Considerações metapsicológicas sobre o autoerotismo, o narcisismo e a escolha objetal

Metapsychological considerations about the auto-erotism, the narcissism and the object-choice


Kelly Cristina Pereira Puertas

kellypuertas@hotmail.com

Universidade Estadual de Maringá (UEM)


RESUMO

Objetivamos discutir o autoerotismo, o narcisismo e a escolha de objeto como momentos pré-edípicos de constituição do eu. Levaremos em conta a imbricação entre a emergência de um eu no aparelho psíquico e a libido. Para tanto, buscaremos dar contornos metapsicológicos aos conceitos apresentados recorrendo, inclusive, às hipóteses apresentadas no Projeto de uma Psicologia, de 1895. O eu seria entendido como não estando constituído como unidade desde o início da vida. As etapas que a criança vivencia seriam momentos de construção/complexificação de um eu no aparato anímico, ou ainda, de uma diferenciação a partir do isso pelo contato com o meio externo. O viés de aproximação será o do investimento libidinal no eu e no primeiro objeto de amor elencado a partir da vivência de satisfação.

Palavras-Chave: eu; autoerotismo; narcisismo; escolha objetal; metapsicologia.


ABSTRACT

This paper discusses the auto-erotism, the narcissism and the object-choice as pre-Oedipal moments of the ego constituition. We will consider the overlap between the emergence of an ego in the psychic apparatus and the libido. To this end, we will seek to give metapsychological shape to the presented concepts resorting, inclusively, to the assumptions made in the Project of a Psychology, from 1895. The ego would be understood as not being constituted as unit since the beginning of life. The steps which the child experiences would be moments of an ego construction/complexification in the psychic apparatus, or yet, of a differentiation from this on through the contact whit the external environment. The bias approximation will be the one of the libidinal investment of the ego and in the first love object chosen from the experience of satisfaction on.

Key-Words: ego; auto-erotism; narcissism; object-choice; metapsychology.



Na própria constituição da pulsão está a presença do outro; essas forças que movem o sujeito a partir de dentro inscreveram as determinações da estrutura intersubjetiva.
Hornstein

Temos por objetivo levantar algumas hipóteses relativas a eventos do pré-Édipo, quais sejam o autoerotismo, o narcisismo e a escolha de objeto, embasadas nos pressupostos concernentes ao modelo de aparelho psíquico delineados no texto Projeto de uma Psicologia, escrito (mas não publicado) em 1895 por Sigmund Freud. A intenção é apresentar possibilidades de entendimento metapsicológico ao tema para além dos aspectos descritivos com vistas a ancorar, ou ainda, mergulhar nos aspectos dinâmico, tópico e econômico em busca do substrato que o sustenta. Para a realização de tal empreitada utilizar-nos-emos da pesquisa bibliográfica enfocando a obra freudiana e de alguns de seus comentadores.

Antes de adentrarmos à discussão do tema proposto, vemos a necessidade de justificar a escolha do modelo de aparelho [neuro]psíquico apresentado no Projeto de uma Psicologia (doravante designado de Projeto). Cremos, apoiados em Monzani (1989), Gabbi Jr. (1995) e Caropreso e Simanke (2009), que os pressupostos apresentados neste texto não foram simplesmente superados e abandonados, mas sim aprimorados no decorrer da obra de Freud. “€œO fato de que Freud tenha introduzido adições, retificações, conceitos clínicos novos, não precisa afetar, em princípio, o estatuto das bases e dos fundamentos teóricos sobre os quais o discurso psicanalítico está estruturado”€ (Monzani, 1989, p. 16).

Assim sendo, interessa-nos as possibilidades de articulação metapsicológica que o modelo de aparelho [neuro]psíquico apresentado neste texto – no Projeto  nos permite. Em especial, destacamos a ênfase dada ao eu e seu modo de funcionamento no referido modelo, visto que a aproximação ao tema proposto é atravessada pelas diferenciações e complexificações no bojo do eu-instância em constituição. Acreditamos haver justificado a eleição do modelo de aparato anímico para este trabalho e acrescentamos que agregaremos a hipótese neuronal de Freud aos desenvolvimentos teóricos subseqüentes do autor.

Discorreremos a respeito do autoerotismo, do narcisismo e do investimento em um primeiro objeto de amor. Essa delimitação nestes três períodos pode ser verificada na definição de narcisismo, apresentada por Freud em Apontamentos Psicanalíticos Sobre um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides) Descrito Autobiograficamente (Freud, 1911/2004, p. 56) como “€œum estádio na história evolutiva da libido, estádio pelo que se atravessa no caminho que vai do autoerotismo ao amor de objeto”.

Percorrendo os passos em direção a objetos desde o nascimento, podemos listá-los assim: o autoerotismo como um período em que não haveria investimento de objeto, o narcisismo no qual o eu é objeto de investimento libidinal e o período em que já se faz possível ao indivíduo o investimento em objetos externos. O viés de acesso a estes períodos será o do desenvolvimento 1 do eu atrelado aos investimentos libidinais. Se falamos em eu, então temos de considerar o ser, o indivíduo em desenvolvimento e suas interações com o(s) outro(s) e o meio circundante. Isto porque consideramos, ancorados em Freud (1895/1995, 1905/2003, 1914/2003, 1923/2003, 1926/2003, 1940/2003), que a emergência da instância que chamamos de eu só pode dar-se por intermédio do contato com o meio externo e as figuras que o povoam. Desta maneira, nos propomos a revisitar os períodos e as figuras que compõem o quadro geral de cada uma destas etapas iniciais de constituição do eu.


