da ordem de um desejo de morte contra aquele que se relaciona de alguma maneira com o pai da vida infantil (Gabbi, Jr , 1991, p. 146).

Porém, a inibição da agressividade em  Tótem y tabú. (Freud, 1913/1989)é consequência direta do parricídio, do “ato inaugural” da sociedade, e limita-se à agressividade que foi atuada. Em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), diferentemente, o superego inibe a pulsão de morte não por um fato histórico anterior – o parricídio -, mas devido às condições intrínsecas ao próprio funcionamento do psiquismo, isto é, ao fato de o aparelho ser obrigado a metabolizar uma energia inata e inerente ao ser humano, e pelo fato de o superego colocar-se a serviço das exigências culturais e da sobrevivência da cultura. Em 1913, Freud não havia formulado o conceito de superego, nem tampouco a ideia de que o aparelho psíquico é confrontado com a tarefa de escoar parte da pulsão mortífera para fora e destinar a parcela que sobrou para uma instância psíquica encarregada de representar as leis e os ideais. Neste momento da produção freudiana temos apenas a elaboração de uma hipótese que coloca o ódio parricida em evidência.

No entanto, sabe-se  que, em  Tótem y tabú. (Freud, 1913/1989), a consciência moral entra na mesma categoria das “formações reativas” e o tabu é considerado uma formação desta ordem, destinado a impedir a realização de atos intensamente e inconscientemente desejados 4. A ideia de que a consciência moral emite ordens ao sujeito nos remete a uma relação de exterioridade em relação ao ego, o que antecipa a tese tópica que separa ego de superego. Ao afirmar que a consciência moral “está certa de si mesma” (p.33). Freud dá indícios de sua independência em relação a outras formações psíquicas – a consciência moral não precisa de nenhuma autorização para agir, o que nos remete diretamente à tirânica relação que o superego estabelecerá junto ao ego. Além disso, pensar que a consciência moral “está certa de si mesma” nos reporta à contundência das ordens e reprovações emitidas pelo superego, no sentido de que a certeza sobre a qual ele se apoia-se não precisa estar vinculada a nada, como se ela se bastasse por si mesma. Nota-se, deste modo, a partir do exame de um fenômeno cultural, o tabu, a elaboração de teses cruciais que, em 1923, irão embasar a teoria do superego e os aspectos de sua relação com o ego.


A face amável do superego no humor

O humor já havia sido alvo da atenção freudiana em  El chiste y su relación con lo inconciente (Freud, 1905/1989) integrando, ao lado do cômico e do chiste, formas de produção de prazer derivadas de uma economia na despesa psíquica.  El chiste y su relación con lo inconciente (Freud, 1905/1989) opera a passagem da análise do indivíduo para a análise da cultura, do registro individual para o registro coletivo, e generaliza o método da interpretação dos sonhos para a análise dos chistes. Por que os chistes e o humor são fenômenos culturais, segundo Freud? Porque se destinam a ser comunicados. Retomando as premissas de El chiste y su relación con lo inconciente (Freud, 1905/1989) da ótica do novo quadro estrutural da psique, Freud, em  El humor (Freud, 1927/1989) apresenta um tipo de relação do superego com o ego amável e carinhosa. Inaugura, mediante a análise do humor, uma face do superego até então inédita e, assim, inverte um movimento no processo de teorização do conceito centrado no seu caráter severo e punitivo. O trabalho sobre o masoquismo mostra que a elaboração do superego não se esgota no ano de sua introdução, em 1923. Em  El humor (Freud, 1927/1989) essa ideia é explicitada: “Se é de fato ao superego que o humor fala de maneira carinhosa e consoladora ao ego amedrontado, isso nos adverte para o fato de que temos, todavia, que aprender muito da essência do superego” (Freud,  1927, p. 162). O que o texto nos ensina sobre a essência desta instância crítica é seu poder de imobilizar as reações do ego para rechaçar a realidade e servir a uma ilusão.