O aparelho [neuro]psíquico do Projeto

Elencaremos algumas noções a respeito das teses apresentadas no Projeto visando obter subsídios que nos permitam ampliar as discussões a respeito do modo como um eu é erigido no aparelho psíquico.

Freud (1895/1995) atesta que o objetivo ao escrever o Projeto é “apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partes materiais capazes de serem especificadas”€ (p. 09). As partes/partículas materiais seriam os neurônios e a quantidade [Q] seria uma grandeza que diferenciaria atividade de repouso e estaria submetida à lei geral do movimento. Dois processos derivariam da forma de circulação da quantidade no aparato anímico. Os processos primários objetivariam libertar o neurônio de quantidade, permitindo um livre fluxo. Tal forma de funcionamento primário seria uma ficção, conforme destaca Freud (1900/2004), pois as necessidades oriundas de estímulos endógenos – fome, sede, respiração 2 – se imporiam ao organismo e não poderiam ser saciadas pelos esforços do bebê, fazendo-se necessário a intervenção de uma figura externa que cumprisse a ação específica. Por ação específica entende-se aquela realizada no meio externo e que tem por finalidade o cancelamento da elevação da quantidade endógena que resultou do carecimento. Tais necessidades impeliriam o organismo a funcionar em outro nível – secundário –  no qual a tendência à inércia seria substituída por uma tendência à constância, ou seja, a livre circulação de quantidade estaria barrada, o que geraria armazenamento quantitativo no aparato psíquico.

Segundo Freud (1895/1995, p.17),  “€œo sistema nervoso tinha desde o início duas funções: receber estímulos de fora e eliminar excitações originadas endogenamente”€ . Isto implica que para o organismo sair deste circuito de livre escoamento de quantidade, para haver desenvolvimento do sistema nervoso, as necessidades da vida terão de impor-se ao sistema, demandando um armazenamento que terá de ser tolerado até momento propício para a descarga. O autor apresenta, então, duas classes de neurônios: f e y. A primeira classe seria composta de neurônios permeáveis, os neurônios f, que permitiriam o livre curso de quantidade e estariam em conexão com o meio externo. A segunda classe seria composta por neurônios impermeáveis, que possuem a capacidade de permitir que apenas parte da quantidade que chega à eles escoe – pela ação das barreiras de contato –  e estão em conexão com o interior do organismo (y do núcleo) e com os neurônios f (y do manto). Haveria ainda um terceiro sistema de neurônios, os neurônios w, responsáveis pela consciência, pela qualidade/sensação. O desprazer poderia ser identificado a um aumento de quantidade [Q]. Haveria uma tendência do aparelho a evitar o desprazer desembaraçando-se da sobrecarga quantitativa que o inundaria. Este processamento que primaria pela livre circulação quantitativa no aparato seria o princípio de inércia.

As vivências de dor e de satisfação ocorreriam em períodos arcaicos da formação anímica e forneceriam parâmetros para seu funcionamento posterior. Por serem tão primitivas, possuiriam funcionamento primário, ou seja, visariam eliminação.

As ações humanas estão fundadas em duas vivências fundamentais: a busca de prazer e a esquiva da dor. A primeira é designada por Freud de vivência de satisfação e será fundamental para introduzir a noção de desejo. A segunda, chamada de vivência de dor, é … logicamente anterior e tem a função de estabelecer o contorno conceitual da noção de repressão (Verdrängung). Todas as duas tem uma única motivação: evitar a morte (Gabbi Jr., 1995, p. 132, grifo no original).

Tratemos primeiramente da vivência mais originária, a vivência de dor. A dor seria a resultante de uma Q muito elevada que  adentraria o sistema nervoso a partir do mundo exterior (via sistema f) que, por sua grande magnitude, não poderia ser barrada.  Adentraria o sistema y e, por fim, atingiria o sistema w provocando sensações de desprazer. O grande fluxo de quantidade penetraria em y levando à ocupação de vários neurônios, o que produziria uma inclinação à eliminação em diversas direções. Em y formar-se-ia uma facilitação entre os caminhos privilegiados de eliminação e a imagem recordativa do objeto hostil, aquele que produziu o estímulo que excitou a dor. Após haver deixado atrás de si tal trilhamento, quando ocorrer nova ocupação dos neurônios que compõem a imagem recordativa do objeto hostil, produzir-se-á um estado de desprazer, bem como a inclinação a libertar-se da quantidade. Da vivência de dor restaria a defesa primária, uma tendência à evitação do desprazer.

Na vivência de satisfação os neurônios de y do núcleo seriam ocupados com quantidade proveniente do interior do corpo continuamente. A acumulação de quantidade em y chega em w gerando desprazer como qualidade. Dar-se-ia uma tentativa de eliminar a quantidade acumulada. Acontece que o bebê não teria como se desembaraçar de maneira eficiente dessa quantidade, pois seu incremento seria contínuo. Por ser inicialmente desamparado, o ser humano no princípio da vida necessitaria de um outro, um auxiliador do meio externo que empreenderia por ele uma ação que cancelaria o incremento  quantitativo desencadeado pelo carecimento endógeno. “œEla [a ação específica] se efetua por ajuda alheia, na medida em que, através da eliminação pelo caminho da alteração interna, um indivíduo experiente [o outro, proveniente do meio externo] atenta para o estado da criança”€ (Freud, 1895/1995, p. 32, grifos no original).

Em função do cancelamento do estímulo endógeno, a sensação de desprazer também cessaria. Os neurônios ocupados a partir dos movimentos produzidos no interior do corpo pelo cancelamento do estado de carência formariam em y do manto uma imagem recordativa da satisfação, da eliminação da quantidade. Também os neurônios ocupados em y do manto a partir de fora formariam uma representação de objeto. Estes dois grupos de neurônios ocupados mais o grupo dos neurônios de y do núcleo, relativos ao estado de tensão engendrado pela necessidade, constituiriam um circuito, um caminho facilitado que tenderia a ser percorrido sempre que uma nova elevação na quantidade em y do núcleo viesse a ocorrer. A ocupação em y do manto e em y do núcleo seria simultânea, com vistas à recriação da vivência de satisfação. Resta da vivência de satisfação essa tendência a recriá-la, a atração de desejo.

Tratamos sobre a forma de funcionamento primário relativo às vivências de dor e de satisfação. Mas a necessidade da vida imporia ao sistema nervoso um funcionamento em nível secundário, promovendo a retenção da quantidade (e não mais a livre circulação). Agora, postula-se que deveria haver um nível quantitativo ótimo que precisaria ser mantido para o funcionamento do sistema nervoso; estamos nos domínios do princípio de constância. Os trilhamentos (facilitações entre neurônios) deixados pelas duas vivências fundamentais formariam organizações neuronais em y que Freud (1895/1995) chama de eu. Usando os termos do autor, “€œ… cabe definir o eu como a totalidade das respectivas ocupações y, na qual se separa uma parte permanente de uma variável”€ (p. 36-37). De acordo com Gabbi Jr. (1995), a parte permanente seria formada pelos neurônios constantemente ocupados, a partir do interior do corpo, de y do núcleo 3. A parte variável do eu seria composta pelos neurônios ocupados em y do manto. Deste modo, a parte variável do eu sofreria alterações por meio de estímulos provenientes de duas direções: do interior do próprio corpo e do meio externo (via sistema f).

Como essa organização em y barraria o livre escoamento de quantidade? Freud (1895/1995) fala de outra possibilidade de ocupação neuronal em y: a ocupação lateral. De acordo com esta suposição, um neurônio adjacente ocupado ao que estaria facilitado – devido às vivências de satisfação ou de dor – agiria como se fosse uma facilitação, desviando o curso de quantidade da trilha deixada pelas vivências. Assim sendo, uma ocupação lateral serviria à função de inibir o curso da quantidade que seguiria o caminho demarcado pelas facilitações, ou seja, evitar-se-ia que o curso primário de quantidade se concretizasse. Nas palavras de Freud (1895/1995), “€œ… se existir um eu, ele tem de inibir processos psíquicos primários”€ (p.37). A inibição do livre escoamento de quantidade é denominada de processos psíquicos secundários e estariam a cargo do eu. Sintetizando o que dissemos sobre os processos primários e secundários:

O funcionamento regido unicamente pelo princípio de inércia, que se caracterizaria pelo livre fluxo das quantidades de excitação nervosa entre os neurônios, tendo em vista a descarga mais imediata possível, consistiria no que Freud chama de processo primário. Com a substituição do princípio de inércia pela tendência à constância, o processo primário seria substituído pelo secundário. Neste último, o fluxo da excitação estaria parcialmente inibido, de forma que certo nível de quantidade seria retido nos neurônios – em outras palavras, essa quantidade se encontraria, doravante em estado “ligado”. (Caropreso & Simanke, 2009, p. 129, grifos no original).

Cremos haver destacado um mínimo necessário dos supostos freudianos presentes no Projeto, os quais nos serão úteis para a compreensão dos momentos formativos do eu e dos investimentos libidinais a eles atrelados.


A Teoria da Libido

Em razão de intentar alguma sistematização às etapas e o modo como a libido é endereçada/investida em cada uma delas, primeiramente destaquemos o que se entende por libido. Hornstein (1989) esclarece que a sexualidade seria “€œ… toda uma série de manifestações presentes desde a infância que produzem prazer, que excedem a necessidade…”€ (p. 138). Dito de outro modo, em termos psicanalíticos, por sexualidade compreende-se um conjunto de atividades prazerosas que estariam presentes desde a mais tenra infância. Pelas hipóteses freudianas, tais atividades teriam sua origem em outras vitais para a sobrevivência da espécie, mas as extrapolariam partindo das carências ordinárias em direção a um “€˜para além”€™, a um plus.