Na atitude humorística estariam presentes grandes deslocamentos de investimento do ego para o superego. A pessoa do humorista retiraria o acento psíquico de seu ego e o transferiria sobre seu superego que, crescido, passaria a olhar os interesses do ego como pequenos e insignificantes 5. Assim como o adulto ri da pequenez dos interesses e sofrimentos que parecem grandes a uma criança, o humorista se comportaria frente a ele próprio rindo de suas mazelas 6. Sua atitude diante da realidade é de superioridade, pois reconhece a própria pequenez frente à grandeza dos interesses do universo e ri dela. A superioridade em questão seria obtida pelo gesto do superego em imobilizar as reações egóicas, obrigando o ego a recusar o contato com o mundo exterior. A um só tempo o superego consola o ego e o salva do sofrimento; evita a liberação de afetos penosos e favorece o “triunfo do narcisismo”. Intocado, o ego obtém uma pequena dose de prazer oriunda da evitação do aparelho frente aos afetos desprazerosos e da liberação desses afetos pela via da descarga motora 7. É nesse contexto que compreendemos a formulação segundo a qual o humor não é resignado, mas rebelde, “não só significa o triunfo do ego, mas também o do princípio de prazer, capaz de afirmar-se apesar do desfavorável das circunstâncias reais” (Freud, 1927, p. 159).

Freud propõe que, ao assumir o papel do adulto reduzindo o seu público ao estatuto infantil, o humorista deverá “identificar-se até certo ponto com o pai” (Freud, 1927, p. 160). Concordando com Kupermann (2003), o complexo paterno, central na problemática do superego, é igualmente central na problemática do humor. Diante das duas faces do superego – interditora e ideal – é para a segunda que devemos olhar agora. No fenômeno do humor, o pai em questão parece ser menos o pai severo e punitivo espelhado no chefe da horda, e mais o pai-instância-ideal que possibilita ao ego desfrutar de uma dose de prazer pela desconsideração dos afetos desprazerosos e pela retirada de investimento dele para o ideal de ego. Ao identificar-se “até certo ponto com o pai, o sujeito poderá uma vez mais brincar ‘de adulto’, isto é, recriar e investir permanentemente seu próprio ideal do ego, sem confundir o seu eu do presente com a totalidade das potencialidades de sua existência” (Kupermann, 2003, p. 121). Investir o ideal de ego é diferente de promover a identificação narcísica do ego portadora da ilusão de completude pela negação da realidade.

A tensão entre o ego e o superego que aparece como sentimento de culpa é, desde “Psicologia das massas e análise do ego” (Freud, 1921/1989), fruto do descompasso entre o ego real e o ideal de ego. Se no humor o ideal de ego é superinvestido e a realidade, rechaçada, compreendemos porque o superego mostra-se amável com o ego: ele não o compara a nenhuma instância real, inexiste descompasso entre o que o ego é e aquilo que ele almeja ser. O humor seria, então, o avesso do sentimento de culpa? Talvez. Além de resultar de uma relação amigável entre as duas instâncias e, portanto, isenta de tensão, ele deriva de uma operação psíquica na qual o ego está protegido do contato com o sofrimento que a realidade aporta. Entretanto, cabe observar que no humor a realidade é rechaçada, mas não negada. O humor não é alheio à realidade, não cria um mundo próprio, mas, estando em íntima conexão com a realidade, reajusta os elementos do mundo de um modo prazeroso 8. Aos olhos de Freud, o humorista é uma figura invejável dada sua capacidade de reconhecer e rir de sua pequenez frente à grandeza dos interesses do universo.

A que ilusão o superego serve na atitude humorística? Se a ilusão é a crença motivada pela realização de um desejo, como lemos em O futuro de uma ilusão (Freud, 1927/2010), ao rechaçar a realidade o superego estaria servindo à qual ilusão? Enriquez (1996) sugere que toda ilusão origina-se do amor pelo onipotente, pelo pai, de quem cada indivíduo sente nostalgia. É tributária do amor por um ideal por meio do qual o indivíduo negaria sua própria impotência 9. A ilusão, por definição, não reside na satisfação de um desejo. Seu propósito é obter de seus objetos os mesmos estímulos gerados se os objetos estivessem presentes, mas enquanto objeto de desejo. Ao servir a uma ilusão, o superego parece realizar o desejo de proteção e amparo que ela é capaz de aportar ao sujeito sem permitir, contudo, a identificação narcísica do ego com o pai onipotente que ilusoriamente garantiria a imortalidade para o ego ameaçado.