No terceiro dos Três Ensaios de Teoria Sexual, a libido é definida como “€œuma força quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual”€ (Freud, 1905/2003, p. 205). Utilizando os termos do Projeto, a estimulação que chegaria proveniente do meio externo, bem como as estimulações oriundas do interior do corpo, seria decodificada psiquicamente como um acréscimo quantitativo. Neste sentido, a estimulação de todo o corpo – e não apenas dos órgãos genitais  –  forneceria excitação sexual. Este acréscimo logo seria sentido como desprazeroso, o que engendraria uma busca pela descarga da quantidade excedente que invadiria o aparato psíquico. A descarga abrupta da quantidade geraria uma sensação de prazer, a satisfação. Após a liberação do excesso de quantidade restaurar-se-ia o fluxo quantitativo mínimo, que manteria o aparelho em marcha. Mas, brevemente as estimulações endógenas e exógenas promoveriam um novo incremento quantitativo e a busca pela satisfação da urgência novamente teria lugar. Estamos tratando da fonte (somática), da força (a quantidade) e da meta (a satisfação) relativas à pulsão 4.

Já esclarecemos que a libido seria uma força concernente à excitação sexual e apresentamos a hipótese do Projeto a respeito da origem de tal força – os deslocamentos quantitativos. Vejamos, nos termos apresentados em Introdução do Narcisismo e O Eu e o Isso as hipóteses genéticas sobre a libido. No texto de 1914, a concepção freudiana era de que haveria um investimento [quantitativo] originário no eu. Mas em 1923 esta concepção é revista e o autor declara que a libido proviria originariamente do isso nos seguintes termos: “… logo da separação entre o eu e o isso, devemos reconhecer ao isso como o grande reservatório da libido…”€ (Freud, 1923/2003, p.32, grifos no original). Parece-nos que estamos em face de contradição [aparente] nas teses do autor. Supomos que a concepção de eu apresentada em Introdução do Narcisismo coadunaria com a hipótese do “€˜grande y”€™ do Projeto no qual a noção de eu ali expressa não seria necessariamente a mesmo que o eu-instância de O Eu e o Isso.

Freud (1940/2004), em Esquema de Psicanálise, descreve o estado inicial da libido no organismo como estando presente no complexo eu-isso indiferenciado. Também em A Interpretação dos Sonhos, Freud (1900/2004) remetia à indistinção na criança entre sistemas Pré-consciente/Consciente e Inconsciente. Pensando, então, em fases precoces do desenvolvimento libidinal, é-nos lícito inferir que a separação entre eu e isso ainda não tenha se processado, visto estarmos tratando de um eu débil, em seus momentos de complexificação. Assim, a noção de eu discutida em 1914 parece-nos ser compatível com um todo ainda indiferenciado, ou ainda, um todo psíquico fragmentado.

Retomemos a afirmação de 1923 e agreguemos os esclarecimentos acima. Freud (1923/2003) acentua que o isso deve ser tomado como o reservatório da libido “€œlogo da separação entre o eu e o isso“€ (p. 32). Isto implica que: 1º) haveria um período em que teríamos de considerar que eu e isso seriam indissociáveis; 2º) que antes de se processar a separação entre as instâncias não seria possível definir com precisão de onde proviriam as forças libidinais.

No início das formulações freudianas a respeito das pulsões, havia uma oposição entre pulsões de autoconservação (ou do eu) e pulsões do objeto, sendo as primeiras despregadas do conteúdo sexual. Não é a essa acepção que nos afixaremos, ao contrário, entendemos que as pulsões do eu também possuem natureza erótica, haja vista sua origem a partir do isso e a possibilidade do eu ser tomado como objeto de investimento libidinal.

era preciso ver no eu mais um grande reservatório de libido, desde o qual esta última era enviada aos objetos, e que sempre estava disposto a acolher a libido que reflui desde os objetos. Portanto, também as pulsões de autoconservação eram de natureza libidinosa; eram pulsões sexuais que haviam tomado como objeto ao eu próprio em vez dos objetos externos. (Freud, 1923[1922]/2004, p.252)

Consideramos haver desembaraçado a noção geral de libido 5 e estarmos aptos a discorrer sobre os investimentos libidinais concernentes aos períodos autoerótico, narcísico e de estabelecimento de objeto.


O período autoerótico

Freud (1911/2004) apresenta-nos, no texto Apontamentos Psicanalíticos Sobre um Caso de Paranóia (Dementia Paranoides) Descrito Autobiograficamente, que o autoerotismo é considerado um período anterior à escolha de objeto. Se concordarmos com a suposição de que o estabelecimento da representação de objeto de desejo seja efetivado no aparelho psíquico pelas repetições da vivência de satisfação, será lícito pensar uma época arcaica deste aparelho quando esta representação ainda não estava plenamente instaurada. Vejamos como faremos estas hipóteses de trabalho convergirem.

As manifestações sexuais autoeróticas podem ser assinaladas nos primórdios da sexualidade infantil. De acordo com a concepção freudiana apresentada no segundo dos Três Ensaios de Teoria Sexual, intitulado A sexualidade infantil, o autoerotismo seria um estado no qual a pulsão utilizar-se-ia do próprio corpo para obtenção da satisfação sexual. O chuchar (ou sugar com deleite) seria o protótipo do autoerotismo: a criança utilizaria como meio para obter satisfação uma parte de seu próprio corpo, a mucosa bucal, zona esta passível de dominação e controle muscular pela criança, em oposição ao mundo externo sobre o qual ela ainda não exerce domínio. Duas questões devem ser consideradas quando tratamos de autoerotismo: primeiro, é um tipo de satisfação obtida no próprio organismo sem que haja a mediação de um objeto externo a ele e, segundo, o local, o órgão, no qual emerge a excitação é o mesmo no qual se dará a satisfação.

A suposição de organismos que funcionem apenas norteados por processos primários seria uma ficção teórica, pois tal funcionamento concorreria para o aniquilamento do organismo. O que cogitamos é que o período autoerótico seria o modelo mais próximo do funcionamento primário no bebê. A aproximação entre o funcionamento autoerótico e o funcionamento primário do aparelho psíquico pode ser depreendida colocando-se em tela a afirmação de Freud (1914/2003) segundo a qual “€œ… as pulsões autoeróticas são iniciais, primordiais”€ (p. 74), de modo análogo aos processos psíquicos primários, que teriam predomínio de funcionamento bem como primazia temporal sobre os processos secundários.

Para Freud (1895/1995), a princípio existiria um eu originário formado por y do núcleo. Após a vivência de satisfação, a parte do manto de y começaria a ser desenvolvida, complexificação esta que possibilitaria que processos inibitórios do eu – o funcionamento secundário  –  tivessem lugar. No autoerotismo, o descarregar dos excessos de quantidade ocorreria no próprio corpo sem a necessidade de eleição de um objeto 6 que mediasse essa descarga. Assim sendo, podemos pensar algo análogo ao processo primário. Retomemos o chuchar – o modelo para o autoerotismo destacado por Freud (1905/2003) –  para compreender o modo como ocorre o processo de desfazer-se da quantidade. Consideremos, juntamente com Freud (1895/1995, 1905/2003), a fome como modelo para a carência. A necessidade nutrícia engendra um incremento quantitativo proveniente de níveis intra e intercelulares que é sentido como algo desprazeroso. É uma tendência primária do organismo vivo descarregar o excesso quantitativo que inunda o aparelho psíquico. O bebê, em estado desvalido, desamparado, pois não pode por si só obter o alimento que saciaria a carência, tenta uma manobra visando aplacar a necessidade: toma uma parte de seu corpo (habitualmente a mão e/ou os dedos) com o fim de sugá-la. Ao buscar a satisfação, mesmo na ausência do alimento, podemos pensar em um rebaixamento de quantidade descolada deste alimento e atrelada ao processo motor envolvido. O órgão-fonte, no qual a excitação foi originada, será utilizado para descarregar a quantidade excedente. Assim, uma estimulação motora do órgão provocará a eliminação e apaziguará, mesmo que momentaneamente, o desprazer gerado pelo acúmulo da quantidade. O intento da criança é recriar a vivência de satisfação propiciada pela amamentação. Mas esta manobra não cancela o carecimento e brevemente o incremento quantitativo não será tolerado pelo organismo. Deixado por si mesmo, o bebê sucumbiria à morte 7.

Freud (1914/2003) declara que, para que o narcisismo constitua-se, algo teria de ser agregado ao autoerotismo: “€œuma nova ação psíquica”€ (p. 74), a constituição de um eu. Na seção subseqüente, discorreremos sobre o porquê e como um eu emerge no aparelho psíquico.


O narcisismo, ou dos rudimentos de um eu nos primórdios da vida

Em O eu e o Isso, Freud (1923/2003) considera que no início da vida o que se poderia pensar seria a existência de um “€˜eu débil”€™, rudimentar em suas funções. Paradoxalmente, em 1914, no texto dedicado ao estudo do Narcisismo, Freud (1914/2003) levanta a suposição de que nos primórdios da vida não haveria uma “€œunidade comparável ao eu”€ (p. 74). Ao retrocedermos mais ainda na obra freudiana até 1895, a concepção apresentada no Projeto é a da existência de um eu desde o princípio da vida. A que teríamos de atribuir tais contradições no pensamento do autor? Ou não se tratariam de contradições? Façamos estes supostos trabalharem. Parece-nos que o que ocorre é uma contradição apenas aparente. Argumentamos que a suposição de 1895 de que no princípio da vida já existe um eu pode coadunar com a suposição de 1914 se atentarmos para um aspecto levantado pelo autor: no início da vida o que não há é uma unidade relativa ao eu. Assim sendo, podemos inferir que haveria uma falta de unicidade desse eu quando do nascimento. Temos ainda que destacar que estamos na vigência da Primeira Tópica na qual o eu ainda não teria status de instância psíquica. A declaração freudiana no texto de 1923, divisor de águas entre Primeira e Segunda Tópicas, acentua o caráter débil do eu no início da vida. O que se apresenta é um eu rudimentar que ainda não estaria de posse de suas funções em virtude de pouca complexificação. Em outros termos, poder-se-ia considerar a existência de um eu desde os primórdios da vida, mas um eu inicialmente débil, frágil e que se fortalecerá com a complexificação do aparelho por intermédio do contato com o meio.

De acordo com as hipóteses apresentadas no Projeto, o eu seria uma organização em y que se estrutura, em complexificação crescente no aparelho [neuro]psíquico, via contato com o entorno do organismo. É assim que partimos do pressuposto de um desenvolvimento da organização em y cada vez mais diferenciada e elaborada, ou, nos termos utilizados na Segunda Tópica, um eu-instância 8 que comporta diversas funções entre as quais o controle da motilidade, a consciência e a repressão.