A atitude humorística de reconhecer e rir de sua própria pequenez é contraditória com um superego que se apoiaria em uma ilusão? Afinal, o humorista leva ou não leva a sério a realidade? Loureiro (2002) sustenta que o sujeito é indiferente à realidade na ilusão: o desejo inerente à ilusão não se desconecta da realidade nem a reconstrói pela onipotência do pensamento, como faz o delírio 10. O humorista tem consciência das mazelas e do desamparo sentidos pelo seu ego mas age com indiferença. Ao invés de se queixar, como, segundo Freud, faria o melancólico, ele brinca com a situação impedindo o contato do ego com a dureza da vida. É como se o superego, a um só tempo, desconsiderasse as queixas feitas pelo ego diante da dureza que a realidade aporta e propiciasse, como na economia do gracejo, a liberação de prazer pela suspensão do contato com um afeto desprazeroso. Isso parece explicar em que sentido o superego serve a uma ilusão; sem ela, o riso não poderia advir, apenas um choro resignado em que o sujeito mostraria em forma de lamento sua insignificância diante da imensidão do universo.


Superego aliado da cultura

Três anos após examinar o humor, Freud redige O mal-estar na civilização (1930/2010), que retoma as teses de  El yo y el ello (Freud, 1923/1989). Neste texto, Freud introduz a segunda tópica e tece relações entre as instâncias id, ego e superego e as duas classes de pulsões: pulsões de vida e pulsões de morte. Um ano depois, em  El problema económico del masoquismo (1924/1989), Freud dá mais um passo na teorização do superego, assume o incremento da severidade do superego como algo inevitável, posto que um dos meios de que o aparelho psíquico dispõe para metabolizar a pulsão de morte é sua reversão para a própria pessoa. A discussão se dá no nível individual e se restringe às operações internas ao psiquismo responsáveis por seu equilíbrio energético. O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), no entanto, transpõe essa equação para outro âmbito e favorece uma espécie de deslocamento: do sujeito às voltas com as operações de seu psiquismo para o sujeito em sua relação com as exigências culturais.

Não se fala mais em sobrevivência do aparelho psíquico, em suas formas de regulação, mas em sobrevivência da cultura. Num caso, o aparelho evita a “pane” metabolizando a pulsão de morte pelo aumento da severidade da consciência moral; o superego assimila a destrutividade que colocara em risco o psiquismo. No outro caso, a pulsão de morte é submetida ao regime de civilização: a cultura garante sua sobrevivência reintrojetando a principal fração da pulsão de morte e enviando-a ao superego, favorecendo, assim, o aumento da agressividade que ele exercerá contra o ego e a produção do sentimento de culpa 11. Em uma frase que se tornou célebre essa equação é anunciada em uma linguagem militar: “A cultura extingue o perigoso prazer agressivo do indivíduo debilitando-o, desarmando-o e vigiando-o mediante uma instância situada em seu interior, como se fosse uma guarnição militar em uma cidade conquistada” (Freud, 1930/2010, p. 119). O superego assume a agressividade em nome da manutenção da cultura. Por isso ele é considerado uma formação a serviço de Eros 12.

Marcuse (1972) assinala, a esse respeito, que o superego pode se colocar igualmente a serviço das pulsões de morte:

Para consolidar e proteger a unidade do ego o superego o dirige contra seu id, desviando parte dos instintos de destruição contra uma parte da personalidade – destruindo, ‘fragmentando’ a unidade da personalidade como um todo; assim, atua a serviço do antagonista do instinto de vida (Marcuse, 1972, p. 64).

Ao que parece, a destruição e fragmentação da personalidade à qual se refere Marcuse é menos a dissolução ou morte do ego e mais a crueldade com que a instância crítica trata o ego, bem como a angústia sentida por ele e vivida pelo sujeito como necessidade de punição. Sobre as relações entre o superego e as pulsões de morte, Freud observa na 32a das  Nuevas Conferências de introducción al psicoanálisis.  (Freud, 1933/1989)que talvez não seja toda agressividade que retornou do mundo externo que é ligada pelo superego e, por conseguinte, voltada contra o ego. Ele supõe que uma parte sua exerce sua atividade muda e sinistra, sob a forma de instinto destrutivo livre, no ego e no id 13.


Paradoxos do superego cultural

Um aspecto da contribuição da reflexão freudiana sobre a cultura para a teorização do superego que parece ser particularmente importante é este: a história dos conceitos de consciência moral e sentimento de culpa mostra que as expressões da instância crítica no nível coletivo são, muitas vezes, mais elucidativas do que suas expressões no campo da psicopatologia. No trajeto que culmina na teorização do superego, Freud se volta para os sintomas melancólicos, que apontam uma divisão no psiquismo entre ego crítico e o ego alterado por identificação, e situa um traço constituinte do aparelho psíquico: a divisão ego/superego. Na esfera do funcionamento normal essa divisão não pôde ser identificada. O mesmo ocorre com os exemplos que nos brindam os estudos da neurose obsessiva, do sadismo e do masoquismo, da reação terapêutica negativa observada no espaço clínico e considerada um dos maiores obstáculos ao andamento da análise. Dito de outro modo, os efeitos da ação do superego no âmbito das neuroses de transferência e das neuroses narcísicas sempre se mostraram de difícil apreensão.

É de Albertín (2006) a afirmação segundo a qual “os sonhos punitivos, a necessidade de castigo, a necessidade de fracasso, e a reação terapêutica negativa no tratamento são testemunhas mudas das vicissitudes do superego” (p. 293). São numerosas as passagens na obra freudiana que exprimem incertezas e dúvidas em relação às funções desta instância crítica e suas formas de expressão. Tem-se sempre a impressão de que a consciência moral é um tema espinhoso para o fundador da psicanálise.

No contexto desta discussão, a seguinte afirmação de Freud em O mal-estar na civilização (1930/2010) adquire sentido. Referindo-se às severas exigências ideais cujo não-cumprimento resulta em castigo, ele afirma:

Se produz aqui o fato assombroso de que os processos psíquicos correspondentes – as exigências são mais familiares e acessíveis à consciência visto do lado da massa que do lado do indivíduo. Neste último, só as agressões do superego em caso de tensão se tornam audíveis como acusações, enquanto as exigências mesmas permanecem inconscientes. Se são levadas ao conhecimento consciente, se demonstra que coincidem com os preceitos do superego da cultura respectiva. Neste ponto os dois processos, o do desenvolvimento cultural da massa e do próprio indivíduo, podem andar juntos, por assim dizer. Por isso inúmeras exteriorizações e propriedades do superego podem ser discernidas com maior facilidade em seu comportamento dentro da comunidade cultural que no indivíduo (Freud, 1930/2010, p. 109).

A noção de superego cultural parece revelar traços inéditos da instância crítica, antes teorizada em um nível individual. Nota-se, aqui, que a distinção entre superego cultural e superego individual é artificial, feita apenas para tornar mais claro alguns aspectos do superego. Ao assumir o superego cultural como uma instância que repousa sobre a impressão que deixaram grandes personalidades de liderança, o pai primordial e homens de força espiritual avassaladora e, ao afirmar que uma nação, um povo ou uma raça podem partilhar de um mesmo superego, Freud identifica ao menos dois pontos de concordância entre superego cultural e superego individual: a origem de ambos e a semelhança das exigências ideais, sempre severas, cujo não-cumprimento resulta em castigo da consciência moral.

Os superegos, individual e cultural, são similares, não equivalentes. Kaufman (2003) nota uma diferença em relação à origem do superego individual ao observar que, neste caso, os pais não são maltratados na maior parte das vezes, diferentemente das figuras que originariam o superego cultural. Ele diz: “Os grandes homens conhecem sempre um destino temível, seja o desprezo, a rejeição ou a eliminação. Em “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930/2010), Freud cita Jesus Cristo; em Moisés y la  religión monoteísta” ele irá elaborar uma hipótese da morte de Moisés pelo povo hebreu (citado por Kaufman, 2003, p. 417). O superego da cultura revelaria, portanto, traços no âmbito individual invisíveis porque inconscientes.

A hipótese do superego cultural divide com a hipótese filogenética a responsabilidade da transmissão da instância moral através das gerações. Se no primeiro caso, porém, é colocada a questão da transmissão biológica, genética, de esquemas herdados, explicando, em parte, a concepção de um superego como veículo da tradição;no segundo caso o que parece estar em jogo é uma transmissão de outra ordem, baseada inteiramente no mecanismo da identificação. O conceito de superego cultural favorece, em suma, que a cultura seja pensada, a um só tempo, como fenômeno herdado e palco no qual surgem as várias faces do superego, da ideal àquela produtora, no limite, de neurose, rebeldia e mal-estar.