Amparados nas teses do Projeto, podemos dizer que no início da vida os processos primários seriam dominantes. Que eventos conduziriam à paulatina configuração demarcada pelos processos secundários? Ou, em outras palavras, que eventos concorreriam para que um eu possa constituir-se no aparelho? Dir-nos-á Freud (1923/2003) que “€œ… o eu é a parte do isso alterada pela influência do mundo exterior, com mediação de P-Cc [do sistema Percepção-Consciência]…” (p. 27). Então, seriam as limitações impostas pelo meio ao bebê que promoveriam a diferenciação do eu a partir do isso. Lembremos que nos primórdios da vida o ser humano é desamparado, não tem condições biológicas de subsistir por si só e necessita de ajuda de um outro presente no meio. Estas condições impostas pelo meio externo seriam impedimentos à descarga do excesso quantitativo que invade o bebê em decorrência dos carecimentos e, consequentemente, à satisfação imediata.

Façamos um adendo e levantemos que poderíamos considerar que em períodos tão arcaicos do desenvolvimento do eu existiria, por parte do bebê, uma indiferenciação entre meio interno e meio externo. No texto Pulsões e Destinos de Pulsão, Freud (1915/2003) aponta que na medida em que o bebê tem a capacidade de satisfazer (mesmo que parcialmente) em si mesmo suas demandas pulsionais, “o eu não necessita do mundo exterior” (p. 130). Se considerarmos a tese defendida em 1914, segundo a qual no início da vida não haveria uma estrutura unificada do eu, tal afirmação torna-se consistente. Isto porque o eu é a estrutura responsável pela mediação meio interno/meio externo (Freud, 1923/2003). As proposições de 1895 apontam para tal mediação, pois seria a aquisição de uma organização em y que barraria o livre escoamento de quantidade – o processo primário – o que permitiria que o bebê adquirisse condições de aguardar a intervenção do agente da ação específica que lhe promoverá o cancelamento da necessidade.

Freud (1914/2003) apresenta a existência de dois tipos de investimento libidinal: no eu e em objetos. “€œNós formamos assim a imagem de um investimento [Besetzung] libidinal originário do eu, cedido depois aos objetos …” (Freud, 1914/2003, p. 73). Este suposto de uma carga libidinal originária do eu que, posteriormente, poderia ser cedida aos objetos leva à consideração de uma oposição entre libido do eu e libido do objeto. Também pode ocorrer uma reconversão da libido que havia sido investida em objetos externos em um retorno para o investimento no eu. Apesar da oposição demarcada, o autor infere uma imbricação entre libido do eu e libido do objeto.

A libido narcisista ou libido do eu se nos aparece como o grande reservatório desde o qual são emitidos os investimentos de objeto e ao qual voltam a recolher-se; e o investimento libidinal narcisista do eu, como o estado originário realizado na primeira infância, que é só ocultado pelos envios posteriores da libido, mas se conserva no fundo atrás deles(Freud, 1905/2003, p. 198).

Mas, segundo as teses propostas em 1923, o reservatório da libido seria o isso e o narcisismo seria secundário ao investimento em objetos. Como pensar essas afirmações paradoxais? Retornemos ao apresentado em Esquema de Psicanálise: no início da vida haveria uma indiferenciação eu-isso. Agreguemos a hipótese de um narcisismo originário apresentada em 1914, descrito por Laplanche e Pontalis (1992) nos seguintes termos: “€œ… um estado precoce em que a criança investe toda sua libido em si mesma”€ (p. 290). De acordo com Freud (1895/1995), originariamente o eu consistiria de neurônios nucleares – de y do núcleo – que recebem e descarregam quantidades de origem endógena. Haveria, então, um estado originário em que toda a quantidade endógena chegaria a y do núcleo e seria ali mesmo descarregada, portanto, um funcionamento primário. Esse eu originário, constando da porção de y do núcleo, anterior à sua complexificação sob a forma de ocupações em y do manto, pode dar-nos subsídios que permitam  entendê-lo  como abarcando a proposição relativa ao isso, de 1923. Desta maneira, seria essa ocupação originária no eu-isso que poderia dispor de quantidades e endereçá-las a objetos exteriores.


O primeiro objeto de amor

Esclarecemos como o eu se constitui no aparato anímico em seu entrelaçamento com o seu entorno e destacamos a presença do outro neste meio externo ao indivíduo. Nesta seção apresentaremos a maneira como este outro é constitutivo do ser e demarcaremos a Teoria do Apoio como momento da emergência da pulsão sexual, a qual estaria atrelada ao outro primordial.

Freud (1905/2003, 1914/2003, 1940/2004) aponta que o primeiro objeto sexual da criança provém das vivências de satisfação. Então, as primeiras satisfações sexuais do bebê seriam vivenciadas imbricadas às funções vitais de conservação, ou seja, conjuntamente à saciação dos grandes carecimentos. As pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais estariam, a princípio, indiferenciadas 9. Saciação da necessidade e satisfação erótica ocorreriam simultaneamente. A separação entre estas pulsões seria secundária. Após a separação das pulsões, o objeto a investir eroticamente seria remanescente da função nutriz: a mãe (ou quem quer que cumpra essa função). Deste modo, segundo as premissas freudianas, a sexualidade se constituiria apoiada, arrimada nas funções vitais do indivíduo e a primeira escolha objetal 10 se daria via apoio ou anáclise.