Le Rider (2002) retoma uma opinião de Freud acerca do superego americano publicada por Ilse Grubrich-Simitis em Freud: retour aux manuscrits como parte do pósfácio que Freud escreveu em 1927 à Question  de análise leiga. Vale a pena reproduzi-la:

É incontestável que o nível de cultura geral e de receptividade intelectual, mesmo nas pessoas que freqüentaram uma escola americana, seja mais baixo que na Europa  …. O americano não tem tempo….Tudo que se desenvolve psiquicamente entre consciente e inconsciente possui suas condições temporais particulares que não combinam muito bem com a exigência americana. Não é possível, em três ou quatro meses, transformar um homem que até então não tenha compreendido nada com relação à analise em um analista capaz, é menos possível ainda, em um tempo tão curto, provocar em um neurótico modificações que possam restituir sua capacidade de trabalho e gozo ….. O superego americano parece ser menos severo em relação ao eu quando se trata daquilo que diz respeito ao lucro ( Le Rider, 2002, p. 110).

Este comentário ilustra o sentido de que a noção de superego da cultura parece se revestir para Freud. Trata-se de uma espécie de categoria que revela particularidades de um comportamento coletivo. Nesse comentário, tal noção é utilizada no plano macro e comparativo e parece auxiliá-lo a explicar o sentido de uma atitude que ele supõe ser homogênea entre os americanos.

Se o conceito de superego enriquece-se com as considerações do superego cultural não é sem reconhecer que no registro individual há, certamente, transmissão cultural. Nota-se que desde suas primeiras definições o superego é anunciado como portador das tradições. Porém, supor a existência de um superego da cultura não é senão reforçar a ideia de transmissão cultural em um panorama que inclui uma coletividade e não apenas um núcleo familiar. As impressões dos grandes líderes são comuns a um dado agrupamento social e imprimem uma marca que contribui para homogeneizar os padrões de comportamento e favorecer um sentimento de identidade entre as pessoas.

Assim como o superego cultural, o sentimento de culpa produzido pelo superego é melhor elucidado tendo em vista sua função cultural. A economia do sentimento de culpa, como observa Ricoeur (1965/1977), só aparece inteiramente após a necessidade de punição ser recolocada em uma perspectiva cultural, e assumida a ideia de que a civilização desarma a agressividade do indivíduo instalando um dispositivo-espião interno de controle e alerta. O caráter inconsciente da culpa ou sua manifestação como mal-estar e descontentamento são reportadas ao conflito de ambivalência, por sua vez enraizado no dualismo pulsional e atuado como amor e ódio. O jogo da ambivalência, próprio à situação edipiana, participa do jogo mais vasto entre as pulsões de vida e as pulsões de morte, e a explicação genética sobre a inevitabilidade do sentimento de culpa parece atenuar-se ao ser subordinada aos grandes conflitos culturais.

A família que serve de quadro cultural ao episódio edipiano não é ela própria senão uma figura da grande empresa de Eros de ligar e unir; conseqüentemente, o episódio edipiano não é a única via possível da instituição do remorso (Ricoeur, 1965/1977, p. 253).

Diferentemente da culpa individual que é empregada incansavelmente para anular um erro, a culpabilidade coletiva aparece como a condição da conversão da pulsão destrutiva em atividade de civilização.


Notas finais

Juntamente com a dimensão clínica, a dimensão cultural encontra-se na origem da formação do conceito de pulsão de morte. A hipótese filogenética amplia o lugar destinado à destrutividade na teoria freudiana e, por isso, influencia a introdução da pulsão de morte em 1920. É de maneira insuficiente que  Más allá del princípio de placer (Freud, 1920/1989)teoriza esse conceito. As contribuições da cultura oferecem uma demonstração suplementar dos efeitos desse grupo de pulsões. Após a virada de 1920, a cultura sobrepõe-se à clínica no que tange às contribuições que fornece à elaboração do conceito. Ela se torna o terreno privilegiado de ação das pulsões de morte e o solo sobre o qual serão identificados novos fenômenos que carregam o sinal da violência. Com isso, Freud amplia o campo de atuação das pulsões e torna mais fidedigna sua hipótese de trabalho.

O papel determinante que a esfera cultural assume na elaboração do conceito de pulsão de morte parece ser semelhante ao papel que assume na conceituação do superego. Na origem de ambos há uma fonte que é pulsional. No entanto, os dois conceitos se fazem presentes nas condições oferecidas pela cultura, no campo das relações humanas e sociais. A dimensão cultural amplia seus alcances, garantindo-lhes um estatuto universal. Se os fenômenos nos quais Freud identifica as pulsões de morte e o superego são passíveis de uma transcrição cultura, é pelo fato de se verificarem em todos os homens. Tal é a premissa sustentada em O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010), que, ao lado de Tótem e tabú (Freud, 1913/1989), é central na demonstração de nossa tese. O texto coloca as pulsões de morte, ao lado de Eros, como responsáveis pela regulação da vida do homem em estado de civilização. Muito embora sejam dotadas de um caráter desconstrutivo e operem no sentido da desunião e da desintegração, são fundamentais para a cultura como força geradora de conflitos, e como elemento que intervém no efeito “mortífero” que Eros pode produzir, por exemplo, quando se mantém no registro do mesmo.

A gênese do conceito de superego situa-se nas investigações clínica e cultural. A questão da moral é necessariamente uma questão cultural e é  Tótem y tabú (Freud, 1913/1989)que elabora uma explicação capaz de associar o fato inaugural da cultura e a edificação da lei e da moral ao complexo de Édipo, delimitando as bases da noção de superego. Após a introdução propriamente dita do conceito em 1923, O mal-estar na civilização (Freud, 1930/2010)alavanca seu processo de elaboração. O superego, considerado o agente de interiorização da cultura, é fundamental para a regulação da conduta humana e para a manutenção do equilíbrio da civilização. Assimila a pulsão de morte, evitando que uma grande parcela sua se exteriorize. Produz o sentimento de culpa, impedindo a satisfação imediata das pulsões. E é, a um só tempo, instância psíquica e formação coletiva.

Não são senão os efeitos patológicos do superego que a esfera clínica põe em evidência: seu traço impiedoso na melancolia, a culpa na neurose obsessiva, o masoquismo moral, a necessidade de castigo observada na clínica, etc. A cultura encarrega-se de mostrar seus efeitos na esfera coletiva: nas formações grupais evidencia-se o lado ideal do superego, nas religiões soma-se o lado “legislador” e “protetor” e os efeitos positivos do superego, como a afabilidade com o ego no caso das “exceções”. Cabe observar que a cultura não mostra somente em nível macro os mesmos processos identificados no âmbito do psiquismo individual. Em outros termos, o plano cultural não é somente análogo ao plano individual ou elucidado mediante uma transposição de categorias forjadas no plano individual. A cultura vai além de um campo privilegiado de ilustração e exemplificação das concepções examinadas.

Seria errônio supor, por exemplo, que a noção de fantasia – que influenciou a concepção freudiana de estética e esclareceu as bases do conceito de sublimação – deve-se tão-somente às observações clínicas e à auto-análise de Freud. Ou em afirmar que as formas pelas quais o superego aparece objetivado na cultura são formas de ilustração das teses freudianas em nível macro. Do mesmo modo, seria simplificar demasiado o corpo de princípios psicanalíticos sustentar que os grandes líderes e o modo pelo qual o ideal de ego é projetado neles equivale à noção de superego, definido em termos tópicos e econômicos, “aplicado à cultura”. O superego não ilustra o mito de  Tótem y tabú (Freud, 1913/1989),mas depende das premissas desse mito para ser concebido. A concepção de superego cultural não transpõe para o plano macro as hipóteses do superego individual, mas revelam outros aspectos da instância crítica não identificados na sua expressão individual.