O menino (e o adolescente) elege seus objetos sexuais tomando-os de suas vivências de satisfação. As primeiras satisfações sexuais autoeróticas são vivenciadas a reboque de funções vitais que servem à autoconservação. As pulsões sexuais se apóiam a princípio na satisfação das pulsões do eu, e só mais tarde se tornam independentes delas; agora bem, esse apoio segue mostrando-se no fato de que as pessoas encarregadas da nutrição, o cuidado e a proteção do menino serão os primeiros objetos sexuais: são, sobretudo, a mãe ou seu substituto (Freud, 1914/2003, p. 84).

Apresentemos uma possibilidade de compreensão da Teoria do Apoio a partir das teses do Projeto e para tanto revisitaremos o modelo da fome e agregaremos informações a respeito do agente da ação específica. Quando um carecimento nutrício ocorre, este chega aos neurônios nucleares como quantidade em acréscimo constante que dentro em breve sobrecarregará o aparelho e será sentido como desprazer. A princípio o bebê tentará se desembaraçar do excedente quantitativo por meio do espernear e do choro. Esses movimentos apenas promovem rebaixamentos quantitativos paliativos, pois os carecimentos apresentam uma incidência continuada sobre o aparato psíquico. Acontece que o outro auxiliar da criança – a mãe – associa o choro a uma necessidade e promove a ação específica que cancela o carecimento por meio da amamentação. Por intermédio das muitas mamadas, o bebê formará um registro intrapsíquico – uma representação – deste agente auxiliar e este será ansiado como forma de promover a saciação. Não será apenas a saciação que será ansiada. O abrupto desvencilhar da quantidade promove a satisfação [erótica], então todo e qualquer incremento quantitativo que provoque desprazer fará com que a criança busque recriar a vivência de satisfação. Para tanto, a representação intrapsíquica da figura nutriz será evocada. Ela comporá um conglomerado neuronal relativo à vivência de satisfação. Podemos dizer que essa figura representada intrapsiquicamente é o que chamamos de objeto. Na vigência do desprazer esse objeto será almejado como forma de obter satisfação, esteja a criança em presença de um carecimento ou não. A criança buscará atingir o plus, o a mais – a satisfação – que resultou do cancelamento da necessidade e para tanto, a figura da mãe será evocada pela ocupação dos neurônios que compõe tal representação. Este caminho facilitado pelas ocupações em y, por trilhamento via vivências de satisfação, Freud (1895/1995) chamará de desejo. Gabbi Jr. (1995) esclarece a questão do circuito formado no sistema nervoso pela vivência de satisfação:

Entre os três registros, pulsão [a quantidade endógena que atinge y], objeto [representação intrapsíquica do agente da ação específica] e interrupção [notícia da satisfação], é criado um circuito com melhor facilitação. Eles formam um caminho preferencial de eliminação, onde a ordem de constituição foi pulsão-objeto-interrupção. Se a pulsão era cega, agora ela visa o objeto, pois, como já vimos, um motivo exprime-se na psicologia quantitativa como um caminho preferencial de eliminação (p. 133).

Após a internalização da figura materna sob a forma de uma representação, esta poderá ser tomada como passível de investimento libidinal. Cabe deixar claro que uma representação é um complexo neuronal em trânsito, capaz de sofrer alterações em sua estrutura por meio de novas complexificações. Esses ganhos seriam obtidos por meio de novas percepções que adentrariam o aparelho psíquico, as quais ampliariam as possibilidades de reconhecimento do objeto no meio por acompanhar e captar diferentes ângulos perceptivos bem como alterações processadas na figura/pessoa em questão.

Cremos haver deslindado os mecanismos pelos quais uma figura do meio pode ser internalizada e tomada como objeto de investimento libidinal. Parece-nos que esta concepção da teoria do apoio e da eleição do objeto sexual não sofreu maiores elaborações após 1923. Assim Freud (1940/2004) sintetiza a questão em Esquema de Psicanálise:

O primeiro objeto erótico do menino [e também da menina] é o peito materno nutrício; o amor se engendra apoiado na necessidade de nutrição satisfeita. Por certo que ao começo o peito não é distinguido do próprio corpo, e quando tem que ser divorciado do corpo, transladado para “€œfora”€ pela freqüência com que o menino nota sua falta, toma consigo, como “€œobjeto”€, uma parte do investimento libidinal originariamente narcisista. Este primeiro objeto se completa logo na pessoa da mãe, quem não só nutre, senão também cuida e provoca no menino tantas outras sensações corporais, assim prazerosas como desprazíveis. No cuidado do corpo, ela torna-se a primeira sedutora do menino. Nestas duas relações [nutrição e sexual] enraíza a significação única da mãe, que é incomparável e se fixa imutável para toda a vida; como o primeiro e mais intenso objeto de amor, como arquétipo de todos os vínculos posteriores de amor… em ambos os sexos. (p. 188, grifos no original)