Talvez se possa arriscar uma hipótese e afirmar que a cultura exprime as duas faces do superego, a face exigente/ideal e a face censora, ao passo que as manifestações individuais – patológicas ou não – parecem exprimir fundamentalmente a segunda face: a face crítica ou condenatória. No âmbito das neuroses e do funcionamento psíquico normal, a instância crítica parece ser revelada em momentos precisos nos quais a severidade do superego é incrementada e sobre o eu é depositada uma grande quota de destrutividade: nos sintomas obsessivos e melancólicos, nas perversões sádicas e masoquistas, nos sujeitos que descompensam diante dos infortúnios da vida ou diante de conquistas gloriosas 14. Ou mesmo pelo simples sentimento de mal-estar e descontentamento do homem moderno sem causa aparente. O comportamento do indivíduo dentro da comunidade cultural, em contrapartida, exterioriza outras propriedades psíquicas do superego. As figuras do totem, de Deus, dos líderes, e outras formas de objetificação do superego na cultura como a Providência, põem em evidência sua face ideal, que, a um só tempo, impõe modelos de conduta e pune o sujeito diante do não cumprimento de tais insígnias.

Assim, como “lente de aumento” dos fenômenos mentais, a cultura parece ampliar a compreensão do superego, vista de maneira imprecisa ou fragmentada no âmbito da psicologia do indivíduo. O mandamento de “amar ao próximo como a si mesmo”, o mais importante proceder apsicológico do superego cultural segundo Freud, figura um bom exemplo nesse sentido. No curso do conflito edipiano, a criança é obrigada a renunciar à agressividade em nome da conservação do pênis e do amor narcísico.

Ao ser transposta para o domínio das formações coletivas, esta mesma operação reaparece na obrigação imposta ao fiel de ter que amar o próximo à custa do represamento da parcela destrutiva de suas pulsões. Trata-se de uma exigência superegóica capaz de associar e colocar em evidência a relação entre ser obrigado a amar o próximo – via amor narcísico – e ter que renunciar à consumação de todo ódio de que esse próximo é merecedor.

Isto dito, a problemática da cultura deve se desvincular da concepção de “psicanálise aplicada”. A teoria de Freud não é um corpo de conhecimento acabado que lança luz sobre o domínio dos fatos culturais. É um corpo em permanente transformação, que se nutre da investigação em três domínios diferentes: no domínio das formações psíquicas patológicas, no domínio das formações psíquicas normais individuais e no domínio das formações psíquicas coletivas e culturais. Trata-se, pois, de um sistema aberto, que implica abandonos temporários, oscilações, retificações. Como diz Monzani (1989, p. 302), “a Psicanálise freudiana parece ter sido muito mais uma lenta gestação conceitual, onde as noções foram retificadas, precisadas, repensadas ou explicitadas umas em função das outras e em função das novas aquisições fornecidas pela prática clínica”. Ao que acrescentar-se-ia: e pela dimensão cultural.


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1 A questão da dependência e desamparo havia sido amplamente trabalhada em  Inhibición, síntoma e angustia (Freud, 1926/1989).


2 O imperativo categórico vincula-se à idéia de dever que, segundo Chauí (1997), é imperativo e, portanto, não admite hipóteses (“se… então”). Este dever, sem exceções e incondicionalmente, deve valer para todas as ações morais e se submeter à lei moral. E é aqui que nos interessa particularmente: “O dever é um imperativo categórico. Ordena incondicionalmente. Não é uma motivação psicológica, mas a lei moral interior….  As máximas deixam claras a interiorização do dever….  Ao agir devemos indagar se nossa ação está em conformidade com os fins morais, isto é, com as máximas do dever” (Chauí, , 1997, p. 346).


3 Assoun (1976) lembra-nos que Freud já havia utilizado o termo “imperativo categórico” em A interpretação dos sonhos (1900), situando-o nas formações oníricas como um acompanhante inseparável do sonhador do qual ele não pode se desvencilhar; o que indicaria uma ligação entre desejo e interdição.


4 Laplanche e Pontalis (1985) situam as formações reativas como uma defesa bem-sucedida que exclui da consciência – em proveito de virtudes morais elevadas ao extremo – a representação sexual e a recriminação suscitada por ela. “Quando mais tarde vier a ser introduzida a noção de superego, uma parte importante, na sua gênese, será atribuída ao mecanismo de formação reativa” (Laplanche & Pontalis, 1985, p.261)


5 Deslocamentos semelhantes aos que ocorrem no apaixonamento e na alternância entre mania e melancolia. No primeiro caso, o ego se esvazia e preenche o objeto. No segundo, o superego sufoca cruelmente o ego.