Considerações finais

No decorrer deste percurso que empreendemos nos meandros da teoria psicanalítica abordamos a íntima relação entre o desenvolvimento de um eu e a eleição de objetos a investir. Partimos da inexistência de um eu como unidade (com o que pudemos inferir que se poderia falar de um eu fragmentado e ainda frágil, o que seria consistente com as teses apresentadas nos textos Projeto de uma Psicologia e Esquema de Psicanálise) do período auto-erótico, chegamos ao período narcísico no qual pressupõe-se que já exista uma unidade relativa ao eu, a qual pode ser tomada como objeto de amor pelas pulsões sexuais e adentramos  uma etapa da constituição desse eu na qual objetos externos a ele podem também ser tomados como representações/objetos aos quais a libido seria direcionada. O liame que buscamos realizar foi o da emergência da pulsão sexual e suas possibilidades de investimentos com vistas à obtenção da meta de uma pulsão, qual seja, a satisfação.

Pensamos que o recurso ao Projeto nos serviu de ancoragem conceitual, como respaldo para a compreensão da metapsicologia subjacente ao descritivo. Entendemos que, como pesquisadores, necessitamos aclarar os processos por detrás da aparência dos fenômenos que se nos apresentam. São estes empreendimentos que alicerçam a teoria, um dos apoios do tripé destacado por Freud (1923[1922]/2004) no verbete no qual esclarece de que se trataria a psicanálise: um procedimento de investigação dos processos anímicos, um método de tratamento e como um conhecimento que gradualmente se unifica em uma disciplina científica. Uma teoria não pode ser estática e a busca por recursos, mesmo que seja retrocedendo a teses iniciais dos autores (como tentamos demonstrar ao nos ampararmos no Projeto) para colocá-las em tela juntamente com os avanços teóricos, pode servir-nos de avatar para novos progressos. No dizer de Freud (1923[1922]/2004), a psicanálise seria um campo, uma teoria “€œsempre inacabada e sempre disposta a corrigir ou variar suas doutrinas … suporta que seus conceitos máximos não sejam claros, que suas premissas sejam provisórias, e espera do trabalho futuro sua melhor precisão”€ (p. 249). Cerca de 90 anos após tal afirmação continuamos a rever as doutrinas, aclarar e explicitar conceitos, considerar os conhecimentos adquiridos como provisórios. Este é um fazer, um constante refazer, com vistas ao horizonte, à superação.


Referências

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Gabbi Jr., O. F. (1995). Notas críticas sobre Entwurf Einer Psychologie. In  Freud, Projeto de uma psicologia (pp. 103-225). Rio de Janeiro: Imago.

Hornstein, L. (1989). Introdução à Psicanálise. São Paulo: Escuta.

Laplanche; Pontalis (1992). Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

Monzani, L. R. (1989). Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: editora da UNICAMP.

1 O termo desenvolvimento não será aqui utilizado no sentido de um abandono das formas primeiras de atuação no aparelho, mas sim no sentido de uma complexificação na estrutura. É  nessa complicação nos modos de funcionamento do aparelho psíquico, que o advento de um eu como instância instala, que nos interessa para os fins deste trabalho.

2 Neste momento das teses freudianas a sexualidade era pensada como emergindo a partir do período da adolescência.

3 Podemos justapor a noção de ocupação constante em y do núcleo, oriunda do interior do corpo, à noção de pulsão. Assim, a fonte da pulsão seria somática, a força seria a quantidade, a finalidade seria a satisfação (o desembaraçar-se da quantidade, a liberação) e o objeto seria aquele definido pela atração de desejo (a representação em y do manto). Podemos ainda considerar, grosso modo, que esta seria a parte que, a partir da Segunda Tópica, Freud denominará de isso.

4 O quarto elemento da pulsão seria o objeto, o qual será apresentado na discussão em momento oportuno.

5 Esclarecemos que não apresentamos a diferenciação entre libido do eu e libido do objeto para inserir tais noções no decorrer das seções seguintes, nas quais, consideramos, seriam mais pertinentes.

6 Cabe deixar claro que não estamos dizendo que o período autoerótico seja anobjetal, mas que o modo de satisfação dá-se sem a interferência de um objeto externo a quem direcionar a pulsão. Apresentamos na seção 1 que as repetições das vivências de dor e de satisfação deixam marcas no aparato anímico sob a forma de representação de objeto.

7 A maneira como o bebê terá a carência satisfeita será objeto de apreciação na seção 5.

8 Para sermos mais exatos, não é apenas o eu-instância que seria desenvolvido, isto porque a parte do aparelho [neuro]psíquico recoberto pelo que Freud (1895/1995) denomina eu abrangerá, na Segunda Tópica, as instâncias isso, eu e supereu.

9 A hipótese defendida no primeiro dualismo pulsional era a de que haveria uma oposição entre pulsões do eu e pulsões do objeto. No segundo dualismo pulsional pretende-se que a oposição dê-se entre pulsão de vida e pulsão de morte.

10 Trata-se aqui da escolha de um objeto externo a ele, pois com a tese do narcisismo temos de considerar que o eu também é passível de investimento. Freud (1914/2003) destaca a existência de dois objetos sexuais originários: o próprio indivíduo (ou melhor, seu eu tomado como objeto) e a mãe.