6 Freud ilustra o fenômeno do humor, retomando uma história contada em  El chiste y su relación con lo inconciente (Freud, 1905/1989) na qual um condenado que, levado para a execução em uma segunda-feira, comenta: “é, a semana está começando otimamente” (Freud, 1927, p. 157).


7 O riso se apoiaria na mesma fonte primária de obtenção de prazer encontrada nos jogos e nos gracejos, tal como Freud descreve em El chiste y su relación con lo inconciente (1905/1989).


8 Kupermann (2003) contrapõe as formulações acerca do papel afável desempenhado pelo superego no procedimento humorístico à figura do superego sádico e da opção masoquista, que considera, baseando-se nos últimos escritos de Freud, o destino inexorável para as subjetividades. “A ‘grandeza’ e a ‘elevação’ éticas atribuídas por Freud ao humor indicam para o autor – com quem nós concordamos – que há efetivamente outras opções à disposição do sujeito frente ao peso do real, que não a resignação masoquista, desde que este disponha da potência erótica necessária para afirmar sua rebeldia criativa, investindo seu próprio ideal do ego de modo a reajustar os elementos do seu mundo de uma forma que lhe seja satisfatória” (Kupermann, 2003, p.28).


9 A originalidade da concepção freudiana de ilusão consiste, segundo Kaufman (1979), em ruptura com Nietzsche, “em derivá-la não mais de uma economia de defesa da vida, mas de tentativa de resolução, no nível da cultura, dos impasses aos quais são confrontados os sujeitos dada sua escravidão a um estado de aculturação” (Kaufman, 1979, p. 68).


10 A autora acrescenta que a religião é considerada por Freud o paradigma das ilusões: possuem o estatuto próximo ao do engano e se colocam como nocivas ao homem pois o afastam daquilo que é inerente à condição humana. “Afastamento da verdade: eis o cerne do processo que Freud move contra as ilusões” (Loureiro, 2002, p. 315).


11 Em Para a genealogia da moral, há uma afirmação de Nietzsche (1887) que se aproxima da hipótese freudiana e que diz o seguinte: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – é isto que eu denomino a interiorização do homem ” (Nietzsche, 1887, 311), e, mais adiante: “Aqueles terríveis baluartes com que a organização estatal se protegia contra os velhos instintos de liberdade – os castigos fazem parte, antes de tudo, destes baluartes – acarretaram que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre, errante, se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o gosto pela perseguição, pelo assalto, pela mudança, pela destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: essa é a origem da “má consciência”” (Nietzsche, 1887, 311).


12 Na 32ª das Nuevas Conferências de introducción al psicoanálisis. “Angustia y vida pulsional, Freud (1933/1989) retoma as questões colocadas neste texto e afirma: “O temor ao superego normalmente jamais deve cessar, pois, sob a forma de ansiedade moral, é indispensável nas relações sociais, e somente em casos muito raros pode um indivíduo tornar-se independente da sociedade humana” (Freud, 1933, p. 79). Em outro trecho, ele afirma: “A instituição do superego, que toma conta dos impulsos agressivos perigosos, introduz um destacamento armado, por assim dizer, nas regiões inclinadas à rebelião. Mas, por outro lado, se a encaramos exclusivamente do ponto de vista psicológico, devemos reconhecer que o ego não se sente feliz ao ser sacrificado às necessidades da sociedade, ao ter que se submeter às tendências destrutivas da agressividade que ele teria tido a satisfação de empregar contra os outros” (Freud, 1933, p. 102).


13 Assim ele explica seu raciocínio: “Quando o superego foi instituído pela primeira vez, para equipar essa instância fez-se uso da parcela de agressividade infantil dirigida contra os pais, pelo que lhe foi impossível efetuar uma descarga para fora devido a sua fixação erótica, bem como em virtude de dificuldades externas; e por esse motivo a severidade do superego não corresponde necessariamente à rigidez da criação da criança. É bem possível que, quando há subseqüentemente ocasião para suprimir a agressividade, o instinto possa tomar o mesmo caminho que lhe esteve aberto naquele momento decisivo” (Freud, 1933, p. 102).


14 Como se pode ver em  Algunos tipos de carácter dilucidados por el trabajo psicoanalítico (Freud, 1916/1989